Baseado no livro homônimo de William S. Burroughs, Queer chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (12), depois ter causado furor nos principais festivais de cinema do circuito internacional. Sob a direção de Luca Guadagnino (Rivais, 2024), o filme é estrelado por Daniel Craig como William Lee, um ex-soldado gay cambaleando entre uma paixão obsessiva e seu vício por opioides na Cidade do México dos anos 1950.
O livro foi lançado originalmente em 1985, com base num manuscrito iniciado pelo autor uns 30 anos antes. A história é considerada uma espécie de “semi-autobiografia” em que Lee funciona como o alterego de Burroughs e enfrenta alguns dos dilemas que o autor vivia na realidade.
Para chegar às quase 2h30 de filme, o roteiro de Justin Kuritzkes preenche lacunas deixadas pelo livro e a direção de Guadagnino dá um tom mais lento à história, arrastando o aspecto contemplativo de algumas cenas além do necessário. No geral, o ritmo de Queer é exatamente o oposto do frenesi que dita o passo da última colaboração da dupla, Rivais.
Assim, cai no colo de Daniel Craig a responsabilidade de manter o público atento à tela e interessado na história por tanto tempo. Não à toa, é ele quem concentra todo o reconhecimento do filme nas principais premiações do próximo ano, recebendo indicações de Melhor Ator no Globo de Ouro e no Critics Choice.
Craig acaba conseguindo o feito, ainda que às custas da empatia pelo personagem e guiado pelo olhar homoerótico de Guadagnino, que encontra em Queer um prato cheio para exercitar sua predileção por enquadramentos sugestivos da figura masculina (a obsessão por pernas de fora tá lá, como de costume) e a forma minuciosa com que explora a intimidade entre dois homens.
Apesar de ser considerado menos ousado que o livro que o inspirou, o filme ainda traz sua boa dose de cenas explícitas e nus frontais, dentre as quais está a aguardada sequência protagonizada por Omar Apollo, que vive um garoto de programa. Daniel Craig aproveita esse e outros momentos para despedaçar de vez a imagem que construiu ao longo dos seus muitos anos como James Bond, entregando-se inteiramente ao estado contínuo de tesão e paixão em que o personagem vive.
“Queer”, como o próprio nome já indica, explora o sentido do termo no que se refere à quebra das normas de gênero: gays que são “bichas”, para pegar emprestada a tradução do filme (por oras preguiçosa, diga-se de passagem), e rejeitam a heteronormatividade de alguma forma. Essas figuras são alvo do desprezo de Lee e boa parte dos seus amigos, que encaram os homossexuais afeminados como uma casta inferior à que eles mesmos se enxergam, munidos de relacionamentos falsos com mulheres, músculos e pose de machos.
Isso e o fato de que Lee vive carregando uma pistola na cintura, um cigarro na boca, um copo de cuba libre e uma seringa cheia de opioides tornam difícil sentir compaixão pelos problemas que o próprio personagem causa para si. Mesmo quando ele sai cambaleando à noite pelas ruas do centro, sendo menosprezado por gays mais jovens e vivendo boa parte da história sozinho e solitário.
Isso só começa a mudar quando Lee conhece o irresistível Eugene Allerton (Drew Starkey), um jovem de sexualidade ambígua que se torna o objeto da sua obsessão e a sua única chance aparente de driblar a solidão. É aí que o personagem começa a mostrar realmente a sua vulnerabilidade, imaginando como seria se esse romance fosse correspondido, suplicando a atenção do outro e até se sujeitando a pagar por sua companhia.
A paixão não-correspondida, ou pelo menos a coragem do outro de entregar-se a ela, ilustra um aspecto do comportamento homossexual que permanece verdade ainda hoje, 70 anos depois de a história original ser escrita. A maior parte dos gays que se consideram “discretos, fora do meio, machos e posturados” rejeitam a feminilidade porque não conseguem admitir para si mesmos que, no fim do dia, ela faz parte deles da mesma forma. É quando Eugene rejeita seu amor que Lee se dá conta de que ele também está em uma posição submissa, o que, na sua cabeça, faz parte do desprezível comportamento de “bicha” que tanto critica nos outros.
Há poucos momentos leves e de ternura em Queer. A maioria deles só aparece quando Lee está acompanhado do seu pequeno círculo de amigos gays, especialmente do querido Joe, que é inspirado em Allen Ginsberg e interpretado no tom certo por Jason Schwartzman. Obstinado com o fato de que seus encontros casuais sempre resultam em algum roubo, o personagem alivia a atmosfera pesada da tragédia pessoal de Lee toda vez que aparece em cena.
Queer termina com um soco no estômago, numa cena em que Lee é obrigado a encarar todas as consequências do seu comportamento e que, finalmente, nos faz sentir empatia pelo personagem e seu destino trágico. A forma como Guadagnino se demora nesse momento causa o mesmo efeito dilacerante da sequência final de Me Chame Pelo Seu Nome (2017), funcionando como um espelho do amor não-correspondido que o jovem Elio sentiu, onde o silêncio diz mais do que qualquer monólogo seria capaz de dizer.
Trilha sonora e figurino de Queer são show à parte
O aspecto pop das produções de Luca Guadagnino também toma conta de Queer, como no figurino assinado por Jonathan Anderson, no qual as camisetas de lã de Eugene e o sempre presente terno branco de Lee expandem com maestria a personalidade dos personagens. Os cenários replicando de forma lúdica o México dos anos 1950 dão mais vida e cor ao filme, ainda que essa fantasia muitas vezes pareça artificial demais.
A trilha sonora criada por Trent Reznor e Atticus Ross, responsáveis também pela tensão eletrônica de Rivais, dão o toque final e imprescindível para criar o clima de Queer. As composições originais da dupla evocam a atmosfera sombria e soturna necessária para narrar a solidão e a melancolia das aventuras noturnas de Lee em busca dum amor.
Mas o elemento que chama mais atenção na trilha é a forma anacrônica com que eles decidem incluir na história nomes como Nirvana, Sinéad O’Connor (em um cover da banda), Prince e New Order. O fato de que Burroughs e Kurt Cobain eram amigos na vida real justifica ainda mais essas escolhas e acrescenta um significado extra a essas cenas, com destaque para a sequência em que Lee sai à caça ao som de “Come As You Are”.
Há ainda duas faixas inéditas na trilha sonora. A primeira é de Omar Apollo, na balada “Te Maldigo”, escrita para o filme; e a segunda, com um gostinho especial para os brasileiros, é a interpretação de Caetano Veloso em “Vaster Than Empires”, cuja letra é inspirada em uma passagem escrita pelo próprio Burroughs: “Como pode um homem que enxerga e escuta ser algo além de triste?”.