A representatividade trans no horário nobre da Rede Globo pode ser contada nos dedos de uma mão, com poucos artistas registrados nessa faixa da emissora e ainda menos narrativas reais. A saga de Ivana/Ivan (Carol Duarte) em “A Força do Querer” foi um marco nesse sentido e, agora, Glamour Garcia dá vida à Britney, de “A Dona do Pedaço”.
Com um enredo mais leve do que o escrito por Glória Perez, a trama de Walcyr Carrasco foca no período pós-transição de Britney e os desdobramentos que isso traz para sua família e o entorno. “A Britney tem trazido um espaço construtivo pra essa discussão. E é muito importante quando o público não se sente apenas representado, mas pode participar da discussão junto”, avalia Glamour sobre seu primeiro grande papel nas telinhas.
Em entrevista exclusiva à Híbrida, a atriz e modelo fala sobre o começo da carreira no cinema independente, a importância de debatermos a pauta trans em rede nacional, a curiosidade do público sobre pessoas transexuais e o prazer de interpretar Britney. Leia abaixo:
Híbrida: Quando você começou a trabalhar como atriz, sentiu resistência da indústria para conseguir trabalhos por ser trans?
Glamour García: No começo, não senti resistência. Eu era mais jovem e o mercado era mais fechado, não tinha muita possibilidade ainda. No começo, eu trabalhei mais em projetos independentes, que, querendo ou não, tinham mais abordagens sobre sexualidade e oportunidade para novas artistas. Nessa época, ainda tratavam a transexualidade de forma muito superficial e folclórica.
H: “A Dona do Pedaço” é seu primeiro papel em uma novela. Depois de trabalhar com teatro, cinema e séries, sentiu algum frio na barriga ao se aventurar nesse novo formato? Como tem sido a experiência pra você? Alguma surpresa?
GG: Senti frio na barriga e um nervosismo, no começo. Não pelo formato da novela, mas pela dimensão, pelo alcance e pela repercussão que tem. Querendo ou não, uma novela das 21h na Rede Globo tem uma visibilidade gigantesca. Não quero só me ver bem profissionalmente e atender minhas expectativas, mas também queria que o público se sentisse contente. Mas agora já foi, estamos no ar e arrasando.
H: Nos últimos dois anos, o movimento trans tem lutado bastante para conseguir espaço na dramaturgia e impedir o ‘tranksfake’ de apagar ainda mais as chances de trabalho da comunidade. Você, agora em horário nobre da maior emissora do país, sente alguma responsabilidade em relação a isso? Como encara o seu trabalho nesse contexto?
GG: Eu sinto que meu trabalho é muito importante nesse momento. Principalmente, porque é uma discussão honesta. Por ser uma atriz trans, além do meu lugar de militante e cidadã, eu reconheço sim a minha responsabilidade. Mas não no sentido pesado, e sim como um presente. Representar a comunidade trans é mais do que só importante, é necessário. A Britney tem trazido um espaço construtivo pra essa discussão. E é muito importante quando o público não se sente apenas representado, mas pode participar da discussão junto.
Ainda sou de uma geração que não tinha muitas atrizes trans, principalmente não na minha adolescência
– Glamour Garcia
H: Falando nisso, qual você considera a questão ou questões mais urgentes no que diz respeito à representação de pessoas trans na mídia?
GG: Existem muitas temáticas urgentes. Muito antes devirem as discussões sociais, isso já entrou na moda como pauta. Antes que isso só passe como moda, é importante levantar [o assunto]. É um assunto muito jovem e o espaço de cidadania das pessoas trans é muito recente. Mas acho que tudo o que envolve pessoas trans é muito importante: saúde, inclusão social, trabalho, representatividade, a luta pela cidadania, contra o preconceito, mostrar a transfobia e que, a partir daí, as pessoas possam se sentir mais fortes.
H: Você chegou a ter alguma referência durante a juventude e seu processo de transição? Alguma mulher trans que lhe inspirasse não só como pessoa, mas como artista?
GG: Infelizmente, não. Ainda sou de uma geração que não tinha muitas atrizes trans, principalmente não na minha adolescência. Lembro da Roberta Close, mas na minha época ela já estava na Europa. Principalmente, nessa mídia de larga escala que a gente consome quando é adolescente. A nível mais midiático, as pessoas trans só têm aparecido mais nos últimos dez anos – e graças a deus!
H: Como surgiu a oportunidade de interpretar Britney?
GG: Eu trabalho com a Nany Azevedo, da agência de atores e modelos Nany Casting. A gente recebeu o convite através do produtor de elenco da Globo, e do Walcyr [Carrasco, autor] para fazer um teste. Ainda passei uma semana de trabalho criativo na Globo, em São Paulo, e em janeiro eu recebi a confirmação e o convite. Foi uma alegria imensa.
H: No que a sua história de transição e aceitação da família se parece com a da Britney? Pode dividir com a gente como foi a conversa com a sua família?
GG: A Britney acaba representando todos e todas nós trans, em vários sentidos. Esse específico da família é muito complexo, vai de cada história. Eu tive uma história de aceitação familiar muito tranquila. Principalmente, porque é um processo de vida – não é de uma hora pra outra, não existe ‘um momento’, uma ‘transformação’. As pessoas trans passam por um processo ao longo da vida, marcado por alguns momentos, mas a minha família sempre esteve presente, com muito amor e muito apoio. Graças a eles cheguei aonde cheguei.
H: Uma das dúvidas que a mãe de Britney, Dodô (Rosi Campos), tem ao saber da transição da filha diz respeito à cirurgia de readequação sexual. Eu vi que, em algumas entrevistas, você também já foi questionada sobre isso. Te incomoda essa curiosidade das pessoas em algo tão pessoal?
GG: Não me incomoda. Eu entendo que as pessoas tenham curiosidade, mas a cirurgia de adequação também é um procedimento muito delicado, que envolve quadros de saúde que são sempre importante de serem mantidos. Também sinto que nenhuma pessoa trans tenha obrigação de abrir esse assunto ou se expor, caso não queira. Esse é um assunto que, querendo ou não, todo mundo quer conversar.
H: Outro ponto que deve ser explorado na história de Britney é o interesse romântico de Abel (Pedro Carvalho) nela, que ainda não sabe do fato de que Britney é uma mulher trans. Frequentemente, escutamos muito as pessoas trans reclamando dessa dificuldade em encontrar afeto, principalmente de forma ‘assumida’. Como você vê a importância de a personagem falar sobre isso, para além do papel educativo sobre a transexualidade de forma mais ampla?
GG: Esse já é um assunto muito delicado. A Britney é uma pessoa muito jovem. Eu acho que, primeiramente, isso gera uma insegurança quando se é jovem e está apaixonada. Mas nenhuma pessoa trans tem obrigação alguma de se expor. E, de certa forma, isso também é se proteger. A sociedade é muito transfóbica e cada um sabe onde estão os seus limites pessoais. No caso da Britney e do Abel, ela está insegura porque vê que ele às vezes age de maneira muito retrógrada e ela é super bem resolvida. Mas, ao mesmo tempo, ela está balançada e procurando a oportunidade para contar.
H: Por fim, sua personagem se chama Britney, então não posso deixar de perguntar: você é fã de Britney Spears? Sabe dizer como foi a escolha desse nome pra personagem?
GG: Sou super fã da Britney e totalmente dessa geração, sempre acompanhei [a carreira dela]. É um nome bem pop, cabe à personagem e à história dela – é algo que traz leveza e suavidade pra toda a história. Pessoalmente, como atriz, amei esse nome e achei incrível. Britney é tudo! O Walcyr arrasou com esse nome.
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