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A história do primeiro grupo LGBT+ reconhecido pelo governo da Angola

A história da Associação Íris, o primeiro grupo LGBT+ reconhecido pelo governo da Angola

A Revista Híbrida foi até Angola via telefone para conversar com o ativista Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris, a primeira organização LGBTI+ oficialmente reconhecida no país, criada em 2015.

Com a aprovação do seu Novo Código Penal, que começou a ser discutido apenas em 2019, a Angola revogou uma antiga lei colonial portuguesa do século XIX que criminalizava a homossexualidade com pena de prisão. O país então começou a investir em bandeiras de diversidade e aceitação, a passos pequenos na direção oposta do que era institucionalizado até então. Ainda antes desse movimento, surgiu a Associação Íris, a partir de um grupo de amigos que organizavam festas para a comunidade LGBTI+ em Luanda.

Foi em um desses eventos que Carlos e sua equipe conheceram a equipe do Internacional de Serviços Públicos (PSI, na sigla original), um sindicato global de trabalhadores da saúde que financia e defende a criação de políticas públicas de saúde desde 1907. A equipe do PSI entrou em contato com o ativista e informou que gostaria de iniciar uma parceria com ele e seus amigos, para garantir a distribuição de preservativos e lubrificantes nos eventos e festas da Íris.

Dessa parceria, um verdadeiro movimento começou a se espalhar como uma corrente pela comunidade LGBTI+ da Angola, através de ações de saúde e educação formadas por parcerias com o governo local e entidades internacionais. Em entrevista exclusiva, Carlos conta como essa história de pioneirismo, coragem, muito trabalho e amor aconteceu.

Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris Angola (Foto: Arquivo Pessoal)
Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris Angola (Foto: Arquivo Pessoal)

HÍBRIDA: Como surgiu a ideia de criar uma associação LGBTI+ na Luanda?

CARLOS FERNANDES: Nós começamos a realizar algumas festas para a nossa comunidade que começaram a ficar muito populares, vinham pessoas inclusive de outras províncias. Por causa desse sucesso, ONGs como o PSI Angola entraram em contato conosco e perguntaram se poderiam distribuir camisinhas e lubrificantes nos eventos. A partir daí, começamos uma parceria. Passamos a realizar um trabalho de voluntariado no PSI e fomos o primeiro projeto de saúde sexual para homens que fazem sexo com homens.

Fomos contratados pelo PSI como assistentes e líderes do movimento LGBTI+. Em troca, queríamos apoio enquanto instituição e que todos os trabalhos feitos, apesar de ainda não termos estatuto, fossem creditados ao PSI Angola e à Associação Íris. Fomos pras ruas e fizemos clínicas móveis operadas especificamente por LGBTs para sensibilizar as pessoas. Também tivemos eventos fugindo do foco sobre o VIH (HIV), para não estigmatizar a comunidade.

Através da Saúde, tu consegues encontrar vários atores públicos no mesmo lugar. Então, consegue-se fazer com que eles todos comecem a conversar sobre isso. Além de conversa, foi também uma forma de começarmos as discussões com as autoridades, mas não de maneira pública. Acho que nossa luta foi mais de construções com o próprio Estado do que por fora. Muitas pessoas viram o Novo Código Penal e sentiram uma evolução.

H: E essa foi uma vitória muito grande do movimento, a de descriminalizar a homossexualidade…

CF: Em si, não muito. Aqui na Angola ninguém nunca foi preso por tal dita lei. Então, na prática, ela não funcionava, mas também era uma barreira para dialogar com estes ministérios todos que o governo tem. Se ainda tivéssemos a lei, seria muito mais difícil.

Equipe da Associação Íris Angola durante um dos grupos de trabalho da organização (Foto: Arquivo Pessoal)

H: Com uma lei assim, o governo não pode agir com políticas públicas para essa população. De certa forma, então, ela foi mais importante para a burocracia do movimento?

CF: Sim, mas alguns deles, antes mesmo do novo Código Penal, avançaram. Nós trabalhamos além da Saúde, a questão da Educação. Há alguns anos, o próprio Ministério da Educação juntou-se à UNICEF para criar um manual de educação básica. Foi um processo em que nós também estivemos envolvidos, porque incluía jovens dentro e fora da escola. Conseguimos incluir no manual questões sobre orientação sexual, identidade de gênero e bullying. Havia também um título sobre violência doméstica e isso tudo.

Antes, não havia ninguém que se levantasse e falasse sobre o assunto. No governo do antigo presidente, mesmo com seu filho Coréon Dú sendo homossexual, as pessoas que estavam em lugares de destaque não queriam falar sobre a questão porque tinham sempre aquela ideia de “se eu falar mal, vou falar contra aquela pessoa também”.

H: Então teve uma aceitação maior porque ninguém criticava o filho do presidente?

CF: Sim… Também temos a questão do próprio Córeon Dú, porque ele fez algumas novelas na Angola que abordaram o tema muitos anos antes do Código Penal. Houve novelas com lésbicas, mas que não tiveram tanto impacto como quando tivemos “Jikulumessu – Abre o Olho”, nossa primeira novela com casal e beijo gay. Isto, por acaso, foi há alguns anos e só falavam do beijo, ela chegou a ser interrompida por uma semana.

Beijo gay na novela “Jikulumessu” fez folhetim ser suspenso por uma semana na TV angolana (Foto: reprodução)

Na questão de Direitos Humanos, tivemos não só a conquista da descriminalização no Código Penal, mas também somos um dos poucos países na África onde as populações-chave se reconhecem como LGBT, não como homens que fazem sexo com homens (HSH). Nos outros países, é muito difícil usar a sigla porque os outros gêneros são invisibilizados.

Também estivemos envolvidos na criação de um livrinho de bolso, “Carrega aí os seus Direitos”, que fala sobre cidadania para a população que sofre de maneira geral, e que creio não ser muito diferente do Brasil. Muitas das vezes, as pessoas estão a ser violadas e nem sabem ou ainda acham que merecem, pela formação ou pela própria ideia que tem de si própria. Trabalhamos com a Anistia Internacional e com o próprio Ministério da Justiça, que são pessoas espetaculares, sempre abertos e disponíveis para conversar com a gente.

Temos que entender o que a sigla LGBT representa geograficamente no mundo e não tem como padronizarmos a comunidade, enfrentamos várias barreiras diferentes

Os fundos são normalmente voltados ao tratamento e prevenção de VIH (HIV) e são alocados com uma ideia muito padronizada de países europeus ou norte-americanos. Temos que entender o que a sigla LGBT representa geograficamente no mundo e não tem como padronizarmos a comunidade, enfrentamos várias barreiras diferentes.

Na Angola, nossa comunidade é majoritariamente pobre, de extrema pobreza. Muitos têm dificuldade de alimentação diária. Tivemos alguns avanços, primeiro com a criação de movimentos LGBT. Hoje, já temos por exemplo a Associação de Arquivo de Identidade Angolano (AAIA), um movimento de lésbicas com uma casa de abrigo que normalmente oferece alimentação, mini-lavanderia e outros tipos de ajuda.

H: Você mencionou que a Associação começou a partir de uma festa. E como é que funciona a noite gay da Angola? Tem muita festa, bar, casas de show, boate dedicada ao público?

CF: Não, ainda não temos um bar especificamente LGBT. Temos festas LGBT, mas elas continuam na mesma divisão: temos o primeiro grupo, mais antigo e que é referência, e quando fundamos a Associação, três anos depois ou algo assim, também começamos a realizar festas. Para se ter uma ideia, tanto na festa das divas ou na da Associação, temos eventos com 300 pessoas em média, não só da comunidade.

Quando falamos da noite angolana, a realidade é que em qualquer evento sempre é possível fazer pegação, porque nosso problema de discriminação e estigma é só na família. A dinâmica de relacionamentos acontece também em eventos não necessariamente específicos. Até dizem que alguns LGBTs preferem ir a festas héteros do que às festas LGBT.

Em junho de 2018, a Associação Íris Angola se tornou o primeiro grupo LGBTI+ reconhecido oficialmente pelo governo do País (Foto: Arquivo Pessoal)

H: E aplicativos, vocês usam? 

CF: Não… Alguns usam o Grindr, ou algo assim. Mas, normalmente, o que se usa são grupos de chat dentro do Facebook. É onde vais encontrar não só a comunidade LGBT, mas como a comunidade hétero também.

H: E existe uma cena de produções Drag, com montação e shows de Drag Queens?

CF: Diria que não… Por acaso, esta semana tivemos um festival sobre isto, mas eu diria que há mais transformistas. Nós ainda temos um nível de depreciação dessa experiência. Quando falamos o que é uma drag e fazemos a diferenciação entre um transformista… Talvez ainda estejamos mais pra transformista do que pra drag. Já tivemos alguns artistas, alguns brasileiros e um angolano, mas que já não vive aqui. Normalmente, tem-se uma dificuldade em entender a diferença entre o transformismo e o show de drag, algo mais tchan tchan tchan tchan. (risos)

H: Então já existe uma cena começando…

CF: Sim, sim. Principalmente, por inspirações de cantoras como a Titica ou Hady Lima. Nós temos também na nossa comunidade muita referência da Imanni da Silva, uma mulher trans da Angola que também está envolvida com o ativismo. Nos últimos tempos, talvez pela Associação, isso ajudou muita gente se assumir. Temos visto muito mulheres e homens trans, assim a questão do que é ser Queer.

H: Sobre religião, existem muitas igrejas neopentecostais brasileiras na Angola. Você sentiu que essa presença aumentou o ambiente conservador de maneira geral? Houve alguma diferença com a chegada dessas igrejas?

CF: Até o ex-presidente José Eduardo Santos sair do poder, em 2017, ninguém ousava falar sobre isso. As pessoas falavam na vertente de ser pecado, mas nunca ousando chegar naqueles discursos de ódio que estamos habituados a ouvir da vertente religiosa mais conservadora.

Isso só mudou anos depois, com um programa na televisão pública que se chamava “Talento”. Eles fizeram uma matéria sobre mulheres trans e não tiveram acesso à informação, então acabaram por dizer coisas estranhas, como que as pessoas trans iam a uma praia te batizar etc. Aquilo colou um pouco na população. No dia seguinte, um jovem saiu do carro com uma katana (facão pra cortar cana) atrás da gente, porque as pessoas começaram a ter aquela ideia de “eles são envolvidos com bruxaria e isso tudo”.

H: Você acha que as drag queens e figuras LGBTs brasileiras são populares na Angola? E acha que a comunidade daqui ajuda ou atrapalha de alguma maneira?

CF: Sim, sim, a cultura tem ajudado bastante. No princípio, creio que algumas novelas não falavam sobre a comunidade. Mas quando estamos a falar, por exemplo, da novela do Félix (“Amor à Vida”, 2013), isso deu uma outra perspectiva de que o gay não é “depravado”. Tivemos também “A Força do Querer” (2017), com o rapaz trans que foi sofrendo o processo de transição durante a novela. Muitas das vezes, quando eu estava com alguns ativistas eles falavam “eu estava a ver isso com meu pai e minha mãe e eles começaram a questionar-me sobre isso”.

Às vezes, os próprios pais não sabiam como abordar isso com os filhos. Eram coisas que eles não tinham coragem de contar e, com o surgimento desse conteúdo, fica mais fácil conseguirem diálogo. Em relação às transformistas, a Pabllo Vittar continua a ser uma referência muito boa para e a comunidade LGBT consome muito.

‘nosso problema de discriminação e estigma é só na família’, afirma Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris Angola (Foto: Arquivo Pessoal)

H: A última coisa que queria perguntar é sobre os planos de vocês para o futuro. Vocês já têm algum projeto em vista?

CF: Nosso projeto, começando pela saúde, é o único serviço que a Angola tem voltado para VIH (HIV) e doenças sexualmente transmissíveis na comunidade. Também temos perspectivas de trazer para o PrEP para a Angola. Um dos nossos objetivos é fazer uma pequena experiência com algum grupo, para provarmos os efeitos que isso tem. Estamos a buscar também estudos de saúde mental e bem-estar, que até hoje não conseguimos e é bastante importante.

Pretendemos voltar a fazer novamente nossos eventos no teatro de Luanda, que normalmente são abertos ao público. Outro problema também é a falta de referências no país, então normalmente chamamos ativistas LGBTs que trabalham em vários lugares para que possam dar o exemplo à nossa juventude. Temos estudos que comprovam altas taxas de abandono escolar, além da questão de acesso ao emprego.

Nossa principal ideia é criar o que chamamos de “drop center”, em que pudéssemos juntar no mesmo local as questões de saúde, alojamento e alimentação diária, que é triste e algo bem básico que a nossa comunidade ainda tem dificuldade em conseguir. Também queremos profissionais que ajudem a comunidade a criar micronegócios ou coisas do gênero. Essa é a visão do nosso futuro.

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Este é o primeiro artigo de uma parceria que firmamos com lideranças do movimento angolano, incluindo a equipe da revista Queer People, que passa a colaborar diretamente com conteúdo para o nosso site. Agradecemos diretamente a Arianna Cosme, David Kanga, Sander dos Santos e Fabinho.

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