Enquanto o resto do mundo procurava formas dignas e apropriadas de celebrar as figuras femininas neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira (PL/MG) achou de bom tom atacar a população travesti e transexual durante um discurso na Câmara. Munido com a peruca mais barata que encontrou, ele disse que, hoje, “se sente mulher”, responde pelo nome “Nikole” e teria “local de fala” para ser ouvido na data.
“As mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres. Para vocês terem ideia do perigo que é isso, eles estão querendo colocar a imposição de uma realidade que não é a realidade”, disse Nikolas, seguindo uma linha de raciocínio tão incoerente que faria inveja a J. K. Rowling. O deputado justificou a transfobia alarmista como uma forma de defender “um pai não querer que um marmanjo de dois metros de altura entre no banheiro da filha sem ser considerado um transfóbico”.
A transfobia ultrapassa a liberdade de discurso garantida pela imunidade parlamentar. Afinal, transfobia é crime. Eu, ao lado da bancada do @psbnacamara, estou entrando com um pedido de CASSAÇÃO do mandato do deputado Nikolas Ferreira! pic.twitter.com/p86TeBoI3Z
— Tabata Amaral (@tabataamaralsp) March 8, 2023
Logo após a sessão, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP) disse que o partido vai apresentar uma com uma notícia-crime ao STF pela transfobia praticada por Nikolas. Tabata Amaral (PSB/SP) afirmou ainda que vai pedir ao Conselho de Ética da Câmara a cassação do mandato do parlamentar. Na mesma tarde, o Ministério Público Federal pediu que a Casa também apurasse a conduta do bolsonarista por “suposta violação de ética”.
A fala de Nikolas Ferreira foi um desrespeito à população trans, cuja expectativa de vida segundo dados do IBGE é de apenas 35 anos (metade da média nacional), mas teve requintes especiais de crueldade com as deputadas Erika Hilton (PSOL/SP) e Duda Salabert (PDT/MG), primeiras parlamentares trans eleitas para o Congresso e vítimas constantes de ameaças de morte e violência política.
Meu processo contra Nikolas Ferreira o impediu de andar armado.
Meu outro processo criminal contra Nikolas Ferreira pode levá-lo à cadeia por transfobia.
Agora entrei com uma representação para que Nikolas Ferreira seja punido por quebra de decorro parlamentar 🏳️⚧️😘 pic.twitter.com/bsZjLFdvvX
— Duda Salabert (@DudaSalabert) March 8, 2023
Poucos momentos antes e depois, Erika e Duda subiram à mesma tribuna para discursar, mantendo o decoro que se espera de parlamentares e sublinhando a importância de a Casa do Povo refletir as nuances dos brasileiros e das brasileiras. Duda, por sua vez, já havia apresentado dois anos atrás uma queixa-crime contra o deputado quando este a chamou de “ele”. Em fevereiro, o TJMG acolheu a denúncia e transformou Nikolas em réu por conduta transfóbica, racismo e injúria racial. Ela disse que agora vai entrar também com uma representação contra o deputado, por quebra de decoro parlamentar.
Além de ofensivo e ignorante em todos os níveis, o discurso do deputado é também perigoso e capaz de impulsionar crimes de ódio contra a população LGBTQIA+ do Brasil. A afirmação não é exagero e basta olhar para o que está acontecendo neste exato momento pelos Estados Unidos, onde há uma onda crescente de projetos de lei sendo aprovados contra a comunidade, graças aos estados onde o parlamento tem maioria conservadora.
Apenas as proibições de drag queens se apresentarem, de pessoas trans serem incluídas nos esportes e de a diversidade de gênero e de orientação ser debatida nas escolas já é grave. Mas esse pânico alarmista tem contribuído para o aumento dos assassinatos de pessoas LGBTQIA+ nos EUA, onde ainda em dezembro um atirador terrorista invadiu uma boate do Colorado voltada à comunidade e disparou a esmo, matando ao menos cinco pessoas e ferindo outras 18.
Mulheres trans não se identificam como tais apenas porque decidiram colocar uma peruca, ainda que a passabilidade desempenhe um papel importante em suas autoestimas. O que a ciência mostra, na verdade, é que os primeiros sinais aparecem ainda na infância e, como mostrou um estudo publicado na revista Pediatrics, dificilmente essas pessoas (aproximadamente 6%) se arrependem da decisão e tentam revertê-la quando enconteam um ambiente acolhedor.
Não faz tanto tempo, mas a sociedade já evoluiu a ponto de entender que práticas como o blackface e outras formas no mínimo ultrapassadas de se referir às pessoas pretas não são apenas ofensas e piadas, mas configuram crimes de injúria racial. Já passou da hora de o mesmo respeito ser deferido à população transgênera, que merece dignidade social para não ser reduzida a uma peruca, principalmente em um local público e por uma pessoa cuja função é defender a cidadania.
Os instrumentos legais para o início dessa virada de chave já existem. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu finalmente que a discriminação com base em identidade de gênero e orientação sexual equivale ao racismo e deve ser tratado como tal. Ainda em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou a decisão e decretou que crimes desse tipo são inafiançáveis, imprescritíveis e podem resultar em uma pena de 2 a 5 anos de reclusão.
“Qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos”, diz a lei sancionada. Resta ver se ela valerá para todos.