Híbrida
MÚSICA

Linn da Quebrada: “Ainda não conquistei a humanização do meu corpo”

Linn da Quebrada: "Ainda não conquistei a humanização do meu corpo" (Foto: Divulgação)

Eu desejo que a gente entenda onde cada uma de nós tem o papel de reiterar as coisas, desviar a norma e fazer com que os problemas mudem de lugar“, afirma Linn da Quebrada, por telefone. Apenas uma semana antes, ela havia liberado o clipe de“Oração”, uma balada vulnerável e emocionante, lançada dois anos após “Pajubá”, seu disco de estreia e cujo processo de filmagem foi uma verdadeira disputa territorial travada pela artista.

A música, ela conta, está pronta há mais de um ano e, após um longo período de pré-produção, foi finalizada na semana em que Linn soube da execução de Matheusa Passarelli, a estudante e artista incinerada na Zona Norte do Rio de Janeiro, em abril do ano passado. “Foi quando tudo fez ainda mais sentido no que diz respeito a ‘não queimar as bruxas, mas amar as bixas e amar as travas também’”, diz, citando o refrão quase mantra de “Oração”.

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Linn frequentemente descreve suas músicas como “arma apontada para a própria cabeça” ou “um feitiço que se vira contra a própria feiticeira”. Com “Oração”, não é diferente. Num Brasil onde a ideologia fundamentalista e conservadora de algumas correntes cristãs tem se misturado à política em seus mais diferentes níveis, igrejas ou religiões inclusivas podem até ter se tornado uma realidade, mas ainda não são a regra. A própria Linn, inclusive, já cantou e contou a história de como foi “desassociada” das Testemunhas de Jeová quando era adolescente.

“A música tem um apelo religioso para mim, o que também é muito importante, porque a religiosidade nos foi tomada enquanto espaço”, observa sobre a sua intenção com a música, que já indica o que o público pode esperar de seu próximo disco. “A religião significa religar e, nesse momento, significa me religar e me reconectar comigo mesmo e com as minhas parceiras e minhas raízes. Foi isso que busquei fazer no clipe.”

Ainda assim, esse momento de conexão com a própria espiritualidade não foi tranquilo para a artista. No dia da gravação do clipe, Linn, que tinha alugado um prédio abandonado e visitado o local dias antes, descobriu que não poderia passar o tempo combinado ali, mesmo com autorização para tal. Isso porque um dos proprietários descobriu que o cenário seria ocupado por travestis, o que foi razão suficiente para pedir o cancelamento da filmagem.

Eu quero ter o tempo necessário de executar as minhas ideias; eu quero ter tempo de vida, e não apenas no confronto

– Linn da Quebrada

“Fico muito chateada de perceber que isso sempre acontece. Porque eu preparei um roteiro, uma vivência, uma experiência, um processo de cura para que a gente vivesse dentro daquele espaço, e tudo isso me foi roubado – assim como muitas outras coisas nos são roubadas no nosso dia a dia”, conta.

Elenco de "Oração" posa em frente à viatura policial chamada para retirar a equipe do local de gravação (Foto: Divulgação)
Elenco de “Oração” posa em frente à viatura policial chamada para retirar a equipe do local de gravação (Foto: Divulgação)

Por fim, o vídeo de “Oração” foi filmado no local que ela pretendia, mas de forma apressada, já que a locação de um dia inteiro foi reduzida a apenas uma hora. A viatura policial chamada para retirá-la do espaço acabou devidamente registrada no clipe, assim como um take final de quasde 100 segundos onde ela e outras mulheres trans, como Urias, Liniker, Neon Cunha e MC Dellacroix aparecem quase estáticas, encarando a câmera. Linn conta que fez questão de manter essa cena, onde o elenco pudesse ocupar aquele espaço com tranquilidade.

“Eu quero ter o tempo necessário de executar as minhas ideias. Eu quero ter tempo de vida, e não apenas no confronto. Todas as outras pessoas têm a possibilidade de executar suas ideias com tempo, mas eu não tenho esse privilégio”, questiona.

Linn da Quebrada: “Todas as outras pessoas têm a possibilidade de executar suas ideias com tempo, mas eu não tenho esse privilégio” (Foto: Divulgação)

Não incluir a viatura no vídeo, ela explica, não era uma opção: “Eu trabalho com fricção da realidade, entre a memória e o inventado. Para mim, não faz sentido fazer um clipe que seja apenas mentira e simboliza um belo mundo sem confronto, sendo que minha trajetória é repleta de enfrentamentos. A mim, não interessa trabalhar com entretenimento que sirva apenas como distração”.

“SEGUNDA CHAMADA”

É essa mesma disputa territorial que Linn enfrenta nos primeiros episódios de “Segunda Chamada”, série da TV Globo na qual ela dá vida a Natasha. Aluna do Educação para Jovens e Adultos – EJA no período noturno, a jovem é agredida em um banheiro masculino da escola e hostilizada ao tentar usar o feminino. Originalmente feita para a última faixa noturna da programação, a atração foi adiantada e passou a ser exibida no horário nobre da emissora graças à boa audiência.

“Pessoalmente, eu me aproximo da Natasha no que diz respeito ao constrangimento em ocupar e permanecer em alguns espaços. Quando eu, Lina Pereira, tenho que ir ao banheiro de um espaço público, eu passo por um processo de constrangimento devido aos outros corpos presentes. Em alguns desses espaços, nossos corpos que não têm ‘passabilidade cis’ passam por constrangimentos no qual eu me encontro quando não sou a Linn da Quebrada”, explica.

Linn conta que, hoje, transita entre a superexposição enquanto artista e o constrangimento que a sociedade reserva à grande maioria das travestis anônimas. Mas, assim como sua personagem na TV, seu objetivo é alcançar o meio-termo: “Eu ainda não conquistei o espaço que busco com a Natasha, de humanização do meu corpo. Eu me aproximo dela nessa coragem e vontade de que as coisas não sejam sempre uma luta, uma guerra. Às vezes, eu só quero ir ao banheiro!”.

Logo nos primeiros episódios de “Segunda Chamada”, Natasha é agredida ao usar o banheiro masculino da escola (Foto: Reprodução)

“É muito cruel isso”, continua. “Eu deixei de ser invisível enquanto corpo, para ser supervisível e espetacularizada. Eu deixo de ser subumana, de alguma forma, para passar por um lugar que é sobre-humano. Nesses lugares, me encontro com a Natasha. Onde sou apenas mais uma travesti. Onde entendo as potências e fragilidades do meu corpo preto, travesti, subalternizado e os diversos pontos que o atravessam.”

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Entre as semelhanças e diferenças que observa entre si e sua personagem, talvez o lugar de humanização que Linn procura não esteja em um futuro tão distante assim. Como ela mesma comenta, hoje é possível ver pessoas transexuais na política, como Érika Hilton, Érica Malunguinho e Robeyoncé Lima, as primeiras deputadas trans na história do Brasil. Ela também cita o espaço conquistado na academia, por nomes como Amara Moira; na TV, com ela e também com Glamour Garcia, em “A Dona do Pedaço”, e com Gabrielle Joie, em “Bonsucesso”; assim como no esporte, com Maria Joaquina e Tifanny Abreu, e tantas outras.

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“Somos travestis muito diferentes entre si. E isso causa medo, porque há uma disputa territorial, de poder e de narrativa. Quando ouvimos e evocamos a palavra ‘travesti’ publicamente, para a grande maioria das pessoas isso ainda pode ter um significado pejorativo. Os nossos corpos presentes nesses espaços apontam que estamos reinventando um novo imaginário social – e é isso que eu quero evocar”, afirma, antes de completar: “Porque sabemos que, quando se trata de atender o desejo da masculinidade, podemos estar em determinados espaços”.

Quando ouvimos e evocamos a palavra ‘travesti’ publicamente, para a grande maioria das pessoas isso ainda pode ter um significado pejorativo

– Linn da Quebrada

Uma das expressões que Linn também usa para descrever seu trabalho artístico é “fricção ao invés de ficção”, uma forma de abordar o sentido amplo da organização social através da corporidade, além das limitações de sexualidade e gênero: “Essas discussões estão implicitamente envolvidas em cada uma de nós, não só pessoas trans e travestis. Isso é importante para todas as pessoas cis também entenderem o seu papel enquanto cidadãs, agentes políticos de transformação ou de reiteração das normas. No meu trabalho, eu discuto vida!”.

DOIS ANOS DE “PAJUBÁ”

Já se foram dois anos desde que Linn lançou “Pajubá”, seu disco de estreia feito através de crowdfunding e, em suas próprias palavras, com faixas de “afro-funk-vogue”. Na turnê de divulgação do trabalho, a artista conseguiu se apresentar pela Europa e pelo circuito nacional, além de ter participado de “Abrindo o Armário”, de Dário Menezes, e estrelado Bixa Travesty”, filme dirigido por Claudia Priscilla e Kiko Goffman, exibido no Festival de Berlim e vencedor do Teddy Awards de Melhor Documentário, que estreou em território brasileiro na última semana.

Agora, ela está se preparando para entrar em estúdio e produzir o sucessor de “Pajubá”, com o país e ela mesma em estados completamente diferentes daquele de 2017. “Nossa, tudo mudou muito. Quando penso nas nossas referências e corpos, que lugares eles ocupavam há dois anos e ocupam hoje. Sinto que me transformei completamente, o cenário político mudou, a mídia se transformou, as narrativas mudaram, tudo. Isso cria em mim a necessidade de cantar e elaborar outros pensamentos. Estou com vontade de cantar e ouvir outras coisas, me transformar mais“.

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Antes disso, ela ainda tem os shows finais da era “Pajubá”, que roda o Brasil e visita algumas capitais pela primeira vez desde o lançamento do disco. “É importante passar por alguns lugares, aumentando a nossa rede de apoio e entendendo o nosso tamanho nesse Brasil hoje, com toda essa crise e sua complexidade política”, afirma.

Pôster oficial de “Bixa Travesty”, documentário estrelado por Linn da Quebrada em cartaz nos cinemas (Foto: Reprodução)

No cinema com “Bixa Travesty”, na estrada com “Pajubá” e na TV com Natasha, Linn estará em estúdio ao longo de 2020, faz campanha para que sua personagem volte na próxima temporada de “Segunda Chamada” e já tem outro filme encaminhado, “Vale Night”, onde será uma de quatro protagonistas negros, em um papel que, nas palavras da própria, “não importa se a personagem é cis ou trans”.

Acho muito importante que tenha a Natasha, passando por problemas relativos à experiência trans, mas acho importante também que tenham personagens com as quais eu passe por outros problemas, outras questões e outras possibilidades sobre o meu corpo”, enfatiza. “Minha arte não é espelho, é martelo. É assim que eu pretendo e construo meus trabalhos.” 

Abaixo, leia a entrevista de Linn para a capa da nossa primeira edição, “Levanta e Luta”:

Levanta e Luta: A eterna (des)construção de Linn da Quebrada

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