*Com João Ker
Principal semana de moda no país, pelo menos no que diz respeito à criatividade e à inovação, a 43ª edição da Casa de Criadores ocupou o Museu da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo entre os dias 23 e 27, trazendo o que faz de melhor: moda como expressão artística e ferramenta que, para além da comercialização, também procura levantar reflexões sobre a sociedade em que vivemos.
Abaixo, nós listamos os 7 momentos em que essas características apareceram mais fortes na passarela da Casa de Criadores, trazendo uma celebração e um resgate histórico da cultura LGBT no Brasil. Confira:
1 – A POPULAÇÃO LGBT+ E O ABANDONO FAMILIAR
Inspirado pela população LGBTQ+ em situação de rua, a nova coleção de Weider Silveiro, exibida no segundo dia da Casa de Criadores, foi do ativismo à poesia. Estampas que passaram pelo animal e pelo geométrico, plástico, oversizing, telas, capuzes e uma diversidade de elementos utilitários – pensados para que essas pessoas pudessem carregar consigo o máximo de objetos possíveis – foram desfilados por um casting que contou com as presenças de gente como Neon Cunha, Johnny Luxo e Max Weber.
2 – REGSATANDO O EMO E DENUNCIANDO A HOMOFOBIA
Desde meados de 2016 que a internet brinca com o suposto retorno do emo. Em seu desfile deste ano, Felipe Fanaia – que adora manter sua identidade no oversize –, pareceu querer trazer a brincadeira para a realidade, com uma coleção inspirada no emocore, repleta de franjas e olhos pretos pela passarela. O motivo da inesperada escolha? Além de significar muito para os adolescentes da última década, tanto por sua sensibilidade aflorada quanto pelas doses de melodrama, o emo ajudava e se tornava uma expressão identificável também para aqueles que, condenados pela sociedade, sofriam da homofobia.
A referência aparece de forma literal desde a abertura: o primeiro som que os convidados escutam é o da mãe de Felipe, dizendo-se orgulhosa do filho e de seu desfile; na sequência, uma coreografia de guarda-chuvas ao som de “Helena”, do My Chemical Romance, presença imprescindível em qualquer playlist de emo; uma criança de cabelo roxo aparece correndo pela passarela e, em seguida, o primeiro modelo entra com o uniforme do colégio que Felipe estudou na infância e a palavra “Bicha” escrita nas costas, logo depois de a plateia ser bombardeada por uma enxurrada de notícias sobre assassinatos de LGBTs no Brasil. A apresentação ainda contou com a presença de Serginho Orgastic, ícone da cultura emo online desde os dias pré-BBB; e uma performance ao vivo do cypher Quebrada Queer, o primeiro grupo LGBT desse segmento no Brasil, que se parece deslocado em relação à estética emo da coleção, ao mesmo tempo ilustra como os tempos estão mudando e, hoje, as crianças que antes choravam ao som do emocore podem encontrar força e representatividade nas novas vertentes do rap.
3 – INFÂNCIA MACULADA
Abrindo o line-up da quarta-feira (25), terceiro dia de evento, Fernando Cozendey apresentou a segunda parte da trilogia sobre sua trajetória, iniciada na última edição e intercalada entre infância (batizada aqui de “MACULADA”), puberdade e idade adulta (apresentada anteriormente como “PERFEITA”). Desta vez, Cozendey abandona o preto onipresente na última coleção e mergulha no bege, apostando em tules e transparências, mas deixando para trás os fios de lycra que permearam sua carreira até aqui e só apareceram nos tapa-sexos. Retratando os primeiros estágios da vida de maneira lírica e reimaginando ícones infantis como Papa-Léguas, Margarida e Smilinguido, o estilista combinou a poesia da coleção com um tema pesado: o abuso sexual infantil e a pedofilia. Os indícios aparecem de forma subliminar na passarela, assim como na vida real, ora pela beleza de Max Weber com o batom vermelho borrado, ora pelos acessórios de cerâmica em formato de chupeta, contrastando com a nudez e vulnerabilidade dos corpos expostos.
4 – À CAÇA, EM MADRI
Levando a platéia diretamente Chueca (não confundir com chuca), região de Madri que historicamente abriga a Parada do Orgulho LGBT da cidade, assim como uma porção de estabelecimentos voltados para esse público, Rafael Caetano apresentou sua divertida “Madrileño“. Enquanto alguns de seus colegas resolveram focar em aspectos mais pesados da vivência LGBT, o estilista apostou no lado divertido e irreverente da comunidade, espalhando referências de arco-íris na maquiagem, nas roupas e nos acessórios, além de estampar peças com gírias como “Sugar Daddy”, “Ay Caramba” e “Ay que rico”. Referências a “Má educação”, de Pedro Almodóvar, espalham-se por moletons, lycras, transparências de náilon e brilhos de paetê, enquanto camisas amarradas na cintura e até mesmo uma referência ao Grindr, transformado aqui em Hunter, indicam que o estilista soube aproveitar muito bem seu tempo na cidade.
5 – O BITCHWEAR FEMINISTA DA KEN-GÁ
Quem já acompanha o bitchwear da Ken-gá pelo styling de estrelas como Gaby Amarantos, Valesca Popozuda, Anitta e Karol Conká e vê seu desfile na passarela do MAC USP não diria que essa foi a estreia da marca na Casa de Criadores. Com show de Verónica Valenttino, da banda “Veronica Decide Morrer“, as estilistas Lívia Barros e Janaína Azevedo inspiraram-se em Eike Maravilha para compor o repertório de texturas metalizadas, transparências, estampas animais e os conhecidos macacões-desejo da grife, como o desfilado por Aretha Sadick. O desfile, um dos mais memoráveis desta 43ª edição, começou com uma saia formada por camadas de tule recortadas para simular uma vagina com clitóris de cristal e terminou com Valeska Reis exibindo o corpo nu coberto de “sangue”. No casting, pluralidade de corpos, em cores, tamanhos e gêneros, com direito a Aretuza Lovi exibindo o tucking perfeito.
6 – RESGATE HISTÓRICO NA PASSARELA
Isaac Silva, que ano passado falou sobre a resistência da cultura negra em uma coleção trabalhada na estamparia afro, desta vez faz mais uma viagem histórica às suas raízes baianas e repete o tom político, porém dando enfoque ao corpo e resistência das mulheres transexuais no Brasil. Para tal, o estilista encontrou sua musa em Xica Manicongo, a primeira travesti não-índigena registrada no Brasil, ainda em 1591.
A apresentação começou com uma performance de Urias cantando versão trap de“Geni e o Zapelim”, de Chico Buarque, e abrindo um casting composto apenas por modelos trans. Com isso, nomes como Jup do Bairro e a ativista Neon Cunha (que assina o texto lido na abertura) desfilaram looks em preto e branco repletos de referências à cultura afrobrasileira, resgatando através de tranças, estampas, silhuetas e acessórios uma narrativa nem sempre contada no país. O final, com Aretha Sadick encarnando uma divindade com direito a manto e turbante, funciona como apoteóse da mensagem passada pelo estilista: o Brasil, mais de 500 anos depois, ainda não aprendeu a respeitar nem os corpos negros, nem xs trans. É como leu Magô Tonhon no início do desfile: “Só faremos algum progresso quando mulheres, que sempre foram marginalizadas na categoria ‘mulher’ e sempre tiveram que batalhar, tornarem-se o símbolo dessa categoria”.
7 – RELEMBRANDO A SÃO PAULO DOS 80s
Tão empolgantes quanto os conceitos festivos dos desfiles de Rober Dognani são as suas execuções. Repetindo um pouco da nostalgia presente na edição passada – quando comemorou 15 anos no evento -, Dognani agora decide reviver os anos 1980 de uma maneira mais poderosa e brilhante: interpretando uma noite no Gallery, boate de São Paulo onde nomes como Xuxa, Roberta Close, Hebe Camargo e Monique Evans apareciam para dar pinta. Como é de se esperar pelo tema, ombreiras, paetês, metalizados, mangas bufantes e demais exageros compuseram a passarela na última sexta-feira (27).