Ao longo dos próximos três meses, Laerte Coutinho dá um close na tela do Canal Brasil com a 4ª temporada de “Transando com Laerte”, seu programa de entrevistas que entra ao ar sempre na faixa da meia-noite, às terças-feiras. “Não é um programa de entrevistas como os outros”, ela já avisa, em entrevista à Híbrida.
No papel de entrevistadora, Laerte carrega suas conversas em tom casual e descontraído, usando suas próprias experiências (e a falta delas) para se conectar com quem divide “a transa”: “Eu procurei acentuar um pouco a característica das outras temporadas, que é conversar com pessoas mais baseadas na minha afinidade com elas do que exatamente na relevância jornalística ou coisas assim. Mas é preciso também frisar que nenhuma pessoa ali está para falar sobre o umbigo. Acho que o que elas têm para dizer é importante”.
Abrindo a temporada, ela recebe Liniker e, ao longo da conversa – que sempre dura em torno de 12 minutos -, as duas criam conexões em torno de interseções sociais como a transição de gênero, abordando também as diferenças entre suas experiências de raça, origem e geração. Com Jout Jout, o papo vai e volta entre a carreira da Youtuber, suas mudanças entre Rio, Portugal e São Paulo, passando até por culinária.
“Ser entrevistadora é muito mais difícil do que ser entrevistada”, Laerte confessa. “Você está no papel de conduzir uma conversa e organizar as falas. É preciso ter sensabilidade e um saber que não sei se tenho. Eu fui meio na louca. Fui convidada e fiz uma experiência com essa linguagem de televisão, como um talk show. Não sei se foi algo bombástico. Fiz o melhor que pude”, explica sobre a experiência que vem assumindo há quatro anos e que, ela admite, nunca tinha sido uma ambição específica.
“Aprendi alguma coisa em relação a essa função [de apresentadora], que é muito específica. Eu gosto de fazer quadrinhos, cartoon e produzir histórias. E diversificar esse trabalho para o teatro ou a TV é interessante, mas não faz parte do meu projeto”, acrescenta Laerte, contando ainda que recebe respostas positivas do público, as quais transforma em “anotações mentais”.
É possível dizer que, desde 2010, Laerte vem experimentando uma forma de “renascimento”, tanto profissional quanto pessoal. Há quase dez anos, ela anunciou publicamente o início da sua transição de gênero na capa da Revista Bravo. Seguiram-se um ensaio nú para a Rolling Stone Brasil, um documentário da Netflix e toda uma militância política que, apesar de não ser inédita na carreira da artista, serviu para coloca-la no centro das discussões sobre gênero e sexualidade dessa nova geração. Hoje, aos 67 anos, ela afirma que encara de forma positiva a maneira com que é abordada por admiradores de seu trabalho e sua trajetória.
“Recebo muito bem essa coisa, porque é uma expressão de afeto mesmo. Estou lidando com pessoas que me querem bem, mas pra mim também foi novidade essa reação. Isso é importante, porque a experiência das pessoas trans no Brasil não é um mar de rosas, é algo difícil. Mata-se e agride-se muito. Eu fico contente em, de alguma forma, ajudar na melhoria dessa situação”, comenta.
Mas, como ela mesma disse, nem tudo foram mar de rosas até aqui. Apesar de ter sido abraçada pela comunidade LGBT+ e transformado-se em uma espécie de ícone tardio da população trans, Laerte também foi alvo de comentários transfóbicos online, tanto do público quanto da imprensa. Em fevereiro de 2017, o jornalista Reinaldo Azevedo disse na rádio Jovem Pan e publicou na versão online da revista Veja uma coluna de opinião na qual referiu-se à cartunista como “baranga moral” e “fraude de gênero”, dentre outras ofensas pessoais.
Eu sabia que esta ação não era só em busca de vitória jurídica, é uma ação de militância mesmo
O resultado foi um processo movido por Laerte contra o colunista e os dois veículos, no qual ela pede uma indenização de R$100 mil. Apesar de ainda estarem recorrendo, Laerte já venceu na 1ª instância e na apelação, no que se configurou em vitória dupla, para ela e para a população trans. Para além da punição contra ofensas transfóbicas, Laerte abriu o processo com Paulo Iotte, Ana Carolina Borges e Márcia Rocha, a primeira advogada a ter sua identidade de gênero alterada na Ordem dos Advogados do Brasil e também a primeira a fazer uma sustentação oral com seu nome social no Tribunal da Justiça.
“Foi uma escolha muito consciente”, explica Laerte sobre a escolha de Márcia para representa-la. “Eu sabia que esta ação não era só uma ação em busca de vitória jurídica, é uma ação de militância mesmo. O significado dela pra mim foi sempre muito claro. E acho que essa vitória até agora tem tido um significado para o movimento”.
Em todo o processo, há uma certa ironia subliminar do destino, já que Laerte colaborou no passado com a revista Veja. Pergunto a ela como era estar inserida em redações conhecidamente homofóbicas e transfóbicas, me referindo especificamente ao caso d’O Pasquim, a revista na qual ela também contribuiu e que se tornou sinônimo de resistência democrática durante a Ditadura Militar, ao mesmo tempo em que zombava de gays e travestis. Havia um incômodo por parte de Laerte? Isso chegava a pesar na autorrepressão da sua sexualidade?
Eu fui driblando o desejo pela vida afora. Durante mais de 30 anos, eu tentei entender minha sexualidade como um episódio isolado na minha juventude
“Questões de identidade de gênero, para mim, não se colocavam naquela época. Há não ser quando comecei o processo, em 2004. O que eu sabia era da minha orientação sexual, e eu tinha muito medo disso”, ela confessa, acrescentando que sempre tentou reprimir sua atração por homens.
“Eu escondia e ficava me bloqueando nisso de transar com homens. Eu fui driblando o desejo pela vida afora. Durante mais de 30 anos, eu tentei entender minha sexualidade como um episódio isolado na minha juventude. Eu achava que era algo superado. Quando colaborei com O Pasquim, não me considerava no espectro LGBT. Nem havia esse termo ainda – eram as bichas, que podiam ser alvo de piada. Existia um relaxamento em relação ao respeito, que era muito comum. Isso não serve de desculpas nem nada, mas a gente sabe que era assim”, explica.
Em tempos onde a polarização política e ideológica tem criado extremos e intolerância de ambos os lados, Laerte ainda acredita que é possível criar conscientização através do diálogo: “É um processo de evolução, que vai levar sabe-se lá quanto tempo. O importante é que ele foi iniciado e as pessoas que estão envolvidas estão conscientes de que ele acontece. As vezes aparece alguém falando que é exagero, politicamente correto ou censura. Mas é isso, não tem como voltar atrás. A população LGBT não vai voltar pro armário, as mulheres não vão voltar pra cozinha e os negros não vão voltar pra senzala, como bem tweetou a Pitty. Estamos aí, cara a cara, e vamos conversar”, afirma.
Em seu Twitter, rede social na qual se mantém mais ativa, Laerte posta constantemente notícias sobre violações de direitos humanos, manobras políticas e debates que nem sempre ganham a devida cobertura da mídia tradicional. Para ela, há ainda o “fenômeno” das pessoas que pedem a volta da Ditadura Militar. “Essa proposta é indefensável. Se a pessoa defende essa posição, não dá para levar a sério porque é de muita estupidez. Nem os militares aguentam esse tipo de coisa”, comenta, citando também o caso da mulher que foi condenada à esterilização pela justiça de São Paulo. “Se um juiz fez isso, fez porque está se sentindo Deus e investido de um poder divino, que decide vida e morte”, diz em tom irritado.
A eleição tem que acontecer, Lula tem que ser candidato e tem que ser algo com liberdade. Este é um momento dramático
Outra preocupação que vem rondando Laerte se dá em relação às eleições presidenciais de outubro deste ano. “Ela se dá em um cenário com um preso político, que é o melhor candidato nas pesquisas e está encarcerado em um processo completamente discutível. Então, tudo o que está acontecendo em torno da prisão do Lula me faz pensar que essa eleição tem uma anomalia grave. Essa é a primeira questão a se pensar. Existem outras, como o perigo de não haver eleição”, pondera.
No horizonte, além de continuar com a produção de seus desenhos, Laerte prepara um livro no qual pretende traçar um paralelo entre a história da política e do sexo. “Eu estou produzindo uma história vagamente memorial. Não é uma autobiografia. Tá indo bem, estou construindo o roteiro e experimentando a dimensão dele, porque tecnicamente a minha proposta inicial é muito ampla. Entre o projeto original e o resultado, há o processo de fazer, que normalmente costumar diversificar bastante”, explica.
Para terminar o papo, Laerte volta ao tom bem humorado e diz acreditar que a Copa do Mundo seja um lazer necessário à população brasileira, que ainda tem um futuro político incerto pela frente: “Coitada da Copa! A pobre Copa vai ter que acontecer, e tomara que as pessoas se divirtam. Eu não curto jogo e nem torço pra times, mas também não quero que as pessoas percam o que as diverte”.