Híbrida
TEATRO

Nany People está em sua melhor fase: “Só paro quando Deus quiser”

Nany People (Foto: Sergio Cyrillo | Divulgação)

Nany People, com mais de 40 dos seus 58 anos dedicados à carreira de atriz, humorista e apresentadora, a essa altura não quer nem precisa mais provar nada a ninguém. Rodando os palcos do Brasil com cinco espetáculos diferentes e contratada como presença fixa de pelo menos três atrações da Rede Globo neste ano, a mineira de Poços de Caldas ocupa um espaço tão cativo no imaginário brasileiro que, se parasse por aqui, já seria descrita como um ícone.

Mas o problema, ou, na verdade, a solução, é que ela não pretende parar tão cedo. “Uma coisa é certa: eu só paro de trabalhar quando Deus quiser, quando eu for acometida por alguma doença e tal. Caso contrário, eu vou de baliza e faço bonito. Bê-u-cê-ê-tê-a, bonita”, solta Nanny, soletrando sentada em seu sofá e tomando um café enquanto conversa por videochamada com a Híbrida.

Na manhã daquela sexta-feira, Nany estava no Rio de Janeiro para apresentar o espetáculo Nany é Pop! no Teatro Raul Cortez, em Duque de Caxias. Como boa veterana do entretenimento, ela explica que tem cinco shows simultaneamente e permanentemente “em cartaz” para poder atender a demanda, disponibilidade e variedade de produtores, palcos, estruturas e públicos diferentes pelo país.

Esses espetáculos são o Nany É Pop!, concebido ainda em 2019, quando ela participava do programa Popstar; o TsuNany, um standup “raiz”; o Sob Medida – Nany Canta Fafá, uma homenagem a Fafá de Belém que intercala covers de seu repertório com anedotas sobre a relação com a amiga e musa; Então… Deu No Que Deu, descrito como um “mix de todos um pouquinho”; e o monólogo Como Salvar Um Casamento, no qual ela assume as vezes de uma coach de relacionamentos.

Cada espetáculo revela uma faceta diferente de sua personalidade e também de seu talento, seja mostrando sua franqueza como poeta, a coragem como comediante ou a paixão antiga pela música, que já nutria muito antes de cantar como caloura do Chacrinha, aos 8 anos. “O canto foi a primeira expressão teatral que eu tive na minha vida.”

Nany People (Foto: Sergio Cyrillo | Divulgação)
Nany People (Foto: Sergio Cyrillo | Divulgação)

Ainda adolescente, Nany começou a carreira cantando em casamentos, ganhando dinheiro suficiente apenas para ajudar nas despesas de casa. Foi por causa do canto, inclusive, que ela foi estudar no Conservatório Musical de Poços de Caldas, que apesar de também ser uma cidade interiorana, já era um salto significativo em relação ao município de aproximadamente 8 mil habitantes onde nasceu.

“Indo para a aula de canto, vi a criançada entrando no prédio anexo. Entrei atrás e vi o palco pela primeira vez. E me encantei, porque eu sabia que ali era o meu lugar”, lembra. “O fato é que, desde 1975, eu nunca mais saí do palco.”

Nany People e o humor

Ainda criança, a pequena Nany People também sonhava em fugir com o circo toda vez que uma nova lona era armada em Serania. Ali no picadeiro e através do rádio, ela começou a ter suas primeiras noções do que era entretenimento, alimentando ao mesmíssimo tempo uma fascinação natural pelos holofotes.

“O humor escolhe a gente, sabe João? É questão de filosofia de vida”, diz, com seriedade atípica para o tema. “Agora, me tornar humorista, uma pessoa engraçada, divertida, acho que tem a ver com meu próprio temperamento e a minha criação. Tive uma mulher muito avante do tempo que me moldou muito a vida toda.”

Eu sempre me acostumei a ser uma estranha no ninho 

Essa mulher era dona Yvone Cunha Gregorio, sua mãe, que desde cedo enxergou o potencial da filha como artista e também seu jeito de ser “diferente” dos outros garotos de sua idade. “As coisas que ela falava, hoje em dia eu vejo que têm mais fundamento ainda. Como quando disse que a vida é uma sequência de quadros e, às vezes, ela te põe uns quadros meio abstratos, às vezes de natureza morta; mas você não pode se levar muito pelo matiz de uma tela, porque senão perde o resto da exposição.”

“A minha condição de ser uma pessoa trans, que na época nem tinha esse nome, era muito latente desde criança. Eu tive que seguir adiante”, diz, lembrando de como os meninos da escola se alinhavam em um corredor polonês para espancá-la no recreio ou como o pai, José Gregório Neto, às vezes não conseguia entender seu jeito “diferenciado”. “Você tem que seguir adiante, não importa o que façam com você.”

O palco

Com sonhos e ambições muito grandes para caberem nos limites de Poços de Caldas, Nany People logo deu um jeito de se mudar para São Paulo. Recém-saída do interior de Minas para tentar a sorte na maior capital do Brasil, a artista ralou trabalhando como garçom, vendedora e bilheteira no Teatro Paiol, mantido por Nicette Bruno e Paulo Goulart, enquanto fazia paralelamente um curso de extensão na Unicamp.

Tudo isso para chegar ao lugar que sempre desejou: o palco. “A gente que é do interior de Minas sabe que a cultura é a última instância que eles percebem, que investem. Não existe teatro, não existe cinema, não existe porcaria nenhuma”, diz. “O pessoal não consome teatro. Falo isso porque sou de lá.”

A minha função nas artes é predestinação

Nos anos e décadas seguintes, Nany People foi cavando seu espaço na TV, enquanto trabalhava paralelamente na noite LGBTQIA+, ainda GLS naquela época. Foi assim, inclusive, que descobriram seu talento e desenvoltura como apresentadora, algo que ainda cativa o público, vide seus trabalhos atuais na Rede Globo.

Hoje, Nany People pode ser vista como jurada do “Caldeirola”, o quadro de calouros do Caldeirão Com Mion que segue a tradição dos concursos de talentos começada por Chacrinha, o qual numa ironia do destino foi o responsável pela primeira apresentação televisionada da artista; como comentarista do MesaCast, o videocast oficial do BBB, o reality show mais assistido no país; e como parte do elenco da 12ª temporada do Vai Que Cola, o humorístico criado por Paulo Gustavo que até hoje continua atraindo uma audiência considerável.

– Você acha que hoje em dia está mais difícil fazer humor? Sim, não, por quê?

– Está mais chato. Tem uma coisa do Freud assim: às vezes, um charuto na boca é só um charuto na boca. Hoje em dia, as pessoas não têm informação, fundamentação, e estão polarizadas. Se você não dá uma opinião de acordo com o que elas querem, o que elas pensam, você é contra elas

– Isso é um problema real dessa geração… Não tem diálogo, eles pegam uma frase e aí correm solto com aquilo

– E se você é contra, não serve pra nada. Sua história de vida é anulada. Você não tem histórico, está ultrapassada. Se a pessoa não tiver uma inteligência emocional muito estruturada (como eu tenho), você dança muito cedo

“Eu tive felicidade. Porque tive o teatro como meu portfólio de voz, o que me deu base para ir pra TV, pra rádio, pro cinema”, lembra, contando que sua versatilidade no palco foi se firmando à medida que migrou da função de apresentadora em boates para casamentos e eventos heterossexuais. “Não tinha como falar (palavrão e baixaria). Eu tinha que fazer piadas engraçadas, com textos pensados. Sei que falo muito, pra caramba, mas assim, esse meu jeito ativo fez com que eu não ficasse presa no universo da noite.”

Dali em diante, Nany começou a despontar pouco a pouco em programas como A Praça É Nossa (SBT), Comando da Madrugada (Band) e Hebe (SBT), o puro suco do que era o humor e a TV do Brasil na virada dos anos 1990 para os 2000. Já consolidada, conseguiu uma vaga na terceira temporada d’A Fazenda (Record) e, mais tarde, como repórter do programa da Xuxa na mesma emissora. Em 2018, entrou para a sua primeira novela, O Sétimo Guardião (Globo).

– Então, o segredo é não parar nem se acomodar?
– O segredo é toda passiva tem que ir aonde o ativo está. E o ativo é o povo e o aqué, querida

Pode parecer pouco para uns, mas para quem sabe e lembra como a TV aberta tratava e mostrava uma mulher trans até a década passada, Nany People representa como poucas um tipo de ascensão rara e, principalmente, longeva demais para uma personalidade LGBTQIA+ na mídia.

“Entrar na TV, ô João, você pode entrar acidentalmente. O negócio é se manter no galope da lacraia”, diz, com ares de quem sabe que conseguiu galopar e se manter na sela com muito custo.

Mesmo que os tempos fossem outros e, diga-se, bem mais difíceis em todos os aspectos para as pessoas LGBTQIA+, Nany afirma que sua identidade de mulher trans não atrapalhou sua vida profissional nem ofuscou seu talento com a sombra do preconceito.

“João, eu cheguei num estágio da minha vida que as pessoas não me reconhecem mais por ser trans. Me reconhecem por ser artista. E isso é uma conquista minha”, afirma, lembrando de um episódio em que Simone Lopes, então diretora do programa da Hebe, disse que Nany People foi unanimidade nas pesquisas de público. “Não tinha o adesivo, a tarja que se usa hoje. Ai, sou ‘G’, sou ‘L’… Essa é uma preocupação muito mais da classe gay acadêmica do que do povo da vida real.”

“Eu sou taxada, inclusive, de ser uma chaveirinha de hétero, de heteronormativa”, comenta Nany, ainda ultrajada, mas igualmente despreocupada com o rótulo. “Então, assim, o que importa é o que você faz da sua vida pessoal e profissional, as suas atitudes. Isso não é filosofia barata, não. É realidade.”

A escolha de Nany People

Perto de alcançar sua 60ª primavera, Nany People sustenta o olhar, a mente e a fala de quem já viu, viveu e venceu monstros e pesadelos muito reais, os quais precisou enfrentar apenas por existir. Isso é algo que dificilmente esta ou as próximas gerações conseguirão entender ou sequer imaginar, muito em partes porque o mundo de hoje, felizmente, já não é mais o mesmo do século passado.

Nesse sentido, o seu maior desafio veio quando, aos 26 anos, ela atendeu à súplica de sua mãe para que não fizesse a cirurgia de readequação de gênero. De novo, algo muito mais difícil e arriscado naqueles tempos.

Eu nunca me enquadrei nos moldes e parâmetros de comportamentos ditos convencionais de um menino cisgênero. Nunca! 

Na verdade, Nany People sempre soube que era diferente, desde que preferia brincar apenas com as meninas e se vestir como elas. Aos 10 anos, esse entendimento de ser “uma criança diferenciada” fez com que aconselhassem sua mãe a levá-la no psiquiatra para um tratamento de “disfunção social” que acabou durando até sua maioridade.

“Eu me sentia uma menina. Olhava pra minha genitália e não me reconhecia. Aos 4 anos, eu saía pelada correndo pelo corredor e gritando ‘Mamãe, eu quero uma pepeca, eu quero uma pepeca'”, conta, meio séria meio rindo. “Aquela música da Bethânia, sabe ‘Eu gosto de ser mulher, sonhar, arder de amor’? Essa música me representa, entendeu?”

Foi após desembarcar “crua, crua, crua, caipira e capião” em São Paulo, muitos e muitos anos depois de ter listado uma pepeca na cartinha de pedidos para o Papai Noel, que Nany People começou a se tratar no Hospital das Clínicas para finalmente realizar um sonho antigo.

“Minha consciência de ser uma pessoa de alma feminina, me sentir a mulher que me sinto, se deu com 25, 26 anos – quando tive a noção, realmente, que eu era uma pessoa trans. Aí, fui atrás de ajuda.”

Um grande amigo meu, Paulo Castro, chegou e disse: ‘Amiga, deixa eu te ensinar uma coisa – você não é gay, você é uma mulher transexual 

Depois de quase três anos desde que tinha começado o tratamento psiquiátrico para realizar a cirurgia, dona Yvone pegou um ônibus de Minas até São Paulo, se ajoelhou diante de Nany e implorou para que a filha não seguisse adiante com o procedimento. Ela atendeu o pedido da mãe e ainda hoje, décadas depois, diz que não se arrepende da escolha.

“Vende-se a ideia de que fazer a cirurgia é a solução dos seus problemas. Não é. Você pode comprar um monte de problemas com isso, inclusive de expectativa do efeito final”, diz Nany. “Vai ter sempre alguém metido a besta que vai apontar o dedo no seu nariz e lembrar da sua real condição. Então, tem que ter muita maturidade, muita cabeça, muita calma”, analisa, antes de completar: “Mas eu não gosto de tocar nesse assunto”.

As seis décadas de idade que estão espreitando ali na esquina do ano que vem não assustam Nany People. Na verdade, é algo que ela celebra, contando inclusive como os seus 50 têm sido gratificantes até aqui. Em muitos sentidos, mas principalmente na carreira profissional, é agora que ela tem colhido os frutos merecidos que plantou ao longo de todo esse tempo.

“Aos 50 anos, muita gente está entregando os pontos. Eu entrei na Globo com 54. Fiz duas turnês na Europa com 56 e 58, lotando teatros!”, aponta, orgulhosa das conquistas relativamente recentes. “Então assim, as coisas da vida acontecem. Isso de estar fora da média esperada, eu me acostumei muito cedo, João.”

 Como diz a Fafá de Belém, uma das minhas musas: as pessoas insistem em colocar a gente em caixinhas. ‘Ah, você agora é L’. Eu acho que o meu T é de tiranossauro, se você quer saber

Como declarado desde o início dessa entrevista, Nany People não tem a menor vontade, previsão ou intenção de abandonar o calor dos holofotes que conquistou. Mas, ao mesmo tempo, o ícone não guarda mais nenhum objetivo concreto que queira alcançar no horizonte, exceto o desejo de manter vivo seu legado e, claro, continuar sonhando acordada em algum palco.

“Sabe uma coisa que eu aprendi, João? Eu não faço mais sonhos a longo prazo”, confessa, convicta. “Eu vou levando e cada coisa é cada coisa. E tem coisas que eu penso. Por exemplo, o MesaCast BBB, eu demorei um mês e meio pra decidir se faria ou não. Porque eu sabia que iria mexer com um tipo de público muito pouco pensante”, observa Nany, exemplificando as inúmeras críticas que recebeu nas redes sociais por fazer seu trabalho e comentar o programa enquanto entrevista convidados.

“O mundo tá com o intelecto muito baixo”, solta Nany People, como se estivesse contando uma piada, mas deixando a cara séria transparecer um pouco de decepção, incredulidade e conformidade. Ao mesmo tempo, ela lembra rapidamente seus traumas pessoais. “Eu perdi quatro amigos recentemente… Foram dar uma espreguiçada e caíram pra trás. Quando uma coisa dessas acontece com seus entes próximos, a tua história vai ficando um pouco apagada.

Uma coisa que eu peço a Deus é: discernimento, saúde e, sobretudo, sobriedade emocional. O tempo todo”, confessa, já sentada de volta no sofá onde estava quando a entrevista começou. “Eu adoro o que eu faço, João”, declara, sem nenhuma vergonha, hesitação ou margem para interpretações. “Amo o que eu faço. Adoro o meu trabalho, meu ofício. Dediquei minha vida a isso.”

Com o mesmo ímpeto e bravura que catapultou seu salto do interior de Minas para os palcos do Brasil e do mundo, Nany People tira a franja do rosto, ergue o queixo e diz sem medo: “É muito bom quando o tempo passa e você leva umas cacetadas no lombo. Você aprende a engrossar o couro”, ensina, com a experiência de quem já teve o couro curtido em pimenta e não só sobreviveu, mas prosperou pra contar a história e passar adiante o truque. “Na vida, você só aprende na derrota. Só aprende quando tropeça, cai e levanta de novo. Aí você aprende que você nunca é, você está.”


Confira aqui a agenda de Nany People.

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