Jornalista, cineasta e escritor consagrado, João Silvério Trevisan é, aos 79 anos, um decano do movimento LGBTQIA+ no Brasil, já cimentando como ícone da nossa comunidade e reverenciado por todos que o conhecem. Seu livro Devassos no Paraíso (Companhia das Letras), lançado originalmente na década de 1980, chegou à quarta edição em 2018 e é considerado o registro mais completo sobre a história da nossa população, traçando uma linha do tempo desde a colonização até os dias de hoje.
João recebeu o colunista Pedro Stephan em seu apartamento, no centro de São Paulo. Naquele espaço amplo, repleto de obras de arte e livros, ele não se faz de rogado e demonstra um raciocínio brilhante e rápido ao discorrer sobre os mais variados temas: literatura, política, as novas gerações e… homens!
Sempre com uma perspectiva positiva e humor nas suas falas, João Silvério Trevisan concedeu uma entrevista, como dizem os paulistas, “suave”. Leia abaixo.
HÍBRIDA: Você começou sua atividade artística como cineasta e depois foi para a literatura. Por quê?
JOÃO SILVÉRIO TREVISAN: Na verdade, comecei com literatura. Quando ainda fazia o seminário, escrevi um conto chamado Um Caso, sobre meu pai. Havia um concurso de literatura e participei com ele. No dia, fui ler o texto e chorei muito. No final, me deram o prêmio de “interpretação”. Fiquei furioso porque não tinha interpretado, aquilo foi minha vivência. Então rompi com tudo, saí do seminário e fui fazer cinema.
H: Depois, quando você foi para o cinema, o que aconteceu?
JST: Aconteceu algo pior ainda: meu filme foi censurado e proibido pela ditadura militar. Em seguida, fui embora do Brasil para o exílio. No México, numa briga com um “poetinha”, um cara ridículo (só porque ele recebeu uma bolsa e se achava o máximo), discutimos muito. Após a discussão, fui para casa e escrevi o primeiro conto do meu primeiro livro, que era justamente inspirado no seminário: Testamento de Jônatas deixado a Davi (1976). Foi aí que voltei para a literatura.
H: Quantos livros você escreveu e quantos publicou?
JST: Acho que são uns 14, perdi a conta. Mas, ainda para publicar, tenho meus livros de poemas, meus diários, mais uns dois romances, críticas de filmes, artigos… Muita coisa.
H: Você recebeu grandes prêmios da literatura brasileira. Como é ter esse reconhecimento?
JST: Você pode dizer “grande” se esquecer que a remuneração é mínima. Do Prêmio Jabuti, recebi na época R$ 350 (João já ficou no 2º lugar do prêmio, com Ana em Veneza, em 1995; e no 3º, com Troços & Destroços, em 1998). Fiquei danado da vida e fui correndo comprar a obra completa do Freud em espanhol.
H: Fora a sua obra-prima Devassos no Paraíso, que é uma bíblia LGBTQIA+, qual é o outro livro seu que você mais gosta?
JST: Você presume que é o que eu mais gosto, mas disso nem eu mesmo tenho certeza! (risos) Eu estou apaixonado por Seis balas num buraco só (Ed. Objetiva, 1998), que é um livro instigante e atualíssimo sobre a crise do masculino. De ficção,é um que sempre amei e estou muito feliz porque acaba de ser reeditado: Vagas notícias de Melinha Marchiotti (Ed. Record, 1984), o livro que fiz com mais liberdade. Experimentei o que eu queria.
H: Vamos falar de política. Você se identificava mais com o anarquismo no passado. Como se posiciona hoje em dia?
JST: Atualmente, me defino como alguém que está em permanente crescimento da consciência política. Não aceito manuais nem catecismos. A única certeza que sei é que eu sou de esquerda, mas de uma “certa esquerda”. Tenho sérios questionamentos com a esquerda, mas jamais me identificaria como um cara de direita. Tenho uma visão progressista da sociedade e uma visão clara da importância da democracia em todos os sentidos, inclusive como um instrumento de justiça. Porque a minha consciência da desigualdade é uma das coisas que mais me dói.
Não existe messias de direita nem de esquerda. Nós temos que lutar com tudo o que a democracia nos permite
H: Qual é a sua expectativa para esse terceiro governo Lula, que já está em andamento?
JST: Tenho uma puta esperança! E o que ele já fez em seis meses é absolutamente notável, em todos os aspectos. A gente pode ter algum tipo de divergência, é óbvio. Mas acho que o Lula está cumprindo o papel dele lindamente com consciência do lixo que encontrou. E temos que limpar esse terreno, com muito trabalho a ser feito.
Por outro lado, eu me recuso a tomar o Lula como um messias. Nós tivemos quatro anos do “Messias” e não deu certo. Espero que as pessoas aprendam: não existe messias de direita nem de esquerda. Não adianta delegar pras mãos de governantes a nossa participação na sociedade civil. Numa democracia, nós temos que lutar com tudo o que a democracia nos permite.
H: O que tem a dizer para quem acha que “tudo já foi feito”?
JST: A comunidade LGBTQIA+ que preste muita atenção, porque nós não chegamos ao paraíso. Aliás, o paraíso não existe. Se as pessoas estão correndo para as drogas atrás do paraíso, fiquem à vontade para caírem num abismo.
H: Existe na comunidade preta, por exemplo, uma busca pela ancestralidade, uma valorização da memória, do passado e dos antecessores. Enxerga isso entre a comunidade LGBTQIA+?
JST: Existe talvez no meio acadêmico, que tem interesse em descobrir coisas e ter novidades a oferecer para a própria academia. Mas isso não sai da academia, é sempre circunscrito a bolhas. Se for pensar na comunidade LGBTQIA+, aí esquece. O conceito de ancestralidade é desconhecido e não muito aceito. Ancestralidade é confundida com velharia. A bicha velha é “maricona”, a lésbica velha é “sapatão velho”, a travesti velha tem que ir prum asilo etc. Não há nenhum conceito de que existe riqueza no passado.
É muito claro que, para a comunidade LGBTQIA+ jovem, tudo começou ontem à tarde. “Eu inventei a pólvora porque uso este tipo de roupa”, “fulano de tal se acha revolucionário porque produz uma festa noturna” etc. Esses são os conceitos: tudo baseado na novidade e na juventude, que se acha muito original.
Nunca vi um nível de consciência tamanha como temos agora
H: Você não acha que alguns elementos e líderes da juventude LGBTQIA+, no afã de se estabelecerem, enterram o que veio antes para parecer que estão fazendo algo novo?
JST: É uma atitude de autoafirmação muito característica da nossa comunidade. Essas pessoas gostam de cultivar o novo e a juventude. Há um medo muito grande de envelhecer, por conta da solidão. As pessoas mais velhas são consideradas superadas. Esse conceito de “superação” é péssimo, porque você perde a idéia da memória LGBTQIA+, além de jogar pessoas vivas num saco de lixo.
H: Você recentemente tornou público o seu status de soropositivo. Quando descobriu isso?
JST: Por volta de 1992, mas já desconfiava alguns anos antes.
H: Como foi viver com HIV, de 1992 até hoje?
JST: Foi uma longa jornada de tudo, inclusive de levar muita porrada fora e dentro do meio (LGBTQIA+).
H: Mas as pessoas sabiam que você era soropositivo?
JST: Quando eu dizia, acabava a conversa.
O conceito de ancestralidade é desconhecido e não muito aceito pela comunidade LGBTQIA+
H: Como vê a nova geração que se identifica como queer?
JST: Por mais que exista efetivamente um modismo, por mais que esse grupo seja minoritário dentro dos outros estilos da atual juventude, esse grupo com sua consciência de sexualidade e diversidade de gênero é inédito na história da comunidade LGBTQIA+ brasileira. Eu nunca vi um nível de consciência tamanha como temos agora. Ainda que possa haver um esquema de moda, essas pessoas nunca foram tão presentes, tão provocadoras.
H: Agora vou fazer umas perguntas que o Pedro Bial jamais faria pra ti! (risos) Vamos falar sobre homens?
JST: Claro que sim!
H: Você viajou para o exterior e teve muitos namorados, é um homem experiente. Afinal, o homem brasileiro tem um elã especial ou você curtiu mais os homens de outros países?
JST: O homem brasileiro tem de especial o olhar. Tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos, onde morei, sentia a falta desse olhar brasileiro. Na Alemanha, se você encarar uma pessoa a menos de 2 metros de distância, estará sendo mal-educado. Você percebe que eles dão uma geral de longe e já sabem o que querem. Nos EUA, morei no centro da contracultura, em São Francisco, e as pessoas se olhavam e diziam “Hi!”, mas aquele olhar era fruto da contracultura, daquele momento. Hoje em dia, não sei se existe alguma herança cultural daquele movimento. Quando estava lá, morria de saudades dos olhares dos brasileiros, que poderiam ser até invasivos, mas são muito genuínos.
H: O que mais te atrai num homem?
JST: Inteligência, o brilho da inteligência. Eu posso ter uma boa transa, mas se a pessoa tiver inteligência está num outro patamar. E um novo amor pode nascer daí.
H: Tamanho é documento? Por quê?
JST: Não, não é. Talvez seja para brincar, mas pode ser isso ou qualquer outra coisa no sexo. Você tem tudo para brincar com o corpo do outro – e se deixar brincar.
H: Qual a diferença entre namorar um homem da sua idade para um mais jovem?
JST: Existem muitas características positivas e negativas em relação ao homem mais jovem ou mais velho, e elas acabam sendo equivalentes. Não vejo diferenças do ponto de vista da escolha. Um homem mais jovem pode ser muito cru, mas ao mesmo tempo muito intenso. Já o mais velho talvez não seja tão intenso, mas tem uma bagagem.
Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix Brasil, G Magazine, G Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.
**O autor é integralmente responsável pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo do trabalho publicado.