Depois de dois anos enfurnados em casa ou vivendo como dava um modelo híbrido, a maioria dos estudantes brasileiros retornou para as aulas presenciais nesta semana. No caso de alunas transexuais, isso significou a retomada de uma rotina de agressões e humilhações na vida escolar, com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) notificando duas violações nos Estados do Rio e de São Paulo em menos de 24 horas.
Nas redes sociais, viralizou o vídeo do espancamento de uma aluna em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, durante a última quarta-feira, 9. Não vou colocá-lo aqui porque penso que, assim como eu, vocês também não terão o estômago forte a ponto de assistirem a uma adolescente recebendo socos, chutes e empurrões até quase desmaiar sem que isso estrague o resto do dia.
O caso aconteceu na Escola Estadual Galdino Pinheiro Franco e teria começado após a aluna se irritar quando os colegas continuaram se referindo a ela propositalmente pelo gênero masculino. O próprio chefe de gabinete da Secretaria Estadual da Educação, Henrique Pimentel, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo que, de acordo com as informações preliminares, “tem a inclinação a acreditar” que a violência contou com motivação transfóbica.
Segundo o Fórum Mogiano LGBT, os relatos de alunos da escola dão conta de que a estudante trans vinha sofrendo há tempos discriminação e bullying, “até que não suportou tais agressões”, e reagiu. O resultado foi o que classificaram como uma “briga generalizada” durante a qual ela foi acuada e espancada.
O outro caso notificado pela Antra não chegou à agressão física, mas também passa pelo desrespeito à identidade de gênero e ao nome social de uma aluna repreendida por usar o banheiro feminino no Liceu Nilo Peçanha, em Niterói. No Instagram, Nicole Barbosa relatou o ocorrido e disse que, após procurar a diretoria também na última quarta, foi orientada a usar o banheiro masculino para pessoas com deficiência.
Em apoio a Nicole, alunos e ativistas fizeram um ato nesta quinta-feira, 11, em frente ao Liceu Nilo Peçanha, que contou ainda com a presença da vereadora trans Benny Briolly (PSOL).
Apesar de só termos conhecimento desses dois casos citados acima, eles expõem como uma educação inclusiva se torna mais urgente a cada novo ano escolar. E seria muito fácil acreditar que o problema surgiu na atual administração federal, a qual faz questão de confundir propositalmente o ensino da inclusão com “incentivo sexual” ou pregação da suposta “ideologia de gênero”, mas a verdade é que essa bola tem sido chutada para escanteio desde sempre.
Não bastassem as falácias do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre a distribuição de um inexistente “kit gay” nas escolas, ainda em 2019 o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), se opôs ao que chamou de “apologia à ideologia de gênero” (sic) em livros didáticos distribuídos no Estado.
Já no ano passado, durante sua participação no Roda Viva, ele voltou a defender seu posicionamento, apesar de ter falado contraditoriamente que era a favor da discussão sobre identidade de gênero nas escolas, mas não ao que chamou de “apologia a este tema”. “Existe identidade de gênero. Mas você não pode impor isso a uma criança que frequenta uma escola. Você pode debater esse tema, mas impor a ela com material didático, não. Nisso não houve nenhum arrependimento”, disse.
As consequências da falta de um ensino que aborde esses tema foram vistas essa semana, em Mogi das Cruzes e em Niterói: alunos e profissionais escolares, quando não estão apenas despreparados, contribuem para um ciclo de transfobia que passa pelo desrespeito ao gênero e culmina na violência física, empurrando ainda mais a comunidade trans para as margens da educação formal.
Em um levantamento que fiz para o Estadão em 2018, descobrimos que apenas 0,1% das matrículas em universidades federais àquela época eram de alunos trans. Já uma pesquisa nacional divulgada pela Todxs em 2020 apontou que sete em dez alunos LGBTI+ do ensino médio tinham medo de se assumirem como tais durante a vida escolar.
A educação é a principal porta de transformação social no Brasil e no mundo, mas precisamos que ela também seja uma ferramenta de inclusão para que o nosso País deixe de ser o campeão mundial de assassinatos da comunidade trans e seu acesso, como propõe a Constituição Federal, seja verdadeiramente universal.