Transmitida ao longo de 2017, “A Força do Querer”, de Glória Perez, ficou marcada na história como a primeira novela brasileira a mostrar todas as etapas do processo de transição de um personagem transexual. Agora, em meio à pandemia do novo coronavírus, a trama será reexibida pela Rede Globo após o final de “Fina Estampa”, voltando com o debate sobre a vivência trans para o horário nobre da emissora. Mas afinal, quais foram os impactos dessa representação para a sociedade em geral?

Enquanto o folhetim se aproximava de seu último capítulo, falamos com pessoas trans que apontaram erros e acertos na narrativa de Ivan (Carol Duarte) e comemoraram a abordagem da temática levada para as mais diferentes camadas sociais do país.

Kaíque Theodoro, homem trans. O que ele tem a dizer sobre “A Força do Querer”? (Foto: Lucas Magalhães)

É noite. Na TV, horário nobre. O fim do “Jornal Nacional” anuncia mais um capítulo de “A Força do Querer”, novela escrita por Glória Perez, enquanto do outro lado da telinha milhões de telespectadores acompanham a trama, a de maior sucesso dos últimos cinco anos no Brasil. Pessoas das mais variadas camadas sociais, graus de escolaridade e religiões. Mas, em meio aos encantos e controvérsias de uma sereia (Ritinha, vivida por Ísis Valverde) e de uma baronesa do pó (como Bibi Perigosa, a antiheroína de Juliana Paes), a novela tem mais uma força chamada Ivana. Ou melhor, Ivan: um homem trans interpretado pela atriz Carol Duarte.

Pela primeira vez na história da telenovela brasileira, o Brasil vem acompanhando o processo de transição de um personagem transexual: da repulsa pelo próprio corpo à aceitação e entendimento da identidade de gênero, passando pela questão familiar e as mudanças físicas que seguem. Um tema importante de ser abordado, ao mesmo tempo em que é complexo e de pouco conhecimento para muitos telespectadores, estes, como já dito, com as mais diferentes bagagens culturais.

“A Força do Querer” mostrou as dores e os desafios do processo de transição de Ivan, interpretado por Carol Duarte (Foto: Globo | Estevam Avellar)

“Não é algo que a sociedade ainda não saiba que existe, mas é algo que ela não compreende e não sabe o porquê disso. Acho que pela narrativa da trama isso pode se modificar. Se ao menos um pai/mãe passar a aceitar melhor o gênero do filho/filha a partir da telenovela, para mim ela já cumpriu a missão”, acredita Guilherme Fernandes, pesquisador em teledramaturgia.

Mas afinal, o que essa visibilidade nacional representou e vem representando de fato para o movimento trans? A revista Híbrida convidou pessoas que sentiram, de alguma forma, na pele o que se passou com a personagem da novela “A Força do Querer”.

“Agora é possível dialogar”

Kaíque Theodoro, cantor, 23 anos, morador do Rio de Janeiro. Homem trans. Iniciou o processo de transição aos 18. “Nós [homens trans] estamos aparecendo agora. Estamos levando um assunto tabu para casas de famílias que se recusam a ouvir a gente ou sequer sabem da nossa existência de forma humana. A novela mostra que existimos”, afirma ele, reconhecendo a importância da abordagem, apesar de deixar claro algumas críticas em relação à trama.

Kaíque admite ter críticas em relação à novela, mas reconhece a força dela para os jovens trans buscando autoaceitação (Foto: Lucas Magalhães)

“Considerar a novela como algo ‘uau, nossa, que bacana, está ajudando muito’, não! É só um startzinho para ser possível entrarmos no assunto com pessoas que antes nos destratavam”, acrescenta. Kaíque reforça ainda a relevância dessa representação para os jovens que ainda estão em processo de autoaceitação. “Isso é ótimo para eles. Quando iniciei meu processo, não tive referência. Isso salva a gente, nos dá uma bússola e mostra que não estamos sós, que não somos loucos. Agora é possível dialogar”, comemora.

“[O preconceito] pode ser desconstruído”

Bruna Leonardo, 36 anos, militante. É mineira de Juiz de Fora e mulher trans. Ela também comemora o fato de poder “se ver” na TV. “Estou me sentindo muito bem representada, embora seja o oposto. Fico satisfeita enquanto militante e mulher trans de ver que a autora está abordando o tema de maneira bacana e didática, como uma forma de tentar sensibilizar as famílias e a sociedade. Tentar mostrar, para quem nunca vivenciou isso, para quem não conhece nenhum caso, que não é algo fácil”, afirma.

Bruna Leonardo é militante de Juiz de Fora e afirma que a novela pode ajudar a diminuir o preconceito que as pessoas trans sofrem. exaustivamente (Foto: Reprodução Facebook)

Para ela, a novela pode sim ajudar a diminuir o preconceito que tanto afeta as pessoas trans no Brasil. Aliás, somos o país que mais as matam no mundo, segundo dados do Grupo Gay da Bahia. Só neste ano já foram 140 mortes por transfobia. “Assim como o preconceito é construído, ele pode ser descontruído. A gente vive numa sociedade em que, desde muito pequeno, aprendemos que ser diferente é errado, é pecado. A novela, ao abordar o assunto de forma tão esclarecedora, mostra que somos humanos. Que temos sentimentos, anseios, desejos, que a gente merece respeito! Que temos direito à cidadania. Que a transexualidade é mais uma forma de existir. A gente vive num país em que a novela é uma forma de entretenimento e isso ajuda muito a diminuir o preconceito, além de mostrar a realidade e colocar o tema em discussão”, se posiciona Bruna.

 

A novela, ao abordar o assunto de forma tão esclarecedora, mostra que somos humanos.

 

“Abre-se um debate nacional”

Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), chegou a enviar uma carta para a Rede Globo em nome da associação, ressaltando o valor da temática, mas com algumas ressalvas. O motivo? Além do homem trans Ivan, a novela tem entre seus personagens a travesti Elis Miranda, interpretada por Silvero Pereira. Mas ela esconde sua real identidade de gênero e, na maior parte do tempo, é vista pelos telespectadores como Nonato, um motorista de terno e gravata.

Keila Simpson é presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra (Foto: Reprodução Facebook)

“A abordagem do homem trans tem sido muito de acordo com o que temos debatido dentro do nosso movimento. Um ou outro excesso sempre ocorre. Cada pessoa que está assistindo é diferente da outra e faz as suas próprias análises. Mas a abordagem com a travesti é uma coisa muito caricatural. Nós da Antra acreditamos que ser travesti é uma identidade definida, não é momentânea. E assim, ela não pode mudar de acordo com o que ela quer, na hora que ela quer. Uma travesti é uma pessoa 24 horas travesti. Ela se identifica com o gênero feminino e não se modifica. E, por conta disso, a novela deixa muito a desejar”, esclarece.

No entanto, Keila garante que só pela novela levar o tema para os lares de milhões de brasileiros já é um avanço na luta em prol dos direitos das pessoas trans: “O debate está aberto. Às vezes nem sempre são favoráveis, como a gente gostaria que fosse, mas é importante que esteja sendo pautado. Acredito que a novela como um todo tem feito o papel dela. Com erros e acertos, tem abordado a temática que para nós é de grande valia. Abre-se um debate nacional, experimenta-se em cadeia nacional essa visibilidade que a população trans precisa e merece ter”.

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