Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, Chile, 2017) é um filme de Sebastián Lelio que gira em torno de Marina, uma mulher trans, garçonete e cantora, que presencia a morte súbita de seu namorado, 20 anos mais velho, Orlando, causada por um aneurisma. O longa lançou Daniela Vega ao estrelato mundial e ao posto de primeira transexual a apresentar um prêmio no Oscar, onde arrebatou a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro em 2018. Mais ainda, a história explora muito além do gênero de sua protagonista.
O filme começa com uma cena bonita, em que Marina canta e Orlando (Eugenio Francisco Reyes Morandé) a observa, em seguida comemoram seu aniversário em um restaurante. Em um clima festivo, ele a presenteia com uma viagem para Foz de Iguaçu e diz: “É uma das sete maravilhas do mundo”.
Entre conversas, risadas e beijos, é nítido para quem assiste o quanto se gostam e o quanto estão felizes. Nessa mesma noite, durante a madrugada, Orlando passa mal. Marina, apreensiva, o leva para o hospital e ele não resiste. Ela liga para o irmão de Orlando que a orienta a sair de lá sob a justificativa de que ele irá cuidar de tudo. Confusa e triste, Marina sai correndo, porém resolve voltar.
A partir desse momento, Marina começa a enfrentar uma série de situações violentas por parte dos familiares de Orlando e até mesmo da Justiça. Marina é perseguida por uma detetive que desconfia e insinua que ela teria agredido o namorado, uma vez que ele estava machucado pois caiu da escada.
Essa personagem me tocou bastante pela sua sensibilidade, força, inteligência e principalmente pela sua verdade. Há uma enorme dissonância entre Marina e os outros personagens que a atacam. Pensando nisso, antes de prosseguir na descrição do filme, gostaria de apresentar, resumidamente, um conceito de Psicanálise, desenvolvido por Donald Woods Winnicott (1896-1971) e batizado “viver criativo”.
Para Winnicott, a capacidade de existir não é dada ao nascer, é uma conquista que depende de diversos fatores, assim como saúde não é somente a ausência de doenças, mas algo mais complexo e associado à capacidade criativa. O ser humano tem uma tendência inata ao amadurecimento, e se tudo correr bem, vai aos poucos realizando suas potencialidades, afirmava o psiquiatra José Ottoni Outeiral (1948-2013).
![Pôster oficial de "Uma Mulher Fantástica" (Foto: Divulgação)](https://revistahibrida.com.br/content/uploads/2022/04/uma-mulher-fantasticaposter-723x1024.jpg)
O desenvolvimento da criatividade é fundamental nesse processo de constituição de si mesmo. O ser-humano como um sujeito saudável, com um si-mesmo bem integrado que se relaciona com o meio externo de forma própria e não simplesmente respondendo aos estímulos, teve um bom desenvolvimento de sua criatividade ao decorrer do amadurecimento.
A criatividade é, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo.
Não sabemos a história pregressa de Marina, mas podemos perceber claramente sua capacidade criativa e sua riqueza psíquica.
Uma passagem muito ilustrativa disso é sua luta pelo direito de se despedir. Todos tentam impedi-la , não informam o local do funeral e pedem que ela não vá “em respeito aos valores da família”. O irmão de Orlando, que aparentemente se mostra mais sensível à dor de Marina, lhe propõe a oferta de doar uma pequena parte das cinzas do falecido, soando, para mim, como uma tentativa de barganha para que ela não vá ao funeral, nem ao velório. Ela nega a oferta das cinzas-migalhas e repete que seu único desejo é se despedir.
Apesar de tantos empecilhos, Marina consegue ir ao local. Lá, é hostilizada e perseguida pelo filho de Orlando e outros dois homens que, na tentativa de conterem sua força e o poder de suas palavras, a xingam e colocam durex em sua boca. Apesar de tanto sofrimento, sua dor é transformada em ódio, e parece ser uma mola que a impulsiona a lutar com ainda mais vigor. Marina consegue entrar no crematório e finalmente se despede de Orlando. Seu luto agora tem lugar e é simbolizado por suas lágrimas.
!["Uma Mulher Fantástica": não sabemos a história pregressa de Marina, mas podemos perceber claramente sua capacidade criativa e sua riqueza psíquica (Foto: Divulgação)](https://revistahibrida.com.br/content/uploads/2022/04/2500-1024x768.jpg)
Essa não é a única batalha de Marina, que ainda luta incessantemente pela cachorra Diabla, que pertencia a ela e a Orlando. Tentam lhe tirar tudo. Ela é expulsa da casa que vivia com o namorado, não pode ir aos rituais de despedida, tentam incriminá-la e negar quem ela é (se referindo a ela com pronomes masculinos). Reivindicam dinheiro, se sentem incomodados por não entenderem “o que é” Marina e se julgam superiores por serem “normais”.
Segundo Soraia Dias Ciccone, Winnicott acreditava que o viver criativo refere-se àquilo que fazemos e que, ao fazermos, permite nos sentirmos vivos.
É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida.
Diante de tamanha pobreza psíquica desses personagens que antagonizam essa mulher fantástica, fica ainda mais em evidência a capacidade criativa e saudável de Marina. Ela luta pelo que resta de vida e de afeto dessa trama, ou seja, seus sentimentos e sua cachorra.
O filme termina com Marina na companhia de Diabla. Nua, coloca um espelho em seu colo e se vê. Marina se enxerga e sabe que sua existência não se restringe aos seus órgãos genitais. Em seguida, ela se apresenta em um recital, cantando com muita emoção uma música lírica que tanto sonhara.
![Em "Uma Mulher Fantástica", Marina mostra força de lutar e perspicácia ao adotar saídas criativas apesar de todo o vendaval engrossado por golpes baixos e becos sem saída (Foto: Reprodução)](https://revistahibrida.com.br/content/uploads/2022/04/uma-mulher-fantastica-1024x683.jpg)
Diante de tamanha violência é de se esperar que qualquer pessoa, por mais saudável que seja, fique prostrada, o que não significaria necessariamente falta de saúde psíquica. No entanto, encantei-me com Marina, por sua força de lutar e sua perspicácia ao adotar saídas criativas apesar de todo o vendaval engrossado por golpes baixos e becos sem saída. Encantei-me pela inteligência e beleza de suas falas, que infelizmente não se tornam diálogos. São inaudíveis para os outros personagens.
Encantei-me, também, por sua humanidade, sua raiva, como na cena em que sobe no carro e grita, exigindo sua cachorra. Afinal, ela só consegue ser ouvida e atendida falando “a língua deles”.
Segundo Ciccone, ao falar do viver criativo, essa é a cor e o tom que podemos dar às nossas vidas, um colorido que pede que mantenhamos viva a loucura sã da nossa infância: “Experimentar o viver criativo é sempre mais importante do que se sair bem” (Winnicott, 1986).
Uma Mulher Fantástica foi adicionado recentemente ao catálogo brasileiro da Netflix.