Ari Areia (PSOL–CE) está prestes a ser o primeiro deputado estadual abertamente gay do Nordeste. Ator, jornalista e reconhecido militante da causa LGBT, ele recebeu mais de 11 mil votos nas eleições de 2018 e se tornou o primeiro suplente da sigla para a Assembleia Legislativa do Ceará, cargo que ocupa ainda este ano, quando Renato Roseno se afastar do posto para concorrer à Prefeitura de Fortaleza.
“Vamos pensar sobre emprego e renda, sobre a crise hídrica que afeta o Estado, sobre direito à cultura e à educação, sobre segurança pública. Mostrar que nossos corpos negros, jovens e LGBT também sabem e querem formular políticas e apontar caminhos”, afirma Ari à Híbrida.
Na entrevista, o futuro deputado explica a importância de representatividade no Legislativo, como pretende encarar os números de LGBTfobia no Estado – já foram 11 assassinatos apenas em 2020 – e adianta: “Queremos disputar o sentido integral da política, não apenas as pautas entendidas como identitárias”.
Leia a entrevista abaixo:
HÍBRIDA: O que te motivou a entrar para a carreira política?
ARI AREIA: Essa foi a pergunta que eu mais ouvi em 2016, quando me candidatei pela primeira vez a vereador de Fortaleza. Eu respondia pras pessoas que sou um cara negro, LGBT, filho de pastor, trabalhador da Cultura, que nasceu no Pirambu e cresceu em Messejana, duas periferias de Fortaleza. Quando essa existência não foi política?
Decidi me filiar ao PSOL em 2011, mas só cinco anos depois veio a perspectiva de disputar uma eleição. E foi por causa do teatro. Um monólogo meu chamado “Histórias Compartillhadas” sofreu tentativa de intimidação e censura. Em um debate de rádio, com uma parlamentar fundamentalista que não tinha muito argumento pra me rebater, eu ouvi: “Ok, mas eu sou a deputada, eu faço as leis”. De fato, era mesmo, e a única coisa que eu pude responder foi “pois me aguarde”.
Já imaginou agora esse reencontro? Com a bicha lá, ocupando o plenário daquela casa que um dia aprovou uma moção de repúdio contra ela, falando de igual pra igual com essa galera engravatada e ecoando a voz dos artistas, das juventudes, sobretudo das LGBTs e das pessoas negras ali dentro?!
Quero provocar uma análise apurada de cada um dos casos de homicídio de LGBTs no Estado
H: Como recebeu a notícia de que assumiria o mandato do Renato?
AA: Na última eleição, a nossa campanha teve uma repercussão incrível pelos cantos do Ceará, foram mais de 11 mil votos em 170 cidades (faltaram apenas 14 para fecharmos o Estado todo!). Foi assim que a gente chegou nessa primeira suplência. Aqui, o PSOL tem essa delicadeza importante de abrir espaço durante os mandatos para que outras vozes e lideranças se apresentem.
O Renato [Roseno] abriu espaço para Nestor Bezerra, na legislatura passada, e foi muito importante termos um peão da construção civil como deputado. Dessa vez, vai ter uma LGBT, negra, trabalhadora da cultura. É o postulado fundamental que a amiga Érica Malunguinho (SP) cunhou: alternância de poder!
H: Você terá pouco mais de dois anos como deputado, pelo menos por esse mandato. Em quais causas pretende focar? O que considera mais urgente nesse momento?
AA: Essa nossa experiência de exercício de mandato vai ser durante uma licença do parlamentar titular. No nosso caso, Renato Roseno vai se afastar do cargo por um período de quatro meses para cumprir a tarefa de ser nosso representante na disputa à Prefeitura de Fortaleza. A gente tem uma articulação forte com o movimento de artistas nas diversas regiões do Estado e vamos chegar com propostas concretas de incidência na área.
Sem sombra de dúvidas, o enfrentamento ao que tenho chamado de “LGBTfobia Letal” será pauta prioritária nessa nossa passagem pelo parlamento. Quero provocar por meio da Comissão de Direitos Humanos, da qual a gente também assume a presidência nesse período, uma análise apurada de cada um dos casos de homicídio de LGBTs no Estado. Pretendo finalizar esses meses de trabalho com um diagnóstico da situação e propostas práticas de ação preventiva a serem apresentadas aos governos do Estado e dos municípios.
Também vamos dar seguimento no acompanhamento de pautas importantes como direito à água, à moradia digna, dos povos tradicionais, a defesa do funcionalismo público, da educação, e sempre com atenção especial à pauta da segurança pública.
H: De que forma avalia as políticas públicas e representatividade política no Ceará para a comunidade LGBTQ?
AA: Não é à toa que o Ceará apresenta dados tão preocupantes na contagem dos casos de violência contra LGBTs. Aqui não há execução orçamentária alguma das rubricas específicas para políticas direcionadas a essa população nos últimos quatro anos, nem pela gestão estadual e nem pela Prefeitura de Fortaleza. Isso, infelizmente, é um dado concreto, não é força de expressão.
Contamos apenas com um Centro de Referência Municipal na capital, gerido por uma equipe de militantes comprometidos que se esforça para não parar diante da falta de condições de ação. Fazendo uma avaliação desse último ciclo, vejo que têm se consolidado nomes de figuras LGBTs no cenário político do Estado com candidaturas competitivas e com votações expressivas.
Tive a candidatura LGBT mais votada na última eleição, mas não sou um caso isolado. Meus colegas de partido, Ailton Lopes (gay) e Helena Vieira (trans), também estão entre os nomes mais bem votados entre a esquerda daqui.
H: Como acha que ser o primeiro deputado abertamente gay pelo Nordeste pode influenciar em políticas pró-LGBTQ para a região e para o país? Inclusive, sente pressão por esse título?
AA: Existe uma grave crise de representatividade em todos os cenários políticos institucionais, porque as pessoas não se enxergam nesses espaços. Qual a importância de ocupar o Legislativo sendo militante LGBT e tendo feito campanha com isso bem dito? De cara, considero a possibilidade de reconhecimento: da juventude se reconhecer nessa atuação, das LGBTs se reconhecerem, do povo negro e trabalhador da Cultura entender que ali também pode ser uma trincheira ocupada por gente como nós.
E mais, queremos disputar o sentido integral da política, não apenas as pautas entendidas como identitárias. Vamos pensar sobre emprego e renda, sobre a crise hídrica que afeta o Estado, sobre direito à cultura e à educação, sobre segurança pública. Mostrar que nossos corpos negros, jovens e LGBT também sabem e querem formular políticas e apontar caminhos.
Em 2017, mataram a travesti Dandara dos Santos e o mundo repercutiu. Alguns meses depois, no entanto, os órgãos de segurança do Ceará vieram a público dizer que não havia homicídios por LGBTfobia no Estado. O Estado nega o inegável, entende? É urgente a presença de alguém dentro dos plenários que sinta isso na pele e possa gritar o contrário.
Eu não sei que impacto real minha suplência em exercício pode imprimir na luta do movimento na região ou no país, mas gostaria muito que servisse para que as nossas percebessem que, nos organizando, a gente consegue sim derrubar as portas emperradas desses lugares.