Através do Twitter, o presidente Jair Bolsonaro comunicou no último dia 16 o cancelamento de um edital que oferecia cotas para alunos transgêneros, intersexuais e não-binários na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). A intervenção feita pelo Ministério da Economia bloqueou a abertura de 120 vagas na instituição federal, criada em 2010.
É certo que a medida do MEC fere gravemente a autonomia (financeira, administrativa e acadêmica) garantida constitucionalmente às universidades federais. Sobretudo, ao considerarmos que as 120 vagas ofertadas estavam (e agora permanecerão) ociosas, já que não foram preenchidas pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) do ano passado.
A notícia da suspensão foi recebida com revolta pela sociedade civil. A Aliança Nacional LGBTI classificou a decisão como um “atentado contra a dignidade das pessoas trans”. Vale lembrar que, quando anunciado, o edital foi aprovado pelo MEC, que disse através de nota para O Globo, que “as instituições de ensino superior têm autonomia para estabelecer seus próprios mecanismos de acesso”.
Caso concretizadas, as cotas seriam um importante passo inicial na inclusão de alunos transgêneros no Ensino Superior. Atualmente, eles representam apenas 0,1% de todos os estudantes matriculados em universidades federais do país, de acordo com levantamento do Estadão. Isso reflete uma exclusão que começa ainda no ensino básico, onde há um nível de evasão de 82%, entre essa população.
A decepção da comunidade, entretanto, logo foi convertida em ação. Através das redes sociais, dezenas de pessoas começaram a oferecer ajuda na preparação de pessoas trans para os vestibulares tradicionais ou para o ingresso no mercado de trabalho.
Reforço escolar em história, física, biologia, literatura, línguas, matemática, química e outras disciplinas essenciais para o vestibular, além de capacitação em gastronomia, tecnologia, marketing pessoal e programação de computadores. Essas foram apenas algumas das habilidades oferecidas voluntariamente, como resposta à intervenção do Ministério da Educação e forma de suprir, mesmo que momentânea e minimamente, uma defasagem no sistema público.
Iniciativas deste tipo, entretanto, não são inéditas. No início deste ano, o estudante Arthur Ramos, após ser aprovado na Licenciatura em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, decidiu que precisava contribuir de alguma forma para que mais pessoas trans acessassem o espaço universitário. “Corrijo tua redação de graça. O ano todo! Estudo Letras na UERJ e quero mais pessoas trans por aqui.”
A iniciativa foi compartilhada milhares de vezes pelas redes sociais e, com isso, atraiu dezenas de estudantes. Hoje, eles são acompanhados pelo trabalho dedicado e atento do jovem.
Poucas semanas antes da notícia, eu mesmo me ofereci para fazer currículos gratuitamente para pessoas trans – também pelo Twitter. Apesar de ciente do tamanho do problema, não imaginava as dezenas de solicitações que receberia quase que instantaneamente em minha caixa de mensagens – e as dezenas de histórias e agradecimentos trocados conforme os currículos foram entregues.
De modo geral, a solidariedade entre pessoas LGBTQ sempre foi uma constante necessária em nossas redes de afetividade. Das vaquinhas online para arcar com as cirurgias e acesso à hormonização de pessoas trans às repúblicas de acolhimento e proteção de pessoas LGBTQ expulsas de casa, como a Casa Nem, no Rio de Janeiro.
Para além das redes sociais, o “ninguém solta a mão de ninguém” do cotidiano significa repartir um pouco dos privilégios que se tem em prol do conforto, segurança e promoção do próximo, seja com uma escuta atenta, uma aula de reforço ou a garantia de um prato de comida na mesa.
Nessa onda, outra iniciativa de solidariedade LGBTQ que surgiu nas redes sociais e merece atenção é o Quem Bindera. O projeto, idealizado pelo estudante não-binário Nick Thomas, conecta pessoas trans que precisam de binders (uma peça de vestuário que reduz o volume dos seios, utilizada, sobretudo, por homens trans e pessoas transmasculinas) a quem possa doá-los. Já foram cerca de 50 itens enviados para pessoas de todo o Brasil e o projeto está apenas no início de sua expansão.
É certo que esses esforços individuais possuem suas limitações, sobretudo quanto ao alcance e continuidade das propostas. Também não devem ser encarados como uma desobrigação dos governantes em garantir o acesso aos direitos e serviços por grupos minoritários.
Essas iniciativas devem ser vistas pelo que são: mãos estendidas em solidariedade por aqueles que já perceberam que compartilhar seu conhecimento, seu tempo e suas aptidões em prol de sua comunidade pode ser um poderoso instrumento de empatia e resistência coletiva em tempos de barbárie.