Foi numa sexta-feira, 21 de janeiro de 2005, que o Montage subiu num palco pela primeira vez, no finado Noise 3D Club. Ali, na Praia de Iracema, em Fortaleza, o espaço foi responsável e indispensável na formação musical e cultural de toda uma geração da cidade que nasci. Na platéia não havia mais de 30 pessoas, a maioria amigos, conhecidos da banda e desavisados. Nossa estreia foi uma apresentação explosiva, sensorial e muito intuitiva, já que fizemos tudo completamente de improviso.
Leco Jucá e do Patrick Bachi tinham me entregado as bases das músicas algumas semanas antes, ainda no fim de 2004. O jornalista Ricardo Lisboa, que na época trabalhava comigo no Programa Asterisco, foi o mentor da coisa toda. Ele quem teve o “feeling” e percebeu que esse encontro poderia dar certo. Em cima das bases que recebi, escrevi algumas letras do que seriam algumas das nossas maiores músicas, como “Ode To My Pills (Benflogin)”, “I Trust My Dealer”, “Hi Oprah!” e “Blue Cartoon”, assim como adaptei também o ponto de umbanda para a Pombagira em um electropunk que se transformaria mais tarde em “Raio de Fogo”.
Meu visual era um conjunto de saia e regata pretas que tenho até hoje (e ainda me servem!) com uma cabeleira raspada e descolorida. Desde aquele momento, já me inspirava na fase mais andrógina de Shirley Manson, do Garbage. Na minha cabeça, eu pensava: “O que Marilyn Manson ou Madonna fariam agora que as luzes foram acesas e eu preciso entreter essas pessoas que não conhecem nenhuma das músicas que eu vou cantar?”.
Ali em nossa Fortaleza, nosso show de estréia com minha figura feminina e delicada, mas agressiva e caótica, aliada de dois boys héteros, fez nossa fama à base do boca a boca, numa era onde a internet era discada e os smartphones ainda eram só um sonho. Menos de um mês depois, no mesmo Noise 3D, faríamos nossa segunda apresentação, já com direito a capa nos maiores jornais do Ceará e matéria no “Jornal Hoje”, da Rede Globo, em rede nacional e com muito bafafá.
O público de 30 pessoas do primeiro show se multiplicou em centenas que lotaram a rua José Avelino, nas redondezas do Dragão do Mar, para uma apresentação com ingressos esgotados e pessoas espremidas nas calçadas. Já em 2006, um anos após a nossa estreia, a revista BIZZ declarou em duas páginas que o Montage era o que faltava no cenário LGBTQ brasileiro há 18 anos, quando tivemos a Que fim levou o Robin?, uma das últimas assumidas até então, do icônico e saudoso Mauro Borges.
Depois de seis anos afastados, retomamos nossas atividades em 2015, mas nossos discos só entraram nas plataformas digitais em 2018, causando assim um delay entre nosso som e a nova geração de ouvintes. Quando surgimos, o público nos conhecia por CDs piratas que carregávamos embaixo do braço e distribuíamos por aí.
Tenho muito orgulho de contar essa história, não por um ponto de vista ególatra, mas por uma enorme alegria de ter trazido a estranheza e a subversão aos holofotes da imprensa, jogando uma nova possibilidade de ser diferente aos moldes da sociedade na época e, especialmente, abrindo a discussão sobre identidade de gênero e cultura queer.
Ao integrarmos um novo momento da musica pop para o Brasil, a ideia que eu compartilhava aos quatro cantos por onde passávamos era: “Se uma poczinha do sertão do Ceará, acompanhada de dois caras que tocam uma groovebox Roland 307 e uma guitarra, conseguiu levar o LGBT para os festivais de rock do país inteiro e nos principais jornais do mundo, você também pode!”. Como um todo, aquele momento trouxe ainda Cansei de Ser Sexy, Bonde do Rolê, NoPorn, Impostora e Multiplex, bandas importantes dessa história que também escreveram seus próprios capítulos.
Outro orgulho que tenho sobre a trajetória do Montage foi ter levado Claudia Wonder de volta aos palcos como cantora, em 2006. Já morando em São Paulo, percebi que ela era desconhecida da nova geração, então eu a convidava para participar dos nossos shows. Ela já chegava completamente montada e linda cantando com a gente. No ano seguinte, Claudia lançou um ótimo e elogiado disco de electro e ganhou o documentário “Meu amigo Claudia”, de Dácio Pinheiro.
Contando assim, parece que tudo foram flores, mas não. Tivemos momentos de aclamação, mas também recebemos criticas, ataques homofóbicos, hate nas redes sociais e hostilidades de um país onde não se falava abertamente sobre drogas, sexualidade e religião, temas que para nós eram normais. Nas nossas músicas, os vilões eram mocinhos, LGBTQs foram protagonistas e as chamadas “minorias” eram abraçadas e bem vindas.
Mas nem só de saudosismos vive essa história, até porque estamos vivos e ativos. Em 2020, estávamos produzindo o álbum de celebração pelos 15 anos louquíssimos desde a estreia do Montage e o projeto infelizmente foi pausado pela pandemia do coronavírus, mas retomaremos assim que a poeira baixar. Ainda assim, na última década e meia pipocaram diversos e fantásticos artistas queers da novíssima cena cearense, e é ai que eu quero chegar.
Enquanto nosso novo disco não sai, vou celebrar os 15 anos do Montage trazendo aos leitores da Hibrida uma lista com 15 artistas LGBTQs que surgiram na cena do Ceará depois de nós e que fazem um trabalho muito bem feito e inspirador, honrando um legado construído à base de suor, lágrimas e muito álcool. Confira a seleção abaixo:
1. Getúlio Abelha
Mesmo natural do Piauí, Getúlio vive há muitos anos em Fortaleza e foi lá que deu início à sua carreira como músico. Aclamado por sua originalidade e presença de palco feroz, ele coleciona underhits e aposto que ainda vai crescer muito mais nos próximos anos. Getúlio esteve como convidado no show do Montage durante a última Virada Cultural de São Paulo e eu conto aqui, em primeira mão, que vamos lançar um single juntos em agosto (!!!). Particularmente, vejo demais do Montage no Getúlio, do visual ao anarquismo e deboche nas letras e performances, aliados à sua própria personalidade e talento únicos.
2. Veronica Valenttino
Veronica ficou conhecida por um dos primeiros virais da internet brasileira chamado GLOSSário das Bixas, premiado na 19ª edição do Festival Mix Brasil. Logo em seguida, ela começou os trabalhos com sua banda Verónica Decide Morrer, lançando musicas, videoclipes, e rodando o Brasil com seu punk rock e discurso testemunhal de como abandonou as igrejas evangélicas para se tornar a travesti mais popular do Ceará. Na sua trajetória, ela conta com clipe dirigido por Jesuíta Barbosa e ainda assinou a trilha sonora do documentário sobre Indianara Siqueira.
3. Procurando Kalu
Formada em Sobral, em 2013, o grupo mistura psicodelia ao rock e à música popular, com vocais e performance arrojada de Zeca Kalu, e já circulou bastante não só no Ceará como em festivais pelo Brasil. Eles também estão no 1º episodio do programa “Porto Dragão Sessions”, que apresento no canal Music Box Brazil e TVC.
4. Luiza Nobel
Luiza é linda! Cantora, compositora, atriz e leonina, entregue ao olhar de quem a escuta, ela traz uma voz de liberdade e força, atravessada por sua vivência de mulher negra da periferia. Em sua arte, procura trazer à tona discussões sobre o empoderamento feminino da mulher negra da periferia em canções de Vinicius de Moraes e Chico Buarque ou composições próprias. Em 2019, integrou o Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes sob mentoria de Mahmundi, compondo seu primeiro show autoral “Luiza Nobel”, além de vencer os Festivais “Elas por Elas” e da Juventude. Luiza se tornou uma cantora grande em Fortaleza, já dividiu o palco com Elza Soares e tocou para 1,5 milhão de pessoas no réveillon oficial de Fortaleza.
5. As Travestidas
O coletivo encabeçado por Gisele Almodovar, persona drag de Silvero Pereira, começou no teatro com grande sucesso e casas lotadas por onde passaram, o que catapultou as meninas para um dos blocos de carnaval mais queridos em Fortaleza, o Bloco das Travestidas. Gisele tem o single “Minhas Regras”, releitura de “New Rules” da Dua Lipa) e sua parceira de bloco Mulher Barbada acabou de lançar a ótima faixa “Ressaca”, disponível em todas as plataformas.
6. Pulso de Marte
A dupla está na ativa desde 2014, com uma ótima mistura de pop, rock e até hardcore de uma maneira bastante alternativa ao que é comum a esses gêneros. Assim como Luiza, também participaram do laboratório de música do Porto Iracema das Artes, com tutoria de Raquel Virginia, d’As Bahias e a Cozinha Mineira. Dessa experiencia, saiu o álbum “Marte é mulher”, produzido pelo talentoso Paulo Oliveira, que não poderia ficar de fora desse texto, já que é um grande parceiro meu desde quando foi guitarrista do Montage até hoje, em produções como “O Vira”.
7. Luh Livia
Luh é uma garota do rock! Foi vocalista da banda Mafalda Morfina, contemporânea do Montage por mais de uma década, até partir para carreira solo e tocar com muita gente importante do rock, como Paralamas do Sucesso e Pitty, e gravar “Poderosa Imperfeição”, parceria com Bruno Gouveia, vocalista do Biquíni Cavadão. Dona de um timbre de voz poderoso e inconfundível, a cantora vai lançar seu próximo álbum pela Sony Music.
8. Glamourings
As Glamourings se apresentam como “fruto de reflexão e de resistência artística combatendo preconceito, a ignorância, o machismo e a LGBTQIAfobia.” A banda surgiu com as integrantes Melindra Lindra e Tina Reinstrings e tem produção assinada por Fernando Catatau, homem por trás do cultuado Cidadão Instigado. Eu ouço sempre e adoro! O som me remete a algo que é muito a cara de Fortaleza, com pitadas de trip hop, letras e melodias muito bem construídas.
9. LUA
LUA é um artista prodígio que surgiu na cena em 2012, com apenas 16 anos, no projeto Intuicion, e desde então participou de diversos projetos musicais pela cidade, onde também toca o selo independente Berlim Tropical. Em seu som, traz raízes regionais, como forro e carimbó, alinhadas à dance music e ao technopop. Recentemente, lançou “Atlântico”, álbum produzido sob a mentoria de Omulu.
10. Fervô (Yara Canta e Pelizari)
Era um projeto que fazia musica pop muito divertida e causou com as pocs novinhas enquanto durou. Toquei com eles no festival Fica, Vai Ter Pop, em 2018, quando os conheci e já curti de cara! Felizmente, Yara e Pelizari têm trabalhos solo hoje em dia e não deixaram os fãs desamparados. Ele tem um EP, abriu shows de Jaloo e Duda Beat e produz o festival Musicalize. Ela é uma importante ativista trans, formada em teatro, que segue cantando com um repertório de música brasileira e integra também o Terra Prometida, coletivo formado apenas por pessoas trans.
11. Arquelano
Arquelano é um projeto de música eletrônica encabeçado pelo cantor, compositor e produtor musical Benjamin Arquelano. O trabalho explora as vertentes da música eletrônica, com influências da MPB, pop, R&B e soul, partindo da poética na vivência de Arquelano, jovem negro e LGBTQ que diariamente realiza o percurso entre duas cidades de realidades distintas, Maracanaú e Fortaleza. Após ter passado pela tutoria de Mahmundi, ele lançou em 2019 seu primeiro EP, que já rendeu os singles “Ponto” e “Estava”, além de participações com Getúlio Abelha e Luiza Nobel em “Salão das Ilusões”. O clipe dessa música é lindo (veja abaixo)!
12. SelvaBeat
Ano passado, quando apresentei a Feira da Música de Fortaleza, conheci a banda e fiquei muito impactado ao ver a força da apresentação só com mulheres poderosas (ok, tem um cara na banda, como dizia o release que li antes de apresenta-las). A SelvaBeat caminha ao lado da festa Viva La Vulva, em noites explosivas de Fortaleza, quando agregam ao show da banda performers, DJs, artistas visuais, atrizes e poetisas. Um espetáculo para mulheres no palco e na plateia, em movimento para enaltecer artistas e trabalhadoras da cultura. São mais que uma banda ou festa, mas um acontecimento, que eu gostaria muito de ver conquistar o resto do país.
13. Davi Bandeira
Davi é meu conterrâneo do Cariri e tenho muito carinho por ele, desde antes de cantar comigo nos shows em tributo à Madonna, o “The Immaculate Tribute”. Talentoso e determinado em construir uma carreia sólida na pop music, ele está em São Paulo há dois anos, onde tem chamando atenção. Seu último single “Dói, Mas Passa (Mesmo)”, com participação de Tchelo Gomez, do Quebrada Queer, estreou em #1 no iTunes e Davi ainda emplacou uma canção na trilha do The Voice Kids.
14. Stefany Mendes
É uma dessas figuras que mais parecem uma força da natureza. Conheci Stefany na noite de Fortaleza, quando veio puxar papo comigo e nos conectamos. Ela é cantora, rapper, produtora e compositora, ativista trans de presença indispensável na periferia da cidade. É coordenadora do coletivo Polo Trans, que fundou em 2016 no Conjunto Ceará. Stefany subiu (sem ser convidada) com uma bandeira do arco-íris no palco de Johnny Hooker e ele lhe entregou o microfone imediatamente, enquanto ela improvisava. Momento histórico e emocionante!
15. Henrique Vivazz
Henrique se identifica como um artista trans não-binário, cantore e compositore, com um som beeem pop e pegadas de funk carioca, reggae e electro. Ele começou ainda em 2018, mas mesmo assim tem diversos singles, feats e vídeos lançados, além do álbum “Transição”, no qual explora todas essas vertentes.
https://www.youtube.com/watch?v=dTYa3Kloeow
Preciso finalizar isso tudo mencionando os DJs e produtores de eletrônica que fazem a cena ferver não só no Ceará, como por todo o Brasil. EVVA, Marcio Motor, Kysia, Ruth Love, Monic. Procurem e consumam todos esses nomes, os estilos são múltiplos assim como as possibilidades sonoras, e tenho certeza que você vai se identificar com muitos. Enjoy!