*Por Halisson Paes, do Piranhas Team
Fomos até Amsterdam conhecer o time de autodefesa LGBTI mais antigo do mundo, os Tijgertje Autodefesa LGBTI / Krav Magá, que serviram de inspiração para o grupo carioca Piranhas Team. Sua história de luta se confunde com a própria história dos movimentos por direitos LGBTIs na Europa.
Em abril de 2017, homens heterossexuais holandeses andaram de mãos dadas pelas ruas, em protesto contra uma agressão homofóbica sofrida por um casal gay que estava de mãos dadas no interior da Holanda. Esta realidade, tão diferente da brasileira, retrata um país que hoje é bastante liberal nos costumes e, não por outra razão, foi o primeiro do mundo a garantir leis a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, com todos os mesmos direitos de casais heterossexuais. Vale lembrar que embora outros países europeus admitissem uniões civis de casais homoafetivos desde 1989, somente a lei holandesa, no ano de 2000, atribuiu plena equivalência de direitos com casais heteros, incluindo o direito à adoção.
Quem vê à distância o respeito aos LGBTIs na Holanda, possivelmente não imagina todo o contexto de lutas que o precedeu. Com o intuito de conhecermos o grupo de autodefesa LGBTI mais antigo do mundo, nos aprofundamos nessa longa história de luta contra o preconceito, por uma sociedade mais igual, respeitosa e diversa.
Cultura e Lazer
Em 1946, foi fundada aquela que reivindica ser a mais antiga associação para defesa dos Direitos dos LGBTs do mundo, a COC – Cultuur en Ontspanningscentrum (Centro de cultura e Lazer). Numa época de ainda grande preconceito, o nome original buscava esconder os reais objetivos da associação.
Inspirado pelos eventos do Stonewall, o movimento LGBTI holandês passou a promover marchas do orgulho as Roze Zaterdag (“Sábado Rosa”). Ocorre que, em junho de 1982, durante a marcha anual, vários gays e lésbicas que participaram da manifestação foram gravemente agredidos nas ruas de Amsterdam por grupos homofóbicos. Esse episódio foi marcado não só pela violência contra LGBTIs, mas igualmente pela inércia das autoridades em reprimir os agressores. A partir daí, ainda no ano de 1982, a COC entendeu que a comunidade não poderia permanecer indefesa e criou o KaraC (uma abreviação para Karatê COC).
Ali perto de onde aconteciam os treinos, havia um vizinho que cumprimentava os participantes com um “E aí, Tigre!”, num sentido análogo ao que damos à expressão “fera”, no Brasil. E assim, dois anos depois, o grupo mudou de nome e passou a se chamar Tijgertje (Tigrinhos, em português).
A luta atual
Originalmente, o esporte escolhido pelo Tijgertje foi o Karatê. Mas nos últimos cinco anos, após um acordo com a International Krav-Maga Federation (IKMF), o coletivo criou uma divisão com treinamentos de Krav-Maga voltada especificamente para a comunidade LGBTI. Principalmente por ser uma arte-marcial focada na defesa pessoal, o grupo passou a empregá-la de forma efetiva e coerente em seus treinos.
Criado pela comunidade judaica como uma forma de defesa contra a violência antissemita, o Krav-Maga é um sistema que combina várias técnicas de outras artes marciais. Seus golpes foram desenvolvidos para serem absorvidos de forma rápida, mesmo por aqueles que não têm experiência prévia em outros tipos de luta. Além disso, sua modalidade é adequável para pessoas com todas as variáveis de peso, idade, altura ou gênero.
Como forma de apoio à comunidade LGBTI, a IKMF desenvolve ao longo dos últimos 5 anos um programa especial para esse público, o R.E.A.D.Y. – Responsibly Empower And Defend Yourself (algo como “responsavelmente empodere-se e defenda a si mesmo”, em português), focado em cenários mais práticos e recorrentes. As agressões aos LGBTIs, por exemplo, são usualmente praticadas por grupos pequenos de jovens (dois ou três) e ocorrem em ruas ou bares.
Logo, o treino fornecido por Stephan Wattimena, instrutor do IKMF e coordenador da divisão LGBTI, é voltado para como reagir e escapar de situações nesses moldes. Os treinos são ministrados todas as noites de terça, em um centro esportivo no bairro de Zuidas, em Amsterdam.
Para além da defesa nas artes marciais, o grupo também se articula politicamente com ONGs e com o poder público para ampliar suas atividades. Em agosto do ano passado, por exemplo, o Tijgertje, apoiado pelo Ministério das Relações Exteriores e pela IKMF, ofereceu um workshop de defesa pessoal específico para pessoas trans. E como forma de atenderem à demanda dos novos interessados que vão chegando por lá, o coletivo conta com membros voluntários, que auxiliam e acolhem os calouros. Para participar, basta ir a uma aula experimental e, caso decida permanecer, se tornar associado, ao custo anual de 200 euros.
A rotina dos treinos
A chuva e a temperatura próxima de zero no final do mês de novembro não chegam a inibir a animação no centro poliesportivo onde o Tijgertje realiza seus treinos. Em meio ao frio, uma das primeiras alunas a chegarem foi Anne Archibald, mulher trans e canadense, que trabalha na Holanda como astrônoma da Universidade de Amsterdam. Em seguida chegam Jan-Pieter de Lugt, organizador do grupo, e Reinner Verbig, um de seus mais antigos participantes, presente no coletivo há pelo menos 15 anos. Em meio às pessoas jogando futebol, eles riem quando dizem que por lá, se esperarmos por momentos sem chuva ou sem frio para treinar, ninguém treinaria nunca.
Em seguida chegam os demais alunos e Stepan, o treinador. Eles sobem para o vestiário comum ao lado da quadra, trocam de roupa e então começa a aula. A turma é composta basicamente por homens gays e mulheres trans, mas também há algumas alunas cisgêneras e heterossexuais que participam dos treinos por se sentirem mais à vontade naquele espaço. As sessões duram cerca de uma hora e meia, os exercícios revezam e combinam socos, chutes, saídas de agarramento e corridas. O foco é claro: sair das situações de perigo. .
Além dos treinos
O Tijgertje, como me explica Pieter, tem o propósito de ensinar LGBTs a se defenderem e, sobretudo, se empoderarem, sentindo-se mais seguros e livres na sociedade. Mas como todo lugar que se dedica a minorias, este também acaba se tornando um espaço de acolhimento no qual as pessoas socializam e fazem amigos.
Por esta razão, é comum que após os treinos a turma saia para um Pub perto do centro esportivo para tomar uma cerveja. E eu, como não sou exceção, os acompanhei.
Em meio à conversa da mesa, Anne comenta que conhece a realidade difícil das pessoas trans no Brasil, que é muito diferente da vida destas pessoas no Canadá ou na Holanda. Ela relata, por exemplo, que em seu país, as facilidades das pessoas trans em terem acompanhamento médico para transição, faz com que após isso, estas pessoas passem a viver como se cisgêneras fossem, o que de algum modo esvazia a militância do movimento trans. Por outro lado, reclama que em sua experiência, “a maior parte dos locais supostamente LGBTs são, na verdade, GGG (gay, gay, gay)”, ou seja, não são espaços verdadeiramente de diversidade, mas de predominância de homens gays cisgeneros.
O grupo é profundamente engajado politicamente. Hans Verhoeven, um dos participantes, é o organizador da marcha de Amsterdam Pride (Parada LGBT de Amsterdam, que acontece em barcos pelos canais da cidade) e explica que na Holanda, apesar do grande avanço nos direitos LGBTs, há uma grande preocupação do movimento LGBT com a possível ascensão política de grupos religiosos que são contrários a esses direitos.
Ele me pergunta sobre a situação brasileira, e ao saber que vivemos um momento político conservador, em que a própria realização das Paradas LGBTs se vê ameaçada, ele pergunta “como as empresas tem se posicionado diante dessas questões?”, Vez que é grande a articulação do movimento LGBT com empresas na Holanda.
A par disso, ele explica que o movimento LGBT na Holanda, nos dias atuais, luta não só para preservar direitos conquistados, mas para avançar em questões ainda sensíveis. Por exemplo, na criação de protocolos específicos para atendimento pela polícia em caso de violências sofridas por LGBTs, incluídas aí aquelas sofridas em ambientes de cruising (pegação). Do mesmo modo, há um esforço de intercâmbio de experiências com o movimento LGBT de outros países, o que inclui a negociação da criação de outros grupos de defesa-pessoal junto à IKMF.
No final da conversa, pedem a conta de bar, dizem que sou seu convidado e pagam minha parte. Nesse momento, é inevitável comentar que; enquanto lá eles discutem a melhor forma pela qual a polícia deve atender LGBTIs que tenham sofrido alguma violência, inclusive em lugares de “pegação”, no Brasil ainda precisamos lutar para LGBTs não sejam vítimas de violência praticada pela polícia e que temos uma longa estrada a se caminhar. A despeito disso, a existência de experiências exitosas na luta por direitos, é um incentivo para nossa jornada, por tudo e apesar de tudo.