Lançado há mais de 40 anos, Parceiros da Noite (Cruising) é um daqueles filmes emblemáticos que se infiltrou de forma tão enraizada na psique social que fica difícil traçar exatamente toda a influência que teve na cultura das décadas seguintes e, principalmente, na difusão de estereótipos do mundo gay (sim, especificamente gay, e não LGBTQIA+). Dirigido pelo mestre William Friedkin (1935 – 2023), o mesmo nome por trás de O Exorcista, e estrelado por um Al Pacino igualmente no ápice do desconforto e do sex appeal, o thriller policial permanece como um retrato tão fiel quanto indigesto sobre os piores hábitos que perpetuamos ao longo dos anos.
A história começa seguindo Pacino, que, na pele do detetive Steve Burns, decide se infiltrar camuflado na cena underground de BDSM em Nova York. Na busca por um serial killer com predileção por vítimas gays, ele encontra entre poppers e sadomasoquismo um submundo de baladas regadas a couro, calças apertadas e sexo casual, onde a luxúria é vivida na pista de dança e convida o policial (até então heterossexual) a questionar os limites do seu próprio desejo.
Desde que foi lançado em 1980, na iminência da epidemia do HIV, Cruising tem sido igualmente repudiado pela forma “estereotipada” com que retrata a promiscuidade gay e também reverenciado como um clássico cult que conseguiu encapsular o retrato fiel de uma era. O roteiro foi classificado como homofóbico por ativistas daquela época mas, ainda hoje, na década de 2020, continua a inspirar autores e histórias focadas em relacionamentos, narrativas e personagens homoafetivos e homoeróticos.
A 11ª temporada de American Horror Story, “NYC”, por exemplo, teve personagens, cenas e cenários praticamente copiados do clássico de Friedkin. Como já dizia Lady Gaga, por mais que Ryan Murphy seja destemido ao referenciar ou não o que quer que seja, a série foi ambientada na mesma época do filme e teve 12 episódios com muitas das problemáticas trazidas na história original, como a busca desenfreada pelo sexo hardcore e impessoal; um assassino em série que busca suas vítimas em pontos de cruising*; a linha tênue que separa os interesses profissionais e sexuais do mocinho investigando o caso; e muito mais.
Fortemente inspirado nos arquétipos criados por Tom of Finland, Cruising é o retrato de uma subcultura gay de BDSM que começou há muito mais de 40 anos, quando o filme foi lançado, e que permanece até hoje graças a uma comunidade que, apesar de não ser hegemônica nem unânime, continua sexualmente ativa e adepta dos mesmos vícios e fetiches que a história abordou. Basta entrar em qualquer sauna, bar, festa ou aplicativo de encontros para ver que as calças de couro, os poppers e a transa desenfreada sob a sombra do anonimato continuam práticas recorrentes por boa parte da comunidade gay.
Os bastidores do filme mereciam por si só uma análise à parte, seja pela forma como Al Pacino reagiu ao elenco e às locações ou pela direção que Friedkin manteve ao longo das gravações, relizadas em bares reais de cruising, no centro de Nova York. Apesar disso, quem olha apenas o produto final consegue ver que a história contada na tela ainda serve como um espelho de todos os riscos aos quais a comunidade gay continua se sujeitando quase meio século depois.
Pouco depois de o longa estrear, o mundo (gay, principalmente) sofreu uma dizimação provocada pela epidemia do HIV/Aids. Assim, é compreensível que ativistas LGBTQIA+ tenham tentado interromper as filmagens e barrar o filme de sequer chegar aos cinemas. Mas quem assiste à obra hoje consegue entender facilmente que a obra de Friedkin tenta muito mais criticar o sistema que oprimia e negligenciava a comunidas LGBTQIA+ da época do que criticar os membros da mesma.
Desde a primeira cena, o diretor deixa clara sua intenção de mostrar como as forças policiais eram (e ainda são) corruptas e negligentes com pessoas LGBTQIA+, mostrando a exploração de duas mulheres trans profissionais do sexo e como a vulnerabilidade social do grupo era usada para interesses próprios. Isso não exclui, entretanto, as verdades indigestas que o longa captura ao longo de suas quase duas horas de duração e que continuam reais até hoje.
Nos últimos anos, aplicativos de pegação como o Grindr têm sido utilizados por serial killers e golpistas de todos os tipos em busca de “presas fáceis”, gays que se tornam vítimas do próprio tesão. O método também é obviamente replicado por trambiqueiros heterossexuais, que prometem mundos e fundos a mulheres carentes, sozinhas e vulneráveis em outras plataformas como o Tinder e derivados. De uma forma ou de outra, ainda não avançamos quase nada na missão de desvincular o elo entre carência e vulnerabilidade que o filme escancara e que continua nos atingindo.
Mesmo que muitas cenas, diálogos e enquadramentos de Firedkin pareçam pensados especificamente para excitar o público, uma vez superado o tesão fica apenas a verdade desconfortável, inevitável e atemporal de que, quase cinquenta anos depois, nós, gays, continuamos vítimas do nosso próprio desejo. Assim, tudo o que foi mostrado nas telas de 1980 poderia ser replicado em 2024, com pouquíssimos ajustes em detalhes quase irrelevantes.
Cruising é um filme assustador, sensual e até divertido para quem gosta do gênero ou percebe a visão cínica de algumas situações expostas ali. É por isso que, ainda hoje, ele rende memes, reflexões e críticas fervorosas, para o seu próprio bem ou mal. Mas, acima de tudo, o filme continua inevitavelmente real, como um lembrete do destino que desafiamos sempre que nos colocamos em risco – aind que não sejamos os maiores culpados por isso.
Parceiros da Noite (Cruising) está disponível para aluguel sob demanda no Prime Video.
* Cruising é a prática de frequentar certos locais públicos ou privados com o objetivo de encontrar parceiros sexuais sem compromisso e sob anonimato. Pode ser feito em banheiros, estacionamentos, parques, praias etc.