A Advocacia Geral da União (AGU) entrou com um pedido na última terça-feira (13) para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheça “excludentes de ilicitude” na decisão de junho do ano passado, que equiparou a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ao racismo. No documento, o órgão pede que a Suprema Corte defina parâmetros para definir quando a “liberdade religiosa”, a “liberdade de discurso” e o “controle de acesso” a espaços podem ser definidos como “preconceituosos”.
“Assim como a reflexão relativa a hábitos da sexualidade predominante deve ser garantida, também é necessário assegurar liberdade para a consideração de morais sexuais alternativas, sem receio de que tais manifestações sejam entendidas como incitação à discriminação”, escreveu o advogado geral da União, José Levi.
Na prática, o documento defende que quem discriminar pessoas LGBTQ+ em espaços públicos, em templos e discursos “religiosos, midiáticos, acadêmicos ou profissionais” não pode ser processado por isso. “A proteção dos cidadãos identificados com o grupo LGBTI+ não pode criminalizar a divulgação – seja em meios acadêmicos, midiáticos ou profissionais – de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade”, defende a AGU, afirmando que é possível avaliar a “moralidade sexual nos diferentes ambientes de expressão intelectual”.
O texto cita ainda o do relator do caso, o decano Celso de Mello, que já havia previsto a garantia da liberdade religiosa, desde que ela não incitasse à discriminação. “É assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, (…) independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”
Outro ponto frisado pela AGU é a possibilidade da proibição do acesso de “pessoas do grupo LGBTI+” a espaços como banheiros, vestiários, vagões de transporte público e até estabelecimentos de cumprimento de pena, como prisões. A justificativa seria a de que esses ambiente têm “acesso controlado a partir do critério fisio-biológico de gênero” e o suposto objetivo do pedido é “resguardar a intimidade de frequentadores considerados vulneráveis”.
Se o caso não for redistribuído, a decisão de acatar ou não o pedido será feita pelo sucessor de Celso de Mello, o ministro Kassio Nunes Marques, recém-apontado por Jair Bolsonaro para ocupar a cadeira do decano na Suprema Corte. Se o responsável decidir proceder com os embargos, o documento será avaliado em plenário por todos os outros ministros. Vale lembrar que, no ano passado, oito ministros votaram a favor de equiparar a LGBTfobia ao crime de racismo. Foram eles Cármen Lúcia, Luis Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes e o relator do caso.
Comunidade LGBTQ+ contra-ataca
Doutor em Direito Constitucional e um dos advogados responsáveis pela ação que criminalizou a LGBTfobia no STF, Paulo Iotti protocolou nesta quinta-feira (15) uma resposta aos embargos da AGU. “Fiquei a noite inteira acordado para escrever as 49 páginas da peça, porque entendo que nossa resposta tinha que ser imediata”, conta. “Explico que a decisão não tem nenhum vício que justifica embargos de declaração (que só cabem por ‘omissão, contradição, obscuridade ou erro material’), explicando a ausência de ‘contradição’ pela decisão. Explico, ainda, que é simplesmente absurdo e indefensável a existência de um ‘direito a discriminar por crença religiosa’ (sic), que é o que, na prática, a AGU pleiteia.”
Um dos pontos refutados por Iotti é a citação que a AGU faz de um caso julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no qual eles admitiram que um confeiteiro não vendesse bolos com temática de arco-íris para pessoas LGBTQI. “A decisão valeu só para aquele caso e não é generalizável (o que a AGU convenientemente deixou de citar). No Brasil, nosso Código de Defesa do Consumidor e nosso princípio constitucional da não-discriminação obviamente não permitem isso”, afirma, acrescentando que ainda citou outra decisão da Suprema Corte norte-americana que, em 2020, declarou a inconstitucionalidade da demissão de pessoas LGBTI+ por homotransfobia.
Para Iotti, não é coincidência que a AGU tenha entrado com esse pedido logo após o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, ter sido processado por crime homotransfóbico após ter declarado, em entrevista ao Estadão, que “famílias desajustadas” são culpadas pelos filhos gays. “É muito evidente que querem discriminar pessoas trans, e LGBTI+ em geral, em banheiros e ambientes diversos, até vagões de transportes! Deplorável absurdo, pois querem um pseudo ‘direito’ de segregar por uma alegação vazia e não-fundamentada de ‘liberdade religiosa’. Isso certamente é inadmissível à luz do direito fundamental à não-discriminação”, comenta.
Coordenador da comissão de direitos humanos do Sindicato de Advogados do Estado de São Paulo (Sasp), o advogado Pedro Martinez também afirma que o pedido feito pela AGU é claramente discriminatório. “Não acho que o STF vá recuar para atender qualquer uma dessas reivindicações, inclusive na questão religiosa. Não vão permitir que essa discriminação aconteça travestida de discurso religioso. Acredito que seja só uma pressão do bolsonarismo e do governo, que vai conseguir um novo ministro para as suas causas”, avalia.
Martinez, que teve aulas de Direito Constitucional com José Levi, se disse surpreso com os “pontos discriminatórios” levantados pelo ex-professor e atual advogado-geral da União. “A AGU vem entrando em uma atuação totalmente de acordo com os interesses do governo. O órgão não vem para representar o Estado brasileiro, mas os interesses da administração de Bolsonaro, de forma clara.”
Em sua resposta, Iotti além de refutar o pedido da AGU ainda pediu a condenação do órgão por litigância de má-fé, por flagrante violação do princípio da boa-fé objetiva por seus embargos e o reconhecimento da inépcia profissional de alguns argumentos, “por demonstrarem indesculpável desconhecimento de conceitos basilares do Direito”.