Um dos nomes mais reverenciados na cena LGBTQIA+ nacional, Ikaro Kadoshi chegou a um novo e há muito devido patamar de reconhecimento quando aceitou o convite para apresentar Caravana das Drags ao lado de Xuxa Meneghel. Misturando a fórmula de outras competições enquanto leva dez drag queens em um ônibus à la Priscila para competirem pelo Brasil, o reality show do Prime Video encerra sua primeira temporada na próxima quinta-feira (25), deixando uma marca transformadora e inesperada na carreira do artista, que começou sua metamorfose há mais de 20 anos.
“Uma das magias do Caravana é mostrar o Brasil e a drag queen brasileira. Eu mesmo aprendi muito sobre as culturas dos estados”, admite Ikaro em entrevista exclusiva à Híbrida. “E dentro de uma competição… Penso que, além de tudo, estamos educando as pessoas e levando informações que elas talvez não tivessem. É muito lindo fazer parte disso”, comemora.
Cada um dos nove episódios do reality show foi centrado na cultura regional de um estado brasileiro, que ditava o tom dos desafios encarados pelas dez participantes. Ikaro, entretanto, acredita que a primeira temporada, gravada entre abril e junho do ano passado, apenas tocou na superfície de toda a diversidade que o Brasil tem a mostrar – e torce para que o programa ganhe uma nova leva de episódios.
“O Caravana criou um monstrinho dentro de mim, porque agora penso ‘a gente podia ter feito isso ou aquilo’. Mas gravamos muito e muita coisa ficou fora, óbvio, pela limitação do tempo do episódio e da edição”, aponta. “Não podemos esquecer que a primeira temporada em um formato novo não deixa de ser experimental. Então, numa segunda, vai ser completamente diferente pelos aprendizados do que funcionou ou não. Mesmo assim, estou extremamente orgulhoso do resultado. Só quem participou da gravação sabe o que foram esses três meses.”
Antes mesmo de ter estreado ou liberado um teaser sequer, Caravana das Drags dividiu opiniões entre membros da comunidade LGBTQIA+ graças ao anúncio de que o reality seria co-apresentado por Xuxa. Enquanto uns criticaram a participação de uma mulher cisgênera à frente de um programa sobre a arte drag, outros defenderam que a Rainha dos Baixinhos já tinha conquistado há décadas o seu lugar como aliada na luta pelos nossos direitos e viram com bons olhos a atenção que seu nome traria ao projeto (escrevi sobre o tema aqui).
“Esses comentários não deveriam ser feitos pela falta de conhecimento da história, né? Se a gente olhar o Brasil, temos vários homens héteros e mulheres fazendo drag queens”, defende Ikaro, citando exemplos como Rosicleia e Elke Maravilha. “Todo mundo vê isso na televisão desde a década de 1980. As pessoas utilizam-se de desculpas para serem LGBTfóbicos e misóginos – não podemos esquecer que a comunidade também é forjada pelo machismo. Todo resquício do feminino, tentam cortar. Por isso que travestis, transgêneros, transexuais e gays afeminados sofrem tanto.”
Ikaro reforça que a raiz principal da arte drag está na utilização dos símbolos e signos femininos. “Se você proíbe ou diz que uma mulher não pode fazer drag, está cometendo um crime. É você extirpar aquela que doa tudo o que a gente aprende. É muito absurdo pra mim. E quando coloca especificamente a história de Xuxa, que ainda fazia montação toda semana nos programas e quebrava essas expectativas da estética com bota, peruca, maquiagens, ombreira e roupas que, hoje, só uma drag queen usaria.”
Pulando do precipício
Sua história pessoal com Xuxa começou ainda na infância vivida em São José dos Campos, no interior de São Paulo, quando a mãe colocava ele e os dois irmãos para assistirem aos programas da loira na tentativa de distraí-los do abuso físico que sofria do marido. “Mamãe sempre tentou transformar a vida de casa no mais lúdico possível para que a realidade não batesse a porta. Ela tentou de todas as maneiras tirar essa dor para que não tivéssemos tanto sofrimento”, lembra.
O divórcio dos pais veio quando Ikaro tinha 8 anos, cinco antes de ele se entender como gay. Quando o momento chegou, conta, o adolescente acreditou que seria inevitavelmente expulso de casa, da mesma forma que via acontecer com tantas pessoas LGBTQIA+, e chegou a fazer um trouxa com todas as suas roupas antes da conversa.
“Na minha época era mais complicado porque a homossexualidade ainda era considerada uma doença pela OMS“, lembra. Mas a reação que teve ao contar o “segredo” para a mãe, a irmã e o irmão à mesa de jantar foi o oposto do que ele imaginava: “Falei ‘Olha, estou aqui pra dizer que sou gay’. Foi aquele silêncio mortal e mamãe, muito calma, respondeu: ‘Está tranquilo, eu sempre soube'”.
Mais do que acolhimento, o momento de sinceridade protagonizado por Ikaro impulsionou ainda outras duas confissões: sua irmã aproveitou o embalo para anunciar que era lésbica e a mãe confessou que também era bissexual. “Não vou mentir, não. A primeira coisa que pensei foi: ‘Você está tirando o meu momento?!'”, diz, entre gargalhadas.
“Meu porto seguro e a minha raiz, a minha árvore que não quebra nunca, veio desse momento. Quando ouvi da minha mãe que ela me entende de maneiras que jamais imaginei, abri uma linha de comunicação que poucas pessoas têm”, comenta Ikaro. “Conversamos sobre absolutamente tudo! Sobre as experiências dela, as minhas… Temos uma relação tão forte de amizade que me ajudou a tolerar tudo fora de casa.”
Para um jovem gay crescendo no interior do Brasil durante as décadas de 1980 e 1990, esse “tudo” significava ataques aleatórios na rua, como o que sofreu quando foi chamado de “viadinho” por um desconhecido ainda aos 9 anos; a perseguição incessante na escola, onde passou a adolescência com medo de usar o banheiro e precisando de escolta para sair das aulas; ou até a rejeição da própria família, seu maior medo tornado realidade pela família paterna.
Na época que contou sobre sua homossexualidade para a mãe, Ikaro tentou fazer o mesmo com o pai durante uma das raras e traumáticas visitas que ele fez ao filho. “Depois de me assumir, ganhei uma força que não sabia que tinha. E aí, ouvi as grandes atrocidades da minha vida que jamais esquecerei”, lembra, deixando transparecer discretamente pelo tremor na voz como isso ainda o abala.
Ao revelar sua homossexualidade, Ikaro foi acusado de desonrar o nome da família paterna, que o proibiu de manter contato e disse que ele “devia trocar de calçada” se encontrasse com algum deles na rua. Do pai, ouviu “onde foi que eu errei?”. Mas foi do avô que o rapaz sofreu os abusos mais graves, como um exorcismo, uma tentativa frustrada de forçá-lo a transar com uma prostituta, sessões de hipnose e consultas psicológicas, tudo em busca de uma “cura”.
“Existe um custo alto para viver quem se é? Existe! Mas vi mamãe, mesmo com todos os sofrimentos, tendo as rédeas da vida nas mãos”, conta. “Ver, viver e ser ensinado por isso me fez ser essa pessoa que pula do precipício sem pensar o que tem lá embaixo. Dói às vezes?! Muito.”
Drag queen, a cola da noite
A primeira vez que Ikaro Kadoshi viu uma drag queen foi na infância, quando assistia ao Show de Calouros apresentado no SBT por Sílvio Santos. Mas seu primeiro encontro ao vivo com uma só chegaria mais tarde, aos 16, quando pegou um RG falso e foi com a cara e a coragem ao bar Divina Ciência, em São José dos Campos.
“O que mais me encantou, de verdade, foi a função social que a drag queen tinha e se perdeu – pela modernidade e principalmente pela internet, que se transformou na mãe de todos. Naquela época, se você tivesse dúvida ou quisesse aprender, tinha que ir direto na fonte”, conta.
Sozinho no bar, ele observava enquanto a drag passava o correio elegante entre os clientes e juntava os lobos solitários em pares, para amor ou amizade. “Ela era a cola da noite. E fazia com que a timidez e as dores das pessoas sumissem, porque fazia todo mundo se conhecer”, lembra.
Quando decidi ser drag queen, perdi todos os meus amigos
Com uma “timidez quase patológica”, ele se encantou com a função social e desenvoltura das drag queens. A partir daquele dia, começou a frequentar os camarins, onde observava as montações e aprendia os truques por osmose. Em 1999, ele conheceu Romana Rose, com a qual dividia a paixão pela mitologia greco-romana e por quem foi batizado de Ikaro.
“Comecei a me olhar de outra forma depois que ela falou isso. Até então, nunca tinha parado pra pensar que poderia me montar”, confessa. “Quando decidi ser drag queen, perdi todos os meus amigos. Naquela época, era queimação de filme. Achavam lindo no palco, mas ninguém queria ser visto perto ou andar de mãos dadas…”
A partir daquele momento, o recém-nascido Ikaro começou a pensar em como “fazer algo diferente do que via” e passou a se enxergar como um quadro em branco. “Queria fazer algo que fosse meu”, explica. “Tento tirar o máximo que posso dessa coisa de não ter rotina e de me pintar de outras maneiras pra não me ver sempre igual.”
Aos poucos, ele foi se aprimorando e experimentando maquiagens, personagens e estéticas com inspirações que iam do batom escuro que sempre viu a mãe usar à androginia de figuras como Vera Verão e David Bowie. Na cena paulistana, aprendeu “com as maiores” como Márcia Pantera, Silvetty Montilla e Dimmy Kieer, a ter desenvoltura no palco, criar um espetáculo e manter conexão com o público.
“Não sei se é sorte, mas tive um carinho e cuidado delas porque não incomodava ninguém com a minha estética. Só queria fazer o meu trabalho e também ajudava todo mundo”, conta. “Óbvio que ninguém é unanimidade. Mas, mesmo pessoas que não gostam de mim e chegaram a declarar isso abertamente, trato com respeito.”
A voz da drag queen e o olho no olho
Hoje, duas décadas depois, Ikaro é reconhecido como um camaleão multifacetado da arte drag no Brasil, capaz de sustentar lip syncs, apresentar programas (antes do Caravana, foi um dos nomes à frente do Drag Me As A Queen, do E!), fazer shows completos, como seu número anual no Baile do Bowie e rodar o país.
“Acho que é o conjunto da obra mesmo”, responde Ikaro, quando perguntado sobre qual é seu ponto forte. “O encantamento por todas as drags vem quando você está pronto e faz a sua arte. Independentemente de qual seja.”
Nesta era em que a internet é a “mãe de todos”, o boom recente de drag queens no Brasil e no mundo forma um cenário geral diferente do que Ikaro encontrou quando começou a se montar. Hoje, elas ocupam não só as baladas de nicho, mas se espalham por charts, redes sociais, plataformas de streaming, TV e publicidade, onde encontram espaço para se desenvolverem como intelectuais, cantoras, atrizes, apresentadoras, maquiadoras e toda uma infinitude de funções que lhes eram negadas há até pouco tempo.
“A drag queen não teve muita voz ao longo da história, né?!”, observa. “Pra mim, nunca foi chegar em lugares novos, é só retomar o que é nosso de direito. Se todas as artes são consideradas sagradas e grandes, a drag queen tem que estar entre elas. O encantamento hoje, além de estar montado, é quando pegamos o microfone e falamos de várias maneiras e sobre vários assuntos. E a gente tinha muita coisa guardada para falar.”
Estou vivendo um sonho e não quero acordar dele tão cedo
Apesar de reconhecer que a internet tem ajudado a criar comunidades online de apoio e acolhimento, principalmente para quem vive longe dos grandes centros urbanos, Ikaro lamenta a perda do “olho no olho”. “Você hoje ganha a liberdade de aprender com o toque de um celular, mas perde a chance de aprender através das vivências de outra pessoa”, observa.
Ikaro se considera “uma das poucas remanescentes que ainda é uma mãe drag de vários filhos”, dentre os quais conta os dez competidores do Caravana: “A gente tem um grupo e eu conheço as famílias de todas. Ligo pra saber se tá bem, se tá comendo, se precisa de alguma coisa, empresto roupa, maquiagem, essas coisas”.
De certa forma, Ikaro faz questão de manter e passar adiante às novas gerações tudo o que viveu, aprendeu e as ajudas que teve ao longo da carreira. Ele mesmo teve uma experiência de “ciclo completo” durante uma conversa com Xuxa, enquanto ambos se preparavam para as gravações do Caravana.
“A gente começou a conversar sobre a vida e pude contar ao vivo a história da minha mãe. Ela pediu pra ligar pra minha mãe e minha mãe chorava agradecendo, essas coisas todas”, conta. “E ela falou ‘Pedi a Deus, quando conheci seu trabalho, pra ser você. E Deus atendeu’. Quando saí, mandei pra ela que estava feliz e ela respondeu ‘Você é o presente que faltava pra esse programa acontecer!’. Tirei print e vou transformar isso em um quadro”, ri o artista, deixando no ar se está falando sério ou não.
O desejo de Ikaro é que uma segunda temporada de Caravana das Drags seja aprovada pelo Prime Video e dê a oportunidade de o programa explorar ainda mais a diversidade regional do Brasil, aperfeiçoando seu formato como ele mesmo fez com a sua arte. “Não vejo a hora de a gente mostrar muito mais para quem for assistir aqui e no mundo. É só o que eu desejo. A gente só sabe para onde vai se souber de onde veio.”
“A gente nunca entende os caminhos da vida. Eu, de verdade, nunca imaginei que estaria sendo apresentador de um programa que fala sobre a minha arte, mas de uma maneira muito bonita”, afirma. “Estou vivendo um sonho e não quero acordar dele tão cedo.”