“Não me preocupo muito em ser taxado como ator de um tipo só. Meu ofício é o de me desafiar e fico feliz de saber que a minha construção está disponível para qualquer personagem”. A declaração vem com calma pela voz de Silvero Pereira pelo telefone. Após mais de 15 anos trabalhando nos palcos, o ator finalmente colheu os merecidos frutos ao longo de 2017, um ano meteórico para a sua carreira. No teatro, ele acaba de encerrar a segunda temporada carioca do monólogo “Br-Trans”, uma espécie de estudo antropológico e social das travestis e transexuais brasileiras, idealizado e escrito por ele. Na sétima arte, lançou “Copa 181” e fez barulho pelo Festival do Rio, antes mesmo de sua estreia em circuito comercial. E, claro, houve ainda o presente duplo de Nonato/Elis Miranda, a personagem que marcou sua estreia na TV já em horário nobre, com um papel de destaque em “A Força do Querer”.
“Acredito que se isso entrou em pauta no horário nobre é porque já se tornou uma necessidade social. Não dá mais para passar desapercebido! Os próprios brasileiros estão dizendo que precisamos prestar mais atenção e desconstruir esse discurso de ódio”, diz Silvero sobre o foco que o folhetim de Glória Perez deu à discussão sobre gênero através tanto de sua personagem quanto da transição de Ivana para Ivan, interpretada pela também poderosa Carol Duarte. Quase que diariamente, o ator se transformou de Nonato, um motorista calado e soturno, para a radiante e performática Elis, sua persona noturna.
Mas Silvero e Glória, sob a direção de Papinha (Rogério Gomes), foram além. Juntos, eles explicaram didaticamente o abecê do que se passa no psicológico de alguém como Elis e, mais ainda, o que se passa no exterior: o escrutínio diário de agressões, xingamentos e preconceitos ao qual os LGBT+ são submetidos. “Nós conseguimos unir a parte comercial e industrial, sem deixar de lado a responsabilidade social do tema”, avalia Silvero, comemorando também o alcance que o debate teve através da TV. “Eu faço isso há 15 anos no teatro, mas ele tem seu eixo. O mais encantador do processo foi entender que a produção inteira estava comprometida em não ser negligente ou tratar essa discussão com imperícia”, pontua.
O ator frisa também a total liberdade que teve para sugerir alterações na forma com que Elis era representada na tela, indo da composição dos figurinos e da maquiagem à forma como ela falava: “Sabíamos que seria um tema delicado e precisaria de apoio dentro do próprio movimento. Queríamos agregar pessoas e artistas que não são apenas atores, mas também estão envolvidos com algum coletivo, que têm uma bagagem. Em boa parte das cenas que eu poderia conversar, contribuir, discutir e talvez acrescentar algo importante, todos estavam sempre muito disponíveis para ouvir. Tudo era possível”.
Nonato/Elis foi incluído na trama após o escopo original de “A Força do Querer” ter sido aprovado. O convite para que Silvero integra-se o elenco da novela das 21h veio quando Glória assistiu a uma apresentação de “Br-Trans” no ano passado e, da mesma forma que outros como Jesuíta Barbosa e Caetano Veloso, se apaixonou pelo espetáculo. E não é para menos: durante sua temporada carioca, que passou pelo Centro Cultural Banco do Brasil, Teatro Poeira e Centro Cultural Laura Alvim, o monólogo dirigido por Jezebel de Carli mostrou que sua linha entre o ficcional, o documental e o musical tinham poder de ampliar a visão do público sobre o universo trans como poucos “produtos de entretenimento” haviam conseguido até então.
“Ele faz parte do coletivo As Travestidas, que eu fundei há 15 anos. Lá temos muita música, dança, teatro e arte sobre o universo TTT – Travestis, Transexuais e Transformistas“, explica Silvero. Nascido em Mombaça, no interior do Ceará, ele mudou-se ainda adolescente para Fortaleza, onde começou a perseguir o sonho de se tornar ator. Após alguns anos na ribalta, veio a vontade de investigar mais a fundo o universo que ele já abordava há tempos no palco, indo atrás das semelhanças e diferenças desse recorte pelo Brasil.
“Comecei o processo em 2012, para entender esse universo através do Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, fazer uma relação com o que convivi no Ceará. Visitei outras cidades e estados, até que isso se tornou algo mais nacional. Daí, transformei as histórias que ouvi em dramaturgia, mas sem deixar de fazer também uma peça documental, na qual eu conto casos de superação e também de sofrimento”, explica Silvero.
Ao longo dessa viagem, ele foi percebendo convergências e discrepâncias entre os TTT’s brasileiros que permeavam áreas como políticas públicas, apoio legal, representatividade social e os acessos básicos à saúde e à educação. Em resumo, ele também percebeu que os principais fios condutores a unirem todas essas cidades foram o orgulho e, paralelamente, o preconceito. “Existe uma cena artística muito forte, principalmente no transformismo, por todos os lugares que eu fui. Isso gera um mercado de trabalho bem grande e que felizmente tem crescido bastante nos últimos cinco anos. Mas a LGBTfobia geral também é uma semelhança triste”, avalia Silvero.
Para o ator, dar vida a todas essas pessoas reais que existem e resistem no universo TTT tem seus prós e seus contras. “Algumas histórias mostram que é possível alcançar resiliência e mudança, mas existe um sofrimento da minha parte de ver que algumas questões estão estagnadas. Apresentar esse texto quatro vezes por semana é colocar isso em pauta, de maneira muito vertical. [Br-Trans] não é um espetáculo de estereótipos ou algo caricatural. Pretendemos quebrar a marginalidade com que conhecem esse universo”, explica, citando que a mensagem principal do monólogo passa por “igualdade, identidade e a discriminação que qualquer pessoa pode sofrer, como gordofobia, xenofobia, preconceito racial e tudo o que fere pessoas de minorias”.
O pior é o que está debaixo dessa camada, não o que temos mostrado.
Outra faceta do mundo trans que Silvero ajudou a criar veio por meio de Kika, a cantora travesti de “Copa 181”. No longa dirigido por Dannon Lacerda, ele interpreta uma artista que só se sente feliz como tal à noite, quando canta em uma sauna gay de Copacabana. O filme ainda traz performances irresistíveis de Simone Mazzer e Carlos Takeshi, ao mesmo tempo que convida o público a repensar conceitos e limites de felicidade e de indiviudalidade. “O processo antecedeu a novela, então eu nem sabia do personagem de ‘A Força do Querer’ nessa época. Assistindo ao filme hoje, há essa coincidência muito grande. Mas o que me deixou muito feliz como ator é que consigo ver as nuances das duas personagens. A Kika é bem diferente da Elis Miranda na maneira de pensar, de agir e até mesmo de olhar. Isso me abre uma oportunidade imensa”, avalia.
É preciso admirar a coragem de Silvero. Enquanto alguns atores já estabelecidos na TV declaram publicamente que interpretar determinado personagem poderia ferir suas reputações de galãs ou a credibilidade de um futuro papel, ele vai na contramão desse pensamento. Sem medo de se arriscar, quando ele diz que não teme ser taxado como “ator de um tipo só” não é arrogância ou inocência de não entender as possíveis consequências disso. É exatamente a compreensão de que, ao fazer isso, ele está dando voz e visibilidade a nuances do universo trans que raramente são contempladas pelo público.
“Esses papeis têm vindo de maneira orgânica. O que me incomodaria seria não ter a consciência dos desafios que meu ofício exige de mim e que eu estou disposto a encarar”, comenta o ator, acrescentando que ainda terá tempo de mostrar outras facetas do seu trabalho ao público. Por agora, ele ainda reforça que tem outras cartas na manga.
Um dos próximos projetos de Silvero inclui a música, paixão que, de acordo com ele, é algo no qual ele pretende investir ainda mais. “Estou começando a investir em um show sozinho, de canções que atravessam a minha vida e que vamos criar para maio e abril”, adianta. O espetáculo será baseado em “Androginismo”, que ele já apresenta pelo Brasil afora ao lado de Valéria Houston. Fora isso, a peça “Uma flor de dama”, baseada no texto de Caio Fernando Abreu, também voltará ao circuito cearense no Festival das Travestidas, no início de dezembro.
Mesmo assim, Silvero ainda acredita que há mais espaços para ocupar e novas histórias para contar. E, se depender dele, isso acontecerá: “Uma novela não vai resolver o problema do Brasil. É a ponta do iceberg, uma brecha, mas o problema é muito maior. O pior é o que está debaixo dessa camada, não o que temos mostrado. Nossos personagens foram mosaicos de muitas outras pessoas, que tentamos fazer uma síntese. Pelo menos, abrimos a discussão”.