Híbrida
MÚSICA

“Quis me humanizar mesmo. Sou gente”, diz Urias sobre o álbum “Fúria”

Urias lança "Fúria", seu primeiro disco de inéditas (Foto: João Arraes)

“Estou prestes a me tornar uma pessoa horrível”, alerta Urias logo na abertura de “Fúria”, seu primeiro disco de inéditas, lançado nesta quinta-feira (13), quase três anos após seu EP de estreia. A artista e modelo mineira, nascida e criada em Uberlândia, evoluiu de lá pra cá, investiu no seu som e na sua voz, tanto no que canta quanto em como canta.

“A diferença do começo é que, agora, sei que estou sendo ouvida. Não estou falando de ouvirem minhas músicas, darem streams, essas coisas, mas de a minha voz ser ouvida. Agora eu sei que estão prestando atenção no que estou falando”, conta Urias, em entrevista exclusiva à Híbrida.

A fúria que dá nome ao trabalho aparece na maioria das faixas, mantendo as investidas da artista em ritmos como trap, hip hop e R&B, todas com a produção sempre impecável de Rodrigo Gorky, Maffalda e Zebu, alguns dos magos do pop brasileiro por trás da Brabo Music. Mas ao longo das 13 músicas, Urias também mostra seu lado mais vulnerável que já tinha aparecido em “Foi Mal” e, agora, se expande em outros momentos como “Tanto Faz”, o novo single do projeto.

“Nesse álbum, me propus a me humanizar num sentido de que também sinto, e de que sinto várias coisas, não só sentimentos trans. Porque a galera coloca a gente num rolê assim: ‘ela é trans e ela é só isso, acabou’. Quis me humanizar mesmo. Eu sinto raiva, sinto isso, sinto aquilo. Sou gente”, explica a artista.

O disco também traz colaborações com Vírus, Hodari, Charm Mone, Monna Brutal e Ebony,  e já tem um show de lançamento no próximo dia 4, no Cine Jóia, em São Paulo. Depois, Urias segue para o exterior como o ato de abertura da amiga Pabllo Vittar, que vai rodar boates e festivais lá fora.

Abaixo, confira a entrevista completa.

"Quis me humanizar mesmo. Sou gente", diz Urias sobre a vulnerabilidade de "Fúria" (Foto: João Arraes)
“Quis me humanizar mesmo. Sou gente”, diz Urias sobre a vulnerabilidade de “Fúria” (Foto: João Arraes)

HÍBRIDA: O que que mudou na sua visão criativa e proposta sonora desde o primeiro EP, ‘Urias’ (2019), para o ‘Fúria’, que é o primeiro disco. Como você acha que o som evoluiu?

URIAS: A diferença ao fazer e em relação ao processo criativo é que no primeiro eu ainda não… Hoje eu me achei melhor como artista, sabe? No EP, eu não tinha as certezas que hoje tenho.

H: Sobre a sua pessoa enquanto artista?

U: Sobre mim mesma. Hoje eu tenho mais certezas. Outras certezas também. E outras dúvidas também (risos). Mas eu estou me sentindo mais confiante desta vez com o álbum.

H: Isso transparece nas músicas. A sua voz tá mais firme, eu acho.

U: Mas de lá pra cá, eu estudei, fiz aulas de canto, todo o babado que tem que fazer, né. A gente tem que estudar e sempre dar passos à frente.

H: Essa certeza que você tem agora sobre si mesma, vem do trabalho como artista, de brincar mais com as composições, ter uma direção mais certa do que você quer de som e canto? Ou de uma coisa filosófica, tipo terapia, sei lá…?

U: Eu passei a levar muito a sério, muito como trabalho. Sim, é terapêutico, porque você tá botando um monte de coisa pra fora, você tá falando de um monte de coisa que, antes, achei que não poderia falar. A diferença do começo é que, agora, eu sei que estou sendo ouvida. Porque antes não sabia se seria ouvida. E não estou falando de ouvirem minhas músicas, darem streams, essas coisas. Estou falando de a minha voz ser ouvida, sabe? Agora eu sei que estão prestando atenção no que estou falando. É diferente.

O meu propósito também ainda é esse, de fazer música que eu gostaria de estar escutando. Ao falar de mim, não estou falando só de mim

H: E sabendo que tem gente te ouvindo, prestando atenção no que você diz, o que você acha que mudou na mensagem que quer passar?

U: Na verdade, eu sigo meio que com a mesma base de pensamento: vou fazer música para mim, para pessoas como eu, mas todo mundo pode se identificar, porque música é sobre isso também, sabe? Mas é pras pessoas como eu saberem que é sobre a gente. Que também é sobre a gente.

Porque as vezes você escuta as músicas de um artista e fala: ‘ah, se encaixa na minha vida, se encaixa no que eu estou passando agora, mas ela não tá falando de mim, ela não tá falando da minha experiência, talvez ela nem saiba como é a minha experiência socialmente falando’. O meu propósito também ainda é esse, de fazer música que eu gostaria de estar escutando. Ao falar de mim, não estou falando só de mim.

H: ‘Tanto Faz’ vai ser o primeiro single dessa segunda parte. Queria saber por que você escolheu a música para dar o pontapé inicial nessa fase do projeto e qual mensagem que quer passar com ela? Imagino que vai ter mais um clipe perfeito saindo junto…

U: Nossa, esse tá assim, ó. Nossa senhora, eu tô tão bonita, cara (risos). Essa música tava escrita há muito tempo. Eu e a Kika (Rodrigo Gorky) esrevemos ela antes de pandemia, antes do apocalipse (risos). E aí a gente decidiu colocar no álbum porque fala muito sobre a raiva de estar sozinha, sobre a solidão nesse ponto de estar com as mãos atadas.

Achei que muita gente poderia se identificar e a repercussão de ‘Foi Mal’ também influenciou muito, porque tinha sido um tiro um escuro. Não sabia como a galera ia receber eu, como artista, cantando aquele tipo de música. Enquanto tô fazendo e produzindo, não penso assim: ‘ah, quê que vai rolar, o quê que a galera vai pensar?’. Mas quando chega na hora de lançar e decidir qual e como vai ser, a trajetória de ‘Foi Mal’ influenciou muito para essa música ser a primeira.

H: A música fala um pouco da raiva de estar só. Eu vi uma em que você se identifica com mulheres que são “sexy e raivosas”. Daonde você puxa essa raiva que sempre coloca nos clipes e nas músicas? Queria saber se é uma coisa que você foi construindo, se a persona como artista te deu mais força pra ser assim ou se você sempre teve esse jeito?

U: Eu não diria que sempre fui assim, no sentido de não levar desaforo pra casa. Mas sempre fui de não deixar as coisas abalarem a minha paz. Não é nem uma questão de ‘ah, vou atacar’, mas não deixo passar ‘daqui’. E essa coisa de ser uma mulher sexy, que impõe e nananã, começou muito assim: ‘quem eu quero ser?’.

Eu meio que desassociava eu mesma daquilo tudo, mas não pensava na hora. Só pensava ‘como eu quero ser vista, como quero ser interpretada?’. Mas no meio do caminho, as coisas foram se misturando porque eu nunca me separei da pessoa, nunca vi assim ‘ah, aqui não é a Urias, aqui é’. Tudo faz parte da pessoa. No meu lado artístico, eu sou essa outra pessoa, o que faz parte de tudo que eu sou também. Mas no começo era muito ‘quem eu quero ser?’. Aquele ‘fake it till you make it’ (risos).

H: Falando de forma geral da sua vida/carreira, queria que você contasse um pouquinho sobre a infância em Minas Gerais, um Estado muito conservador/tradicional. Como era pra você, enquanto criança e adolescente LGBTI+ e trans? Isso chegou a te afetar de alguma forma, tinha uma convivência pacífica com família e amigos?

U: Eu tive a infância de toda pessoa LGBTI+: minha escola era um inferno, em casa era aquela coisa meio ‘ah, então vamos, né, não tem outra opção’. Mas eu sempre tive um círculo de amigos, apesar de pequeno, muito apoiador. Desde pequena, os amigos que eu tive sempre foram de se apoiar, mesmo sem poder fazer nada, só trocar uma palavra. Acho que foi muito importante. A minha família, eu sou a primeira neta da minha vó, então…

H: Todo mundo esperava que você fosse dar o bisnetinho… (risos)

U: Ah, não sei o que esperavam, nunca nem pensei (risos). Mas fui a primeira experiência de muita coisa da minha mãe, do meu pai. As pessoas não sabiam muito como lidar com a minha existência nesse sentido. Sempre fui uma criança evidentemente trans. Minha mãe me levava em psicólogos pra entender o que estava acontecendo, mas sempre foi uma coisa de ‘vamos seguindo e ver o que tá rolando, porque deve acontecer com todas as crianças, ué, não sei como é, minha primeira filha’. Ninguém sabia o que tava rolando, nem eu (risos).

Então, quase todos os preconceitos que eu passei, as coisas difíceis de escola etc., foi por conta dessa nuvem da falta de informação. De nem eu saber o que tava rolando. Não sabia que era mulher. Se eu soubesse que era mulher… Hoje em dia, minha mãe olha pra mim e fala assim: eu entendi tudo agora (risos). E eu falei: não, mãe, eu também.

H:  Puxando por isso, agora que você entende, sua mãe entende, você tá com 26 anos e se coloca como essa mulher que tem a personalidade forte, você pensa, enquanto artista trans, que tem o dever de passar alguma coisa? Isso influencia na sua mensagem, de pensar em outras crianças que possam estar confusas também?

U: Acaba virando uma questão de representatividade, né, querendo ou não. E a gente, com o nosso construir das coisas nos últimos anos, passou a levar a representatividade como um dever do artista. Não sei se você concorda comigo, se estou falando besteira, estou sempre aberta ao diálogo.

!uerendo ou não, tudo que eu falar vai ser do ponto de vista de uma pessoa trans. Então, tudo é, de certo modo, representatividade

H: Eu concordo.

U: Eu, querendo ou não, tudo que falar vai ser do ponto de vista de uma pessoa trans. Então, tudo é, de certo modo, representatividade, eu falando a palavra ‘trans’, ‘travesti’ ou não. Por mais que você tenha se identificado com ‘Foi Mal’, por mais que você tenha se identificado com ‘Tanto Faz’ – são músicas que falam sobre amores e possibilidades de amores que todo mundo vive, já viveu, quer viver ou viverá -, estou falando de uma experiência trans, a minha.

Por um certo tempo na minha carreira, eu passei a levar a representatividade e esse ‘peso’ como um dever. Mas não é um dever porque acontece naturalmente. Na verdade, o meu real dever é lutar para que não fique só na representatividade. Que eu não veja só pessoas como eu na TV. Tenho que lutar para que sejamos incluídas em todos os lugares. Eu tenho que ir na padaria e ver uma pessoa trans, trabalhando ou sendo atendida. Tenho que ver em todos os lugares para entenderem que a gente existe mesmo. As pessoas fingem que não, mas elas sabem que sim.

H: Voltando pro som, na minha impressão, o primeiro EP tinha uma pegada mais eletrônica, dançante, balada. No ‘Fúria’, senti uma pegada mais R&B, hip-hop. Você comentou aí que gosta de fazer música com base no que você ouviria. Tem algum desses gêneros que, quando você tá cantando, se sente mais confortável? Tipo, aqui é meu lugarzinho feliz?

U: Quando comecei a fazer música, pensei em que artista me encaixaria. Eu sabia que queria dar close de rosto, de corpo, de coreografia… Mas nos ritmos, comecei pensando muito numa vibe meio The Fame Monster. Só que as coisas foram acontecendo de uma maneira que comecei a entender meu alcance e possibilidades. Pensei: ‘pra quê que eu vou fazer só uma coisa?’. Então, comecei a fazer o que vinha na minha cabeça.

‘Peligrosa’, por exemplo, é uma música que decidi fazer porque estava tendo aula de espanhol e pensava em espanhol. Comecei a ver ‘Veneno’ também. No começo, eu tinha muito essa coisa de, ‘ah, vou mais pro eletrônico, porque não tô vendo nenhuma das galeras fazendo isso aqui agora, vou apresentar meu trabalho assim’. E e eu tava nessa vibe mesmo, mais eletrônica e dançante. E aí, veio vindo essas possibilidades, de pegar minhas referências e trazer outras coisas. No momento, me acho muito no rap, hip-hop, R&B. Mas, não larguei mão de quem eu era no passado. Sempre adicionando e entendendo. Mulher de fases, de eras (risos).

H: Múltipla (risos).

U: Múltipla (risos).. Mulher.

H: Tem um lado mais vulnerável agora da Urias nesse disco. Um lado mais peito aberto, por assim dizer. Deu algum frio na barriga, alguma ansiedade, algum medo de se mostrar dessa forma para o público, para os fãs, para quem já te conhece e talvez não saiba que você pode ser assim?

U: No começo, não. Aí na hora de lançar, sim. Enquanto eu fazia a música, tava ‘ai, vou falar disso, eu tô passando por isso, eu preciso’. Mas na hora de lançar eu fiquei: ‘gente!’. No caso de ‘Foi Mal’, por exemplo, foi a primeira vez que me mostrei dessa maneira e não sabia como a galera ia receber a música. Por ser lenta, por falar de coisas que nunca falei. Isso foi um grande fator desse nervosismo.

No meio do caminho, eu meio que me encorajei por conta do que me propus a fazer. Nesse álbum, me propus a me humanizar num sentido de que também sinto, e de que sinto várias coisas, não só sentimentos trans. Porque a galera coloca a gente num rolê assim: ‘ela é trans e ela é só isso, acabou’. Quis me humanizar mesmo. Gente, eu sinto raiva, sinto isso, sinto aquilo. Sou gente. Isso me deu muito um boost. Mostrar pra vocês, pessoas cis, que eu sou humana. Falei: ‘preciso soltar essas coisas, preciso falar disso, preciso mostrar pra galera que a gente sente. Que a gente sabe o que sente’.

Ouça abaixo o álbum “Fúria”:

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