Após 10 dias de uma programação espalhada por 20 locais de exibição, o 19º Festival do Rio chegou ao fim na noite deste domingo, com a entrega do Troféu Redentor no Cine Odeon. A cerimônia de encerramento foi marcada pela vitória do terror “As Boas Maneiras”, co-produção entre Brasil e França que levou os prêmios de Melhor Longa de Ficção, Melhor Atriz Coadjuvante (Marjorie Estiano), Melhor Fotografia (Rui Poças) e o Prêmio Félix (voltado para filmes com temática LGBT+) de Melhor Ficção. “Fazer cinema é um ato político. Espero que nossos governantes entendam isso e também deixem os nossos museus em paz. Não aceitaremos censura. Nunca mais!”, disse no palco a produtora Sara Silveira.
Sara foi uma das personalidades mais marcantes ao longo da premiação. Além de ter recebido os prêmios por “As Boas Maneiras”, a produtora também levou para casa o Troféu Redentor de Melhor Curta-Metragem por “Borá”, o qual já tem planos de transformar em um longa. E se a palavra de ordem por toda a edição foi “Censura Nunca Mais”, o bordão da noite foi um oferecimento de Sara, que ao receber sua primeira vitória com o Prêmio Félix fez questão de agradecer: “Viva o corpo da sapatona machona que o capitalista não compra! Viva o protagonismo das mulheres, a exposição das lésbicas e a excelência técnica do cinema de gênero brasileiro! Viva a sapataria brasileira!”, referindo-se à relação homoafetiva que o filme trazia nas personagens de Marjorie Estiano e Isabél Zuaa.
“A comunidade LGBT+ é grande e tem que se unir para lutar. Nós precisamos conseguir fazer o cinema, principalmente nós mulheres”, disse em entrevista à Híbrida, completando: “As mulheres estão tendo um destaque feminino no audiovisual brasileiro, mas ainda temos muitas outras inclusões a fazer, especialmente em relação a diretoras e diretores negros. O importante é que todos estejam inclusos. Portanto, repito, viva a sapataria Brasil!”.
Quem também saiu premiado com o Prêmio Félix foi o norte-americano Yony Leyser, que venceu em melhor documentário por “Queercore: How to punk a revolution”, no qual aborda o movimento pós-punk que marcou a década de 1980. “Esse é um momento muito especial para o Brasil. Eu pude ouvir sobre o que aconteceu com a exposição ‘Queermuseu’ e ver como é importante o trabalho que a comunidade queer está fazendo aqui. Espero também que as pessoas entendam que ser gay não é uma doença e que os brasileiros possam ser protegidos contra isso”, disse em seu discurso, fazendo referência ao recente episódio de censura sofrido em Porto Alegre e à proposta da cura gay autorizada por um juiz de Brasília no último mês.
Após a premiação, o diretor conversou com a Híbrida sobre o protagonismo que a comunidade queer vivenciou naquela época e o que o atraiu ao projeto. “Achei legal quando os queers eram rebeldes e o movimento não era apenas sobre moda ou sobre tentar se encaixar, de alguma maneira. Pensei que essa revolta deveria ser mais investigada e celebrada, especialmente em tempos como esse”. Para ele, é possível traçar paraelos entre as mudanças conquistadas há 30 anos e a resistência latente no país atual. “Veja o que está acontecendo no Brasil: a comunidade tem arrasado por aqui e sendo muito importante para o movimento geral contra a censura. O queer brasileiro tem se tornado mais político, porque precisa ser. Sei que conheci pessoas maravilhosas por aqui”, disse sorrindo, antes de admitir que sempre prefere os movimentos sociais de caráter “mais rebelde”.
A visibilidade LGBT+ e as narrativas femininas, em especial, também tiveram espaço na premiação para além do Félix, que ainda laureou “Sandra chamando” (de João Cândido Zacharias) como Melhor Documentário. Na categoria geral, “Vaca Profana” (René Guerra) levou os troféus de Melhor Curta por voto popular e a menção honrosa para a atriz Roberta Gretchen. Na história, ela vive uma travesti hostilizada pelo sonho de se tornar mãe. “É sobre isso que a gente quer falar!”, bravou a produtora Juliana Vicente no palco.
Outros destaques da noite que merecem um olhar mais apurado por não retratarem a feminilidade como uma caixinha pré-estabelecida e estereotipada são “Praça Paris”, premiado com Melhor Atriz para Grace Passô e Melhor Direção de Ficção para Lúcia Murat; e “Slam: Voz de Levante”, vencedor do Prêmio Especial do Júri e de Melhor Direção de Documentário para a dupla formada por Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann, que comenta sobre o aumento recente da representação feminina no audiovisual. “Como em todas as áreas da cultura, tem andado e melhorado aos poucos. Na própria história desse filme, quando começamos a grava-lo, quase não havia minas poetas e, hoje em dia, já existe um levante pelo Brasil inteiro. Acabou que o resultado foi um filme com a voz feminina e negra muito fortes, principalmente pela existência do ‘Slam das Minas’ em vários estados. Só no Rio, já foram mais de 400 mulheres na primeira edição”, comemora.
Representando também a excelência feminina por trás das câmeras, Carolina Jabor foi outro nome vitorioso nessa edição do Festival. A diretora, que já havia rendido o emocionante “Boa Sorte” (2014), voltou para casa com os troféus de Melhor Ficção (Voto Popular), Melhor Ator (Daniel de Oliveira), Melhor Ator Coadjuvante (Marco Ricca) e Melhor Roteiro (Lucas Paraízo) por “Aos Seus Olhos”. No longa, ela aborda o linchamento virtual após um professor de natação (vivido por Daniel) ser acusado de pedofilia na escola onde trabalha. “É uma infeliz ou feliz coincidência. Esse tema já estava gritando para ser debatido. A condenação sem um julgamento prévio é algo que já existia antes das redes sociais e, agora, tomou uma proporção muito grande. As pessoas têm suas vidas destruídas com muita facilidade. Acho que precisamos ter mais calma antes de postar algo e incriminar alguém sem provas. É importante lidarmos com isso, mas também precisamos ter cautela”, avaliou.
Por mais que o horizonte apresentado no Festival do Rio aponte para um futuro promissor na simetria quantitativa entre produções femininas e masculinas no audiovisual brasileiro, uma pesquisa divulgada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da UERJ mostra que é preciso ter calma antes de comemorar. De acordo com o boletim, apenas 27% dos filmes apresentados este ano foram dirigidos por mulheres, ao mesmo tempo que 88% dos mesmos foram feitos por diretores brancos. A boa notícia é que esses contrastes têm diminuído ao longo dos últimos três anos (quando foi lançado o primeiro levantamento) e a projeção, apesar de lenta, é positiva.
Já o Festival, desde quando sua cerimônia de abertura na Cinelândia foi interrompida por manifestantes contra a censura, apoiados imediatamente por nomes como Debora Bloch, Mariana Ximenes e Betty Faria, já prometia ter um ano marcado pela resistência cultural do cinema. A falta de colaboração da Prefeitura do Rio e de Marcelo Crivella – pela primeira vez na história do evento – também se mostrou um desafio superado na raça e na colaboração da classe artística, que tem sentido na pele mais do que nunca a urgência de se posicionar publicamente contra as arbitrariedades do governo. Pelo menos enquanto ainda houver tempo.
Confira abaixo a lista completa de vencedores:
Première Brasil – ficção e documentário / longa e curta
JÚRI
presidido por Antônio Saura e composto por Caio Gullane, Heloísa Passos, Leandra Leal e Paz Encina
MELHOR LONGA-METRAGEM DE FICÇÃO – “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas, Marco Dutra. produzido por Sara Silveira, Maria Ionescu, Clément Duboin e Frédéric Corvez
MELHOR LONGA-METRAGEM DE DOC – “Piripkura”, de Mariana Oliva, Renata Terra, Bruno Jorge. produzido por Mariana Oliva
MELHOR CURTA-METRAGEM – “Borá”, de Angelo Defanti. produzido por Sara Silveira, Bárbara Defanti e Cristina Alves
Menção Honrosa curta-metragem – Roberta Gretchen Coppola, por “Vaca Profana”
MELHOR DIREÇÃO DE FICÇÃO – Lúcia Murat, por “Praça Paris”
MELHOR DIREÇÃO DE DOC – Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’Alva, por “Slam: Voz de Levante”
MELHOR ATRIZ – Grace Passô, por “Praça Paris”
MELHOR ATOR – Daniel de Oliveira, por “Aos Teus Olhos” e Murilo Benício por “O Animal Cordial”
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE – Marjorie Estiano, por “As Boas Maneiras”
MELHOR ATOR COADJUVANTE – Marco Rica, por “Aos Teus Olhos”
MELHOR FOTOGRAFIA – Rui Poças, por “As Boas Maneiras”
MELHOR MONTAGEM – Caroline Leone, por “Alguma Coisa Assim”
MELHOR ROTEIRO – Lucas Paraizo, por “Aos Teus Olhos”
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI – “Slam: Voz de Levante”
NOVOS RUMOS
Júri composto por Allan Ribeiro, Bruna Linzmeyer e Bruno Safadi
MELHOR FILME – “A parte do mundo que me pertence” de Marcos Pimentel. produzido por Luana Melgaço
MELHOR CURTA – “Atrito”, de Diego Lima
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI – “Vende-se Esta Moto”, de Marcus Faustini
VOTO POPULAR:
MELHOR LONGA FICÇÃO: “Aos Teus Olhos”, de Carolina Jabor. produzido por Carolina Jabor e Leonardo Monteiro de Barros
MELHOR LONGA DOCUMENTÁRIO: “Dedo na Ferida”, de Silvio Tendler. Produzido por SILVIO TENDLER
MELHOR CURTA: “Vaca Profana”, de René Guerra. produzido por Juliana Vicente
PRÊMIO DA CRÍTICA FIPRESCI
Júri composto por – Ana Rodrigues, Chico Fireman, Francisco Russo
“As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra
PRÊMIO FELIX
Júri composto por – Eduardo Graça, Isabel Penoni, João do Corujão
Melhor Longa Ficção: “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra. , produzido por Sara Silveira, Maria Ionescu, Clément Duboin e Frédéric Corvez
Melhor Longa Doc: “Queercore: How to Punk a Revolution”, de Yony Leyser. produzido por Thomas Janze
Melhor Curta: “Sandra Chamando”, de João Cândido Zacharias. produzido por Tatiana Leite
Premiação MOSTRA GERAÇÃO
Júri composto pela Professora Simone Monteiro, pela mestre em educação e gerente de cultura do departamento nacional do SESC, Maria Costa Rodrigues e pelo produtor e cineasta Cavi Borges:
O Júri destacou duas menções honrosas:
“Historietas assombradas”, o filme, de Vitor-Hugo Borges
“Altas expectativas”, de Pedro Antonio Paes e Álvaro Campos
Prêmio de melhor Filme da Mostra Geração
“Sobre Rodas”, de Mauro D’Addio. produzido por Beatriz Carvalho