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Banda do Fuxico: Tradição e transgressão no carnaval de SP

Roberto Mafra, criador da Banda do Fuxico no carnaval de SP (Foto: Pedro Stephan)

Hoje em dia, São Paulo tem o maior carnaval do Brasil. Daqui a algumas semanas, os foliões irão se jogar no carnaval de rua LGBTQIA+ e encontrar tudo pronto para a grande festa. Mas não sabem que houve um grande percurso para que essa folia existisse e um imenso trabalho de produção dos organizadores independentes. Nesta edição da Perfil, trazemos com muita ginga e malícia o depoimento do carnavalesco gay Roberto Mafra, criador da Banda do Fuxico ainda no início deste milênio.

Roberto foi pioneiro ao realizar o carnaval voltado para a nossa comunidade. Nesta entrevista, ele nos conta a longa trajetória do carnaval de rua LGBTQIA+ em São Paulo: desde o início, muito pequeno e tímido, até sua explosão e expansão nos inúmeros blocos que existem hoje.

Mas nem tudo foi purpurina e serpentina nessa trajetória: houve muita luta para conseguir financiar as bandas LGBTQIA+, a oposição dos conservadores e uma imensa intromissão e burocracia das autoridades. Roberto, que gosta de luxo e glamour, não tem papas na língua e conta tudinho nesta entrevista.

HÍBRIDA: Quando começou a Banda do Fuxico?

ROBERTO MAFRA: Ela surgiu em 2001, no centro de São Paulo, para ser mais um bloco de rua que pudesse atrair a comunidade LGBTQIA+ com segurança para o carnaval de rua.

H: Já havia outra banda voltada para esse público?

RF: Sim, já havia a Banda do Arouche, do Ricardo Medeiros, e eu tinha uma parceria com ele. Mas como ele resolveu ir embora pra Florianópolis, o carnaval de SP ficou vazio. Naquela época, não tinha essa imensa variedade de blocos que temos hoje. Resolvi fundar a Banda do Fuxico que foi um luxo, uma loucura pra época.

H: Como era o carnaval de SP na época que você fundou a Banda do Fuxico?

RF: Naquela época, tínhamos uns 20 blocos de carnaval de rua, todos muito pequenos. A cidade ficava deserta na época do carnaval. De blocos LGBTQIA+, havia apenas a Banda do Arouche e a do Fuxico. Depois, os LGBTQIA+ invadiram e tomaram conta das outras duas: a Banda Redonda e a Banda do Candinho.

H: E como era o público?

RF: Todo mundo gostava de sair fantasiado de verdade: aquelas mega fantasias,. Era um desfile de glamour.

H: O carnaval daquela época era muito diferente do que é hoje? De que maneira?

RF: Não havia essa quantidade de blocos e (os que existiam) traziam um público muito modesto. Havia a questão musical: os carros de som e as fanfarras tocavam os sambas e as marchinhas de carnaval. Hoje em dia, eles tocam música eletrônica, axé e funk. E não havia toda essa burocracia da Prefeitura.

A questão de horário que estão impondo agora: naquela época os blocos tinham liberdade de desfilar a hora que quisessem, desde que cumprissem os requisitos e agendassem com a CET e a Polícia Militar.

H: Como ficava São Paulo naquela época?

RF: Não tinha ninguém aqui. Todo mundo ia pra Salvador ou para Recife, sair no Galo da Madrugada, ou ia pro Rio, que tinha umas bandas incríveis, como a Banda de Ipanema, a Banda da Carmem Miranda e o carnaval do Sambódromo, das escolas de samba. Mas houve uma reviravolta e o carnaval de SP explodiu e se tornou um evento gigantesco.

H: Quando foi isso?

RF: Foi em 2016, 2017. O Juca Ferreira, secretário da Cultura, quando assumiu criou os seminários para debater o carnaval. Se propôs a trazer os megablocos dos artistas famosos, como da Daniela Mercury, Preta Gil e Bloco da Bola Preta, entre outros. Com isso, criou-se a visão de que SP tinha condições de ter um grande carnaval, e encorajou as pessoas a colocar um bloco na rua. Depois desse fomento, houve a explosão do carnaval de SP.

H: Como era a Banda do Fuxico de 2001 e como ela é hoje?

RF: Na verdade, a Banda do Fuxico não perdeu nenhuma característica. Naquela época, só tocávamos marchinhas e, hoje em dia, além das marchinhas tocamos outros tipos de música. Mas tem artistas que a gente não toca. Eu falo “não toca música de tal artista”.

H: Por que não tocam?

RF: Porque são homofóbicos, tem discurso anti-LGBTQIA+, ou são machistas. Nós temos essas regras e tradição dentro do bloco.

H: Quais são essas tradições?

RF: Desde o início definimos explicitamente que era uma banda ”GLS”, o termo da época. Era um espaço da comunidade e as trans podiam ir de peito de fora, os homens de tapa-sexo… Fazíamos e fazemos prevenção dentro do bloco. Também temos uma corte onde elegemos o rei e a rainha da bateria da Banda do Fuxico. Fazemos a corrida de salto alto.

Esses acontecimentos fazem parte da nossa tradição.

Roberto Mafra, criador da Banda do Fuxico no carnaval de SP (Foto: Pedro Stephan)
Roberto Mafra, criador da Banda do Fuxico no carnaval de SP (Foto: Pedro Stephan)

H: Do início da banda até hoje, quais as dificuldades você encontrou pelo caminho?

RF: Alguns bloqueios do poder público de limitar horário de blocos, quantidade de pessoas, interferência e mudanças no percurso do desfile do bloco. Eles estão sempre colocando algum empecilho para os blocos não irem pra rua.

H: Por que fazem esse tipo de obstrução?

RF: Porque não querem nem gostam da cultura popular. Nós estamos vivendo um retrocesso. Querem que você chegue meio-dia com seu bloco e às 14h acabe. Para “acabar com a bagunça”. Mas esse discurso é tendencioso, pois o carnaval não é todos os dias e sim uma vez por ano. Depois, tudo volta ao normal. Existe uma ação contrária ao carnaval e a toda manifestação cultural popular.

H: E você acha que essa oposição é religiosa?

RF: Sim, mas especialmente dos evangélicos que são radicais nessa questão. Eu respeito essa posição desde que não venham interferir e ditar regras para o nosso evento; Caso contrário, vamos pro debate para tentar mudar essa cultura negativa.

H: E as outras religiões?

RF: São mais flexíveis para entender as manifestações culturais. Muitas delas incorporam através do sincretismo religioso e trazem elementos da Igreja Católica para o carnaval de rua e para o desfile das escolas de samba do sambódromo. Trazem São Sebastião, Santa Bárbara, São Miguel e vários outros personagens da Igreja Católica, que são homenageados não só no sambódromo, mas também no carnaval de rua de São Paulo.

H: Vocês precisam de uma grande estrutura para pôr o bloco na rua. Quem financia isso?

RF: Depois que o carnaval de SP explodiu e trouxe os megablocos, começou a aparecer os patrocinadores. Mas eles impõem muitos limites. “Eu dou a grana, mas não pode isso e aquilo.” E isso é um problema. Esses patrocinadores, que apoiavam também os blocos menores, agora só querem patrocinar os que arrastam multidões. Também existe o patrocínio oficial da Cidade de São Paulo, que injeta 25 milhões no carnaval de rua. Mas ainda é pouco diante do imenso lucro que o carnaval traz pra cidade.

H: E a Secretaria da Cultura, o que faz?

RF: Este ano, tivemos um avanço com a secretária de Cultura, Aline Torres,. Foi criado um edital para contemplar os blocos que desfilam há mais de 3 anos e têm história. Esses blocos receberam R$ 14 mil, que ajuda a pagar as despesas. Ela também fez uma comissão das pessoas que têm blocos, para discutirmos como fazer um melhor carnaval. Mas acho que essa discussão tem que se abrir para muitos mais participantes. Já que são 600 blocos, ao invés de 10 pessoas discutindo, deveriam ser 50 pessoas para decidir as diretrizes do carnaval de rua. Só nós que realizamos o carnaval, que produzimos o carnaval, podemos saber o que é melhor para ele.

H: E a estrutura que faz o carnaval acontecer?

RF: A Prefeitura coloca uma infraestrutura para acontecer esse carnaval gigantesco, mas ainda é deficiente: faltam banheiros químicos, por exemplo. Como pode um bloco que tem 100 mil pessoas com apenas cem banheiros? E ficam os três dias de carnaval sem manutenção, tornando-se impraticáveis. Tem a questão da segurança: não tem um efetivo suficiente que esteja nos lugares certos para dar segurança aos foliões.

H: Qual é o custo para colocar um bloco nos padrões de hoje na rua?

RF: R$ 15 mil, num trio elétrico, mais trinta seguranças particulares, mais as pessoas pra segurar o cordão de isolamento, mais abadá, mais DJ e outros custos. Acaba que temos um custo de R$ 50 mil pra botar um bloco na rua. Se não houver vários patrocinadores, fica inviável. Dá para colocar um bloco menor na rua com menos, mas também tem custos: pagar a fanfarra, dar lanche pra eles etc. Não sai por menos de R$ 8 mil.

H: Os últimos carnavais se politizaram incrivelmente: nos enredos das escolas de samba ou nas fantasias temáticas dos foliões dos blocos. Como você vê esse fenômeno e como a Banda do Fuxico se alinha a isso?

RF: Foi uma reação de quatro anos para cá, contra um governo radical que era contra a cultura popular, que queria exterminá-la. Diante disso, sentimos a necessidade de falar mais alto sobre a democracia, especialmente sobre as pessoas que foram mortas por esse sistema. Para além da alegria, o carnaval é um palco de manifestações: política, cultural e popular.

H: Existe uma crítica às escolas de samba sobre o “embranquecimento”, especialmente das lideranças. O que acha disso?

RF: Sim, existe um enfraquecimento da cultura preta dentro do carnaval das escolas de samba, apesar dos enredos virem exaltando personagens negras como Dandara, Clementina de Jesus, Luiz Gonzaga, Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela etc. A escola está embranquecendo nas frentes das baterias, nas comissões de frente e nas presidências. O empoderamento afro não está lá.

H: Pode citar um exemplo específico?

RF: Na Unidos do Tuiuti, ano passado, houve uma polêmica sobre o embranquecimento da escola. A rainha da bateria era uma empresária que comprou o título. E uma menina, a Maiara, que era a princesa da bateria, fez uma performance sincronizada com a bateria e o registro em vídeo bombou na web. Diante disso, a tal rainha que não sabia nem sambar declinou do título porque aquele lugar não era o dela, mas da jovem passista.

H: O que você acha que a Prefeitura de SP tem que fazer para promover um carnaval melhor e aprimorar a relação com os blocos?

RF: Veja bem, a Prefeitura realiza a Virada Cultural, que é um evento gigante e para ela patrocina tudo: estrutura, paga artistas etc. Acho que a Prefeitura deveria chamar cada bloco, em especial os menores sem patrocinador milionário, e perguntar “Qual é a sua estrutura?”. Os organizadores dos blocos especificariam e a Prefeitura bancaria esses blocos. Nós produzimos esse evento e a Prefeitura deveria custear ele integralmente, especialmente porque esse carnaval arrecada muitos milhões, muito mais que os R$ 25 milhões que eles injetam no carnaval.


Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix BrasilG MagazineG Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.

**O autor é integralmente responsável pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo do trabalho publicado.

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