É praticamente impossível resumir em apenas dez pontos o que aconteceu ao longo de 365 dias, mas ainda assim resolvemos fazer uma recapitulação dos principais fatos e pessoas que marcaram a comunidade LGBTQIA+ em 2023. Na lista abaixo, confira os momentos que não se encaixam exatamente nas retrospectivas específicas de séries, filmes, novelas, músicas e beijos ou simplesmente causaram tanto impacto que extrapolam seus respectivos nichos.
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A morte de Gal Costa (e os horrores da viúva)
Foi em novembro de 2022 que Gal Costa nos deixou de surpresa, então aos 77 anos, mantendo sua carreira a todo vapor com shows ainda marcados pela frente. O baque da morte foi difícil de aguentar por si só, mas o que se seguiu foi ainda mais aterrorizante. Em uma matéria extensa publicada na revista Piauí, o repórter Thallys Braga contou em detalhes os últimos dias de vida da artista e alguns dos momentos difíceis que ela passou ao longo do relacionamento com a companheira Wilma Petrillo.
Intitulada “A viúva de Gal Costa”, a reportagem conta episódios de homofobia, perseguição, golpes financeiros, abuso psicológico e verbal que Wilma teria praticado com a cantora e com pessoas do seu entorno. Os episódios são contados pelos amigos, colaboradores e admiradores próximos da artista, em depoimentos exclusivos e chocantes ao repórter.
As semanas que se seguiram à publicação foram de choque coletivo pelo que Gal teria aguentado e provocaram fortes reações do público. A reportagem completa está aqui.
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As falcatruas de George Santos
Eleito por Nova York como o primeiro congressista abertamente gay e conservador dos Estados Unidos, o republicano George Santos, filho de brasileiros e conhecido por aqui como a drag queen Kitara Ravache, passou o ano rendendo memes e fazendo ainda mais história, mesmo que à sua própria revelia. Nos primeiros meses de seu mandato, Santos foi desmascarado por uma série de mentiras contadas em sua campanha, da origem de seus pais ao seu currículo (lembre as principais aqui).
Uma investigação conduzida pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou George Santos de ter praticado 23 crimes, entre eles ter desviado dinheiro da campanha para pagar aplicações de botox, assinaturas do OnlyFans, apostas em cassinos e estadias em SPAs. Não demorou muito e, em 1º de dezembro, ele se tornou o 6º deputado cassado na história do país – e, mesmo que seja difícil admitir, um vilão que amamos odiar.
“Por que eu iria querer ficar aqui? Para o inferno com esse lugar!”, disse no dia de sua expulsão, vestindo o personagem surreal que manteve desde o início da sua vida pública. A recente entrevista ao programa de Ziwe Fumudoh também reúne uma coleção de novas pérolas, uma mais absurda que a anterior.
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Finalmente, a biografia de Britney Spears
Mantida por 13 anos sob o controle de uma curatela que controlava desde o que ela podia fazer com seu dinheiro e carreira até com quem se relacionava e que coreografias fazia no palco, a lendária senhorita Britney Spears finalmente contou sua versão da própria história em A Mulher em Mim (Editora Buzz). Na autobiografia, a Princesa do Pop não poupou nada nem ninguém e revelou os bastidores de seus relacionamentos românticos (como o aborto até então secreto que fez com Justin Timberalake), os maltratos sofridos nas mãos de sua família, a perseguição dos paparazzi, seu amor pelo Blackout e a conexão especial que sente com o Brasil e com seus fãs LGBT+.
“Para mim, é tudo sobre amor — amor incondicional. Meus amigos gays sempre me protegeram, talvez porque soubessem que eu era inocente”, escreve Britney, afirmando que tem “uma relação especial com a comunidade LGBTQIA+”. “Não é tolice, é muito gentil. E acho que muitos dos gays ao meu redor me apoiaram. Eu podia até sentir isso no palco quando eles estavam ao meu lado.”
O livro alcançou rapidamente o posto de best-seller na concorrida lista do The New York Times, ajudou o público geral a ter ao menos um resquício de compaixão por Britney, movimentou memes e emocionou fãs, mas acima disso tudo, finalmente nos mostrou que a Princesa do Pop é uma mulher adulta, lúcida e genial, capaz de finalmente tomar as rédeas da própria vida, nos seus termos. Leia aqui nossa matéria especial sobre a relação de Britney Spears e a comunidade LGBTQIA+.
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Tentativa de proibição do casamento homoafetivo
Parece inacreditável, mas 12 anos depois de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido o casamento homoafetivo como legítimo perante a Justiça brasileira, a Câmara dos Deputados resolveu desenterrar o PL 580/2007 para deturpá-lo e, com isso, tentar reverter um direito já adquirido. Com a tentativa de acrescentar ao Código Civil um artigo que reconhece o casamento apenas como “a união entre homem e mulher”, parlamentares da Bancada Evangélica deram um show de retrocesso, improdutividade e pânico moral a troco de palco e discursos eleitoreiros.
Não bastasse o atraso que a discussão gera para a pauta LGBTQIA+ a essa altura do campeonato, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) fez questão de decepcionar ainda mais os contribuintes ao permitir episódios recorrentes e repetidos de falas e atos homotransfóbicos, principalmente contra a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), presença cativa nas sessões.
Como nos disse a secretária nacional Symmy Larrat, é bastante improvável que o PL 580/2007 avance e seja transformado em lei. E, se formos olhar para o copo meio cheio, pelo menos as sessões tenebrosas nos renderam discursos, memes e ainda mais orgulho da oratória e lucidez de Erika, que soube como poucas manter a compostura ao reforçar que jamais tolerará os absurdos proferidos na Casa.
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Boicotes da Globo
O ano teve mais uma leva de produções audiovisuais cantadas na representatividade de personagens e narrativas LGBTQIA+, dos filmes às séries e novelas. Mas apesar de também ter entrado nessa tendência, a Rede Globo fez o público passar raiva ao adiar e/ou censurar cenas de alguns dos casais homoafetivos mais queridos e acompanhados do seu horário nobre.
O primeiro caso surgiu ainda como o casal Clara e Elena ou “Clarena”, como shipparam os fãs das personagens de Regiane Alves e Priscila Sztejnman em Vai na Fé, novela das sete. A cena de um beijo entre elas foi cortada em cima da hora, gerando indignação nas redes sociais e nas próprias atrizes, que acabaram se manifestando. “Devagar e sempre… um passo de cada vez para a construção de um futuro onde todas as formas de amor possam ser aceitas e celebradas”, escreveu Alves.
Poucos meses depois, foi a vez Mara e Menah, casal interpretado respectivamente por Renata Gaspar e Camilla Damião em Terra e Paixão, na faixa das nove, sofrer um destino ainda mais cruel. “Amores, Mara e Menah não terão mais trama na novela. Acho que quando tudo acabar falaremos mais do que passamos. Mas é isso, viramos as tias, que ficam de fundo na festa e ninguém pergunta sobre sua história pois não querem saber. ‘É aquela tia que vive com a amiga dela'”, revelou Renata.
Na mesma trama, o beijo entre Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo), o casal mais shippado do ano na TV aberta, também custou a engatar e ser transmitido. O medo de a emissora perder audiência do público conservador, novamente, segue colocando as histórias LGBTQIA+ eternamente em cima da corda bamba.
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A 1ª temporada de RuPaul’s Drag Race Brasil
Falando em TV, a aguardadíssima estreia de um Drag Race para chamar de nosso foi um dos highlights de 2023. Das batalhas de lip sync com hits nacionais aos temas dos bailes e um memorável primeiro Snatch Game, o reality show surpreendeu e conquistou o público semana após semana.
Um dos destaques foi o comando de Grag Queen à frente da atração, mostrando empatia, carisma, conhecimento de causa e pulso firme sempre que necessário. Os jurados fixos e convidados, apesar de por oras não terem empolgado tanto, também tiveram um saldo positivo na balança final do público.
O principal problema foi, por sinal, o próprio público do Drag Race Brasil, que apesar de ser notoriamente “exigente”, acabou pesando a mão nos ataques às participantes. Que isso melhore numa possível segunda temporada, a qual esperamos que se concretize. Até lá, leia as nossas críticas de cada episódio aqui.
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Um aceno significativo da Igreja Católica
Desde que assumiu seu papado em 2013, o argentino Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco) tem dado sinais desencontrados à comunidade LGBTQIA+, ora de aceitação, ora de condenação. O morde e assopra continuou ao longo de 2023, mas nos últimos dias do ano uma declaração significativa finalmente chegou.
Em um documento oficial emitido pelo Vaticano em 18 de dezembro, o Papa Francisco resolveu dar um aceno definitivo de aceitação da comunidade LGBTQIA+ e autorizar a bênção a casais homoafetivos antes de encerrar sua primeira década como pontífice. De acordo com o texto, que reverteu uma decisão de 2021, as bênçãos não devem fazer parte de rituais ou liturgias regulares, nem legitimam situações irregulares. Elas também não devem ser conferidas ao mesmo tempo em que uma união civil e os padres não são obrigados a abençoar os casais homoafetivos, tendo poder para se recusarem a praticar a nova medida.
Apesar de manter a natureza contraditória, o documento foi recebido como um avanço positivo entre pessoas LGBTQIA+ e da ala progressista da Igreja Católica. Aqui, relembre outros acenos do Papa Francisco à comunidade.
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Renaissance e Celebration
Ainda que os brasileiros tenham permanecido no limbo das turnês “mundiais” de Madonna e Beyoncé, nenhuma delas conseguiu se livrar do verde e amarelo enquanto apresentavam os shows da Celebration e da Renaissance no além-mar. Se a Rainha do Pop foi recebida com gritos de “gostosa” na Europa, Queen B foi forçada a encarar a bandeira do Brasil onde quer que passasse.
Deixando de lado a falta de anúncios oficiais com datas por aqui (o que seguimos aguardando, com uma mão na consciência e outra no bolso), foi lindo de ver duas das maiores artistas do mundo mergulhando sem medo na cultura queer em turnês que reverenciam a história LGBTQIA+, cada uma à sua maneira.
Enquanto Beyoncé promoveu um baile de voguing intergalático e futurista, Madonna reforçou pela enésima vez seu histórico na luta contra o estigma do HIV/Aids. Conheça aqui algumas das referências usadas pela primeira e relembre aqui os momentos mais marcantes na turnê da segunda.
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Liniker imortal
Nenhuma artista brasileira teve um 2023 tão marcante quanto Liniker. Depois de ter sido a primeira mulher trans/travesti a vencer um Grammy Latino, ela conseguiu aos 28 anos se tornar também pioneira ao ser eleita imortal pela Academia Brasileira de Cultura (ABC).
“Esse fato é histórico, mas não pode ser passado. Esse fato precisa ser atualizado constantemente. Que a cada empossamento, a cada nova pessoa imortal, a cada acadêmico que entre, também sejam pesadas pessoas pretas, pessoas LGBTQIA+ do Brasil, pessoas que, sim, movimentam a cultura, renda, intelectualidade, afeto e várias coisas que não são nem ditas porque elas só são sentidas”, disse na cerimônia de posse da ABC.
Relembre abaixo o momento histórico.
IMORTAL 💜 @Liniker se emocionou ao se tornar a 1ª travesti eleita imortal pela Academia Brasileira de Cultura (ABC). Veja o discurso completo e os outros nomes que entraram para a ABC no site.https://t.co/62qUTdV8uZ pic.twitter.com/gJcnerxk4v
— Revista Híbrida 🏳️🌈 (@hibridamagazine) November 15, 2023
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Fogo no armário
A expressão “sair do armário” já caiu em desuso e felizmente se tornou démodé nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o futuro aponta para uma realidade em que o simples ato de “assumir” sua orientação sexual ou identidade de gênero também parecerá sem sentido, uma vez que a nossa percepção sobre essas características tem ocupado um espaço cada vez mais “fluído” e menos definido na binaridade. Ainda assim, nem todo mundo está pronto para chegar lá e o ato de pessoas públicas se declararem como parte da comunidade LGBTQIA+ continua levantando debates importantes e provoca uma representatividade que ainda se faz necessária, principalmente nas esferas política e social.
Dito isso, o que não faltou em 2023 foi uma leva de artistas, celebridades e figuras públicas dos mais diferentes nichos levantando a bandeira do arco-íris. A recente confirmação de Billie Eilish, uma das cantoras mais celebradas desta década, como bissexual; o ativismo de Bella Ramsey como pessoas não-binárie; as declarações mais ou menos esperadas de nomes como Gilberto Gil, Pedro Sampaio e Rodrigo Simas sobre suas experiências, vivências e identidades bissexuais – todos esses momentos mereceram e foram celebrados ao longo do ano.
Aqui, relembre na lista da Híbrida todos os nomes que bombardearam a própria noção de existir um armário e viveram publicamente como pessoas LGBTQIA+ em 2023.