Como uma Valquíria viking que pula do navio e se joga na batalha, a editora Laura Bacellar, de 62 anos, tomou de assalto o mercado brasileiro na década de 1990 e cravou ali a temática LGBTQIA+, que até então só aparecia timidamente em alguns clássicos da literatura.
Laura entrou na universidade de editoração ainda em 1982, mas levou quase dez anos para se lançar no mercado porque o meio editorial de então era extremamente heteronormativo. Nos anos 1990, então, ela ajudou a produzir a primeira revista lésbica do Brasil, a Femme. Em seguida, criou a Edições GLS, o primeiro selo especializado na temática LGBTQIA+ e responsável também pelos primeiros registros de palavras como “gay”, “lésbica” e “transexual” em capas e contracapas de livros lançados aqui.
Esse pioneirismo não foi fácil e Laura teve que enfrentar os bloqueios de distribuição e marketing numa época em que nenhuma livraria queria exibir em suas prateleiras livros com esses temas. Mas sem desistir, ela mais tarde ajudaria a levantar a primeira livraria LGBTQIA+ do Brasil, a Futuro Infinito, um espaço que se tornou referência de encontros culturais para o público lésbico graças ao grupo Umas & Outras, fundado por ela.
Laura criou também a Malagueta, uma editora que lançava exclusivamente livros escritos por lésbicas e com histórias baseadas nelas. Na entrevista abaixo, ela conta com detalhes a vida cultural e a produção editorial de literatura LGBTQIA+ dos anos 1980 até os dias de hoje e como enfrentou o sistema movida por um sonho e uma necessidade pessoais.
HÍBRIDA: Você entrou na faculdade em 1982 e saiu quase em 1990. Por que essa demora?
LAURA BACELLAR: Não fui uma aluna muito aplicada. Achei a escola fraca. Tinha muita brincadeira e bagunça, mas pra nós LGBTQIA+ era uma desgraça, uma heterolândia. Mas mesmo sem me formar, fui trabalhar na editora Brasiliense.
H: Como era o clima lá?
LB: Era a editora mais “cabeça aberta” da época, tinha em seu catálogo algumas obras com pé no gay. Foi a editora que publicou o Caio Fernando Abreu. Tinha também uma coleção chamada Encantos Radicais, com livros sobre personalidades gays, como Madame Satã. Nessa época, eu estava trabalhando ali dentro. Tinha até um jornalzinho que permitia anúncio de pessoas que queriam encontros com pessoas do mesmo sexo. Eu achava aquilo super legal e meu sonho era fazer mais.
H: Então você já tinha isso na cabeça? Já pensava em publicar produções LGBTQIA+?
LB: Sim, publicar e ter um canal pras pessoas poderem se encontrar. Às vezes, chegavam umas cartas de pessoas desesperadas querendo ter amigos e namorados LGBTQIA+. Eu percebi que a comunidade precisava de oportunidades de contato.
H: Nessa época, você já era assumida?
LB: Não era assumida publicamente, mas já namorava mulher.
H: Nos anos 1980, alguns escritores LGBTQIA+ começaram a abordar esse tema. Quem eram os principais?
LB: O Caio Fernando Abreu. A Ana Cristina Cesar, que também era publicada pela Brasiliense. Tinha um editor de um selo da Siciliano, Pedro Paulo Sena Madureira, ele era super “flamejante” e publicou muito livro gay. Então tinha alguma coisa acontecendo.
H: Como a epidemia da Aids afetou o nicho LGBTQIA+ que ainda era incipiente?
LB: Começou a morrer um monte de gente, inclusive autores, e isso afetou mais os gays do que as lésbicas, apesar de termos perdido amigos também. Nos anos 1980 tudo era feito à meia luz. O Sena Madureira publicava livros gays, mas em nenhum lugar dizia que os livros eram gays. Publicou o Edmund Wilson, que tinha uma pegada super gay, era ativista, mas nem na capa ou na contracapa se falava disso. Quando veio a Aids, as pessoas demoraram a se organizar. Quando isso aconteceu, foi para proteger as vítimas da doença e do extremo preconceito que surgiu.
H: Quando você fundou a Edições GLS foi como uma resposta a essa tendência de mascarar a literatura LGBTQIA+?
LB: Foi, exatamente. Eu passei uns anos fora do país e, em 1991, tive oportunidade de participar do primeiro encontro de editoras gays nos EUA. Fiquei encantada porque vi lá como gente da editora Random House e de editoras gigantescas consideravam esse segmento possível de dar lucro. Voltei ao Brasil no ano seguinte, pensando que, quando conseguisse, iria entrar no mercado com uma editora assumida, com bandeira, como se fosse um bom negócio. Demorou um tempo para eu conseguir articular isso.
H: Quando você conseguiu?
LB: Só em 1997. Mas, durante todos esses anos, as coisas foram acontecendo: a primeira Parada do Orgulho de Sampa, a Parada da ILGA no Rio…
H: Você fazia parte de algum grupo lésbico da época?
LB: Oficialmente não, mas eu me enfiava em tudo. Teve um encontro de grupos ativistas homossexuais em Cajamar. Como eu não tinha grupo, inventei um, me inscrevi e fui.
Lá, conheci um casal de garotas de Santos que queriam fazer uma revista lésbica. Elas fizeram a Femme, uma revista lésbica pioneira que ajudei a lançar e participei escrevendo.
H: E aonde você foi parar nessa sua busca?
LB: Fui me metendo nessas coisas até aparecer uma oportunidade de fundar um selo “GLS”. Isso aconteceu ligado ao grupo editorial Sumus. Fiz um acordo com o dono da Sumus para criar um selo voltado ao público LGBTQIA+. Meu combinado desde o início foi que tudo seria muito claro. Fui a primeira editora no Brasil a publicar “gay” escrito na capa; “lésbica”, que era considerado palavrão; “transexual” etc. Era isso que eu queria: que fosse tudo claro.
H: Como o público reagiu a essa novidade?
LB: Muitas pessoas gostaram e tive ajuda para colocar os livros em alguns lugares e divulgar. Mas também tive muita resistência. As livrarias não queriam expor livros que tivessem escrito gay, lésbica, trans. Escondiam os livros. A própria equipe de vendas da Sumus era desconfortável com os livros, não levava para todos os lugares e todos os distribuidores. Foi uma briga.
Estávamos no meio de uma guerra cultural, é claro que precisávamos levantar bandeira
Muitos gays conservadores se escandalizaram com a maneira como eu fiz. “Não precisa por na capa”, “pra quê levantar bandeira desse jeito?”. E aquele era o momento decisivo. Nós estávamos no meio de uma guerra cultural, é claro que precisávamos levantar bandeira. Eu fiz eventos em todos os lugares que consegui para divulgar o nome da editora.
H: E a editora vendeu bem?
LB: Comercialmente, a editora andou, mas não maravilhosamente. Consegui aparecer em muitos lugares que nós ocupamos. Até para dar entrevista sobre a editora: eu era uma das pouquíssimas lésbicas que aparecia publicamente. Quase não tinha voz feminina.
H: Como a imprensa reagiu aos lançamentos da Edições GLS?
LB: Eles adoravam. Era novidade, tudo diferente. Eu saí inúmeras vezes na Folha de São Paulo, na capa da Época. Dava muitas entrevistas falando da editora e dos lançamentos. Apesar de não ter sido um enorme sucesso comercial, eu contribuí para aumentar a visibilidade LGBTQIA+ no mercado editorial.
H: Depois, você criou a editora Malagueta. Como foi isso?
LB: Havia e há um preconceito do público e da crítica que considerava os livros lésbicos como uma subliteratura. Os gays um pouco menos, mas as lésbicas eram totalmente desconsideradas. Não existe no Brasil uma escritora lésbica que seja vista pela crítica como boa escritora. E as próprias lésbicas têm esse preconceito. Está mudando agora, mas não mudou tanto assim.
H: O que você acha que seja? Machismo? Preconceito?
LB: A primeira causa é a crítica ser contra tudo fora da norma. A segunda é o machismo. E, por fim, é as lésbicas serem bunda-mole e não se mexerem para defender as escritoras do meio. Mas isso está mudando, hoje tem garotas dizendo “é isso que eu gosto e quero”. Porém, lá pra trás não tinha mesmo.
De 2000 até 2010, tivemos muita briga para reconhecer que essa é uma literatura que merece atenção, que as garotas precisam ler isso. Especialmente se você olha à volta e não se vê em lugar nenhum. Na Malagueta, a minha luta era por visibilidade. Ninguém sabia que tinha autora lésbica, literatura lésbica. Fiz muitos eventos para divulgar. Rodei do Oiapoque ao Chuí (risos). Foi um trabalho mais de ativismo do que comercial.
H: Financeiramente, não rendeu nada?
LB: Rendeu pouco. Tive muito trabalho para pouco retorno financeiro. Mas tudo bem, não me arrependo. Fiz a minha parte pra dar uma sacudida no mercado, publiquei algumas autoras pela primeira vez, muitas e muitas mulheres foram nos eventos que a gente criou. Elas diziam “eu não sabia que existe autora lésbica, não sabia que existe vídeo pra lésbica, não sabia que existe tanta gente lésbica!”. Se comercialmente não tive sucesso, culturalmente acho que teve impacto.
Criaram até um grupo que apoiava, as Malaguettes, por exemplo, que iam aos eventos e ajudavam a gente a se organizar trabalhando voluntariamente.
H: Na Malagueta, vocês tiveram a mesma resistência de exibir os livros como foi na Editora GLS? Ou as coisas já haviam melhorado?
LB: Tivemos menos problemas. Na Livraria Cultura, que era a maior do Brasil, conseguimos colocar os livros. Mas não havia distribuição nacional, então resolvi fazer através de eventos ou pelos correios. Esse caminho é seguido pelas pequenas editoras independentes hoje: elas ignoram o sistema de grandes livrarias, distribuidoras etc., porque ainda são muito preconceituosas para qualquer tipo de literatura que não seja mainstream.
H: Acha que a internet ajudou nisso?
LB: Pra caramba! Vejo agora algumas autoras lançando livros por conta própria, sem editora nenhuma, só colocando na Amazon e vendendo. Uma garota que está afim desse tipo de literatura vai na Amazon e acha. O livro chega até ela de uma maneira discreta e, se quiser, pode comprar o livro eletrônico, que é mais barato, adquire instantaneamente e pode ler na sua privacidade.
H: Você participou da criação da Livraria Futuro Infinito, que foi a primeira livraria LGBTQIA+ do Brasil. Como isso aconteceu?
LB: Eu era super amiga do Sérgio Miguez, desde o tempo em que ele era um dos sócios da Livraria Belas Artes e eu vivia por lá. Mas antes de ser Futuro Infinito, um outro empresário, Aldo Boccini, abriu a Livraria do Meio, que já era “GLS”. Dei todo o apoio com a editora Sumus e trabalhamos em conjunto para organizar a livraria. Mas o Aldo não curtiu a livraria, achou que seria diferente, que seria mais fácil tocar o negócio.
Mas não é fácil tocar uma empreitada dessas, você não ganha rios de dinheiro. Você tem que lutar com o preconceito internalizado dos próprios LGBTQIA+. Ele manteve a livraria por dois anos e depois propôs vender pro Sérgio Miguez.
H: E o que o Sérgio fez?
LB: Ele mudou o nome, o estilo e o endereço: trouxe pra alameda Franca, no Jardim Paulista. Alugou um prédio de quatro andares porque queria eventos culturais para atrair público. Inclusive, comecei o grupo Umas & Outras lá.
H: O que foi o grupo Umas & Outras?
LB: Um grupo de encontros só de mulheres, que acontecia uma vez por mês e o Miguez cedia o salão de um andar de cima. A cada encontro, a gente convidava uma lésbica que iria falar sobre alguma coisa. A primeira foi a Vange Leonel, que falou de sua paixão pela Xena.
Isso criou um espaço muito especial: quase não existe na nossa cultura um espaço onde só entram mulheres. O evento foi um sucesso e chegamos a ter cem mulheres presentes. Depois, quando a livraria fechou, alugamos um espaço para continuar os encontros. Foi importante para as mulheres se encontrarem e falar só de sapataria, arrumar amigas e namoradas.
H: Seria então mais um grupo de convivência e socialização do que de militância?
LB: Eu fiz um esforço pra ser muito diferente da militância. Tive uma má experiência com a militância, achei muito agressiva. Também tive uma má experiência com as lésbicas militantes na Alemanha, onde morei um tempo. Então, determinei que se houvesse uma garota nova naquele grupo, ela seria recebida por um comitê de recepção: vai alguém explicar como funciona e receber.
A comunidade lésbica era toda pra dentro, escondida, em gueto
H: Então era um grupo de ajuda mútua?
LB: Teve de tudo. Os eventos que aconteceram na Futuro Infinito eram exclusivamente culturais, tivemos até a Cassandra Rios falando sobre sua obra. Depois, quando alugamos uma sala, eram dois eventos por semana e havia o grupo de ajuda mútua, outro de cinema e um grande encontro onde uma convidada vinha falar sobre um tema interessante. Mantivemos esse grupo de 2000 até 2004.
H: Como era a comunidade lésbica de São Paulo nos anos 1980? Como ela socializava e como isso mudou ao longo das décadas?
LB: A comunidade era toda pra dentro, escondida, em gueto. Em São Paulo, o bar mais famoso era o Ferro’s, um bar pequeno, que de dia funcionava como restaurante e de noite era frequentado por uma sapataria, mas cujo dono era um hétero que nem gostava das lésbicas. Tinha a Moustache, uma boate pra mulherada. Mas eu achava barra pesada esses lugares, era um público composto de mulheres briguentas ou deprimidas. Sempre tinha briga do tipo “ah, você olhou minha namorada”.
H: E como isso evoluiu?
LB: Muito aos poucos. Foi mudando pras mulheres serem mais soltas, tranquilas, assumidas. Eu gostava dos eventos artísticos e culturais. Então, achei ótimo quando nos anos 1990 surgiu um movimento lésbico. Nessa época que inventaram o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Vi surgirem grupos de mulheres que tocam tambores, grupos de mulheres no samba. Nós saímos daquele registro de gueto, de ciúmes e brigas para outro que era o da cultura e da cidadania.
H: Atualmente, você acha que estão surgindo novos espaços de socialização para lésbicas em SP?
LB: As lésbicas sempre tiveram poucos lugares. Agora, os lugares são pequenos, não duram muito. Fazem uma ferveção em algum lugar, dura uns meses, faz aquele rebuliço e depois some e abre outra coisa em outro lugar. É outro estilo, mas pelo menos é mais aberto. Hoje é mais acessível pras garotas, a pessoa dá uma busca em “festa lésbica” e encontra. Acho que as coisas melhoraram.
H: Mas é importante existir espaços de socialização para esse público, certo?
LB: Mais do que nunca, pois a guerra cultural se aprofundou. Quem é filho de evangélico fundamentalista e é gay, lésbica ou trans, tem dificuldade de encontrar seus pares, está lá fechado naquele meio. Essas pessoas precisam ter contato com sua comunidade pra saber que são comuns e normais.
Hoje, existe um vasto catálogo de livros LGBTQIA+, textos nacionais e internacionais. Mas os livros de imagens, além de serem poucos, são todos estrangeiros, praticamente inexistindo uma iconografia nacional LGBTQIA+ .
H: A cultura visual LGBTQIA+ está empobrecida?
LB: Faltam livros sobre a nossa história, faltam imagens do nosso passado, das nossas personalidades, falta tudo isso. As editoras passaram tempos de crise e estão atualmente muito covardes. Estão demorando a publicar coisas que seriam importantes.
H: Você ainda trabalha com o público LGBTQIA+?
LB: Não diretamente. Faço um trabalho com autores, alguns deles são gays ou lésbicas. Pego gente que está querendo lançar livro, terminar livro. Não estou fazendo nenhum projeto editorial nesse momento.
H: Tem vontade de aproveitar essa maré a favor e voltar para esse campo?
LB: Eu teria que criar alguma coisa que valesse a pena. Hoje em dia, a internet está fazendo uma parte do meu antigo trabalho: vejo as autoras sendo publicadas e vendendo. Então, as coisas estão acontecendo. Eu precisaria de alguma coisa que valesse a pena.
Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix Brasil, G Magazine, G Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.
**O autor é integralmente responsável pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo do trabalho publicado.