ANA ANIMAL, DAS RUAS AO PÓDIO DOS GAY GAMES DE PARIS
por LÍVIA MUNIZ
O ano era 1981 quando o filme “Carruagens de Fogo” (“Chariot of Fire”) estreou nos cinemas brasileiros. Considerado um dos maiores clássicos do cinema, vencedor de quatro prêmios Oscar (inclusive Melhor Filme), o longa contava a história de dois corredores britânicos em busca do sonho olímpico na década de 1920. A obra é marcante por uma das cenas mais icônicas do cinema, na qual vários homens correm pela areia da praia em um dia cinzento, tão comum no Reino Unido. E também em São Paulo, a maior metrópole do Brasil, onde uma jovem moradora de rua viu as cenas do diretor Hugh Hudson e profetizou: “Eu posso correr também. Se eu roubo, se eu corro da polícia, eu posso correr.”
É claro que os meninos que viviam com Ana Luiza dos Anjos Garcez duvidaram dela. Afinal, ela morava nas ruas de São Paulo, mal tinha dinheiro para comer e recorria a pequenos furtos para sobreviver. Mas ela ficou com as imagens daquele filme na cabeça, assim como a música marcante de Vangelis, compositor de “Carruagens de Fogo”, que acabou criando o hino oficial para todas as linhas de chegada do mundo inteiro desde o lançamento do filme.
Hoje, aos 55 anos, Ana Animal pode se orgulhar em dizer que sua profecia se concretizou: tornou-se uma fundista especializada em corridas de 5 e 10 mil metros e a primeira brasileira a levar três medalhas de ouro nos Gay Games de Paris, em agosto deste ano. “Eu falava para todo mundo que, se não conseguisse, eu ia me jogar do Viaduto do Chá. Mas eu consegui e foi uma luta, tive que vender muita coisa. Vendi meus pares de tênis, minhas roupas, meu relógio. Mas graças ao Chico Felitti [amigo que pagou sua inscrição], eu consegui viajar”, ela conta.
Já a alcunha que ela carrega atualmente tem muito mais a ver com sua postura competitiva do que pelo seu gosto pessoal. “Quem me apelidou de ‘Animal’ foram os patinadores. Quando eu morava na rua, peguei os patins de um cara e comecei a andar. Pegava carona nos ônibus, na viatura, eu era danada”, ela ri, contando com bom humor: “E depois, quando tinha competições, eu ganhava tudo”.
Sua primeira vez, em uma desgastante maratona de 42km, foi um desafio maior do que o esperado: “Quando faltavam 12 km, eu não aguentava mais e quis parar. Mas pensei: ‘Não vou parar, porque o menino duvidou de mim’. O pessoal ficava gritando para eu levantar e ir até o fim. Levei 6h para terminar, cheguei toda estrupiada. Peguei a medalha e fui para onde eu morava, embaixo do Minhocão, e fiquei cinco dias sem andar, com dor nas pernas e no corpo todo”, relembra.
Nada que fizesse Ana desistir de sua carreira como maratonista. E foi fazendo graça para a televisão, em uma transmissão de corrida nas ruas de São Paulo, que ela chamou a atenção de Fausto Camunha, então Secretário de Esportes da cidade e, eventualmente, um dos homens mais importantes em sua vida.
“Eu tinha mandado os meninos roubarem para a gente fazer nosso Natal. Comprei frango, fiz arroz, fiz feijão. O Fausto tinha visto a gente na televisão e foi atrás de mim e dos meninos, perguntando se a gente queria sair da rua. Aí eu falei: ‘Como você quer me tirar daqui se você não me conhece? Eu roubo, eu assalto, eu mexo com droga. Eu sou uma pessoa muito ruim’”, respondeu Ana.
Fausto não recuou. Era 1998 e Ana estava cansada das ruas, de apanhar da polícia, de viver à margem da sociedade. Então, tomou a decisão de confiar em Fausto e não se arrependeu. Ele a levou a um médico, cuidou dela, depois a trouxe para o Ginásio do Ibirapuera, onde ela vive até hoje, ocupando um dos quartos do alojamento para atletas, através de uma concessão da Secretaria de Esportes do Estado.
Foi no “Ibira” que ela também conheceu o treinador Wanderlei Oliveira, com quem trabalha desde então. A adaptação foi difícil. Privada de uma educação formal, Ana se comportava mal e era indisciplinada. Até que o esporte a transformou: “O esporte é tudo. Graças ao esporte, eu estou aqui conversando com você. Eu sempre falo que, se não fosse pelo esporte, eu estaria na cadeia ou estaria morta. O esporte me deu educação, me deu respeito, me deu alegria, me deu disciplina. O esporte me deu tudo”.
Carismática, Ana não se esconde, não nega e não mascara a realidade que a trouxe até aqui, falando com franqueza sobre sua trajetória até o pódio dos Gay Games, em Paris, desde o primeiro minuto de entrevista. Sentada em uma poltrona confortável da Fnac, na Avenida Paulista, ela cumprimenta quem passa, mas avisa: “Estou dando uma entrevista”, focada em relatar e se abrir para a Híbrida sobre a origem de seu abandono.
Foto: Arquivo pessoal | Divulgação
“FUMEI MUITA COLA PARA TIRAR A FOME E O FRIO”
Ainda bebê, Ana foi deixada em um caixote de madeira na porta de um abrigo com a irmã gêmea. Viveu na antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), atual Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), até completar 16 anos. Foi na lá onde conheceu os maus tratos pela primeira vez na vida: “Eu nunca estudei de verdade. Estudei até os 16 anos, onde eu morava, mas apanhava muito, levava chinelada e beliscão. Fiz xixi na cama até os 16, por conta disso. A professora levantava e me falava que não adiantava, que eu não ia aprender, que eu ia ser burra. Aí eu peguei um trauma e fiquei 10 anos na 1ª série”, ela relembra.
Assim que deixou a FEBEM, Ana foi trabalhar como empregada doméstica. Morou na casa dos patrões durante seis meses, mas não recebia salário e fugiu com pertences roubados. Foi o primeiro capítulo de sua história nas ruas paulistanas. “Todas as roupas que eu peguei, eu dei. Só fiquei com o cobertor, porque se você vai morar na rua, você vai passar frio. Na rua, eu comecei a roubar, a traficar, a fazer ‘saidinha de banco’, mandava os meninos roubarem para mim… Só andava com meninos, porque meninas não aguentam as coisas na rua”, relata.
Estima-se que o Brasil tenha mais de 100 mil pessoas em situação de rua, a maioria vivendo em grandes cidades como São Paulo, segundo pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2015. Pessoas que vivem expostas às drogas, à fome e à violência. Com Ana, ela conta, não foi diferente. “A primeira coisa que eu usei foi cola de sapateiro, porque nessa época não existia pedra [crack]. Fumei muita cola, que era para tirar a fome e o frio, porque aquilo entrava na minha mente, no meu corpo, e me esquentava”, ela relembra, acrescentand: “E eu gostava também porque dava uma brisa, eu via coisas na parede. Mas também já tentei me jogar do viaduto, porque vi um cara me chamando”.
“Quando eu ficava bem louca, eu enfrentava as pessoas, roubava e ‘saía na mão’ mesmo. Eu tinha que estar bem louca para roubar, senão eu não fazia nada de errado. Eu ficava normal, como estou falando aqui com você agora. Mas, quando eu cheirava e fumava, eu queria fazer tudo de errado. Eu nunca tentei matar ninguém, porque se tem uma coisa que eu não faço é tirar a vida de alguém. Agora catar relógio, roupa, corrente… Isso aí eu fazia. Eu mandava na rua”, pontua.
Ana Animal, ou Tia Punk, como era conhecida graças ao seu amor por artistas como Black Sabbath, AC/DC, Motörhead, Judas Priest e Jannis Joplin, podia até mandar nas ruas, mas pagava um preço para não ser presa ou levada no ‘Caminhão do Faustão’, como chamavam o camburão da polícia: “Aqui, na Paulista, tem uma casinha de policial ali perto do Parque Trianon. Uma vez, eu estava passando por ali e um deles me disse: ‘Eu lembro de você! Lembro que batia muito em você, jogava cola na sua cabeça, no seu corpo inteiro’”, contou a maratonista.
Nesse longo período vivendo nas ruas, o vício em entorpecentes foi algo que literalmente quase tirou a sua vida. Como usuária de cola, cocaína, heroína e éter, ela acordou em uma madrugada com parte do rosto completamente paralisado, um revés que mudou para sempre a sua trajetória.
“Eu larguei de uma hora para outra, mas por causa da paralisia. Eu acordei às 4h da manhã, não sentia nada. Me beliscava e não sentia. Aí fui para o hospital, fiquei uns dias lá. Fizeram exames e me deram eletrochoque até eu voltar ao normal. Aí quando voltei, o médico falou: ‘Se você continuar usando droga, você vai ficar aleijada pelo resto da vida.’ Foi aí que eu parei”, conta, mantendo a falta de filtros que seguiu toda a entrevista.
Embora a maior parte da população de rua seja composta por homens, que formam mais de 80% desse grupo, as mulheres sofrem mais com as dificuldades do asfalto. Além de lidar em com os mesmos perigos e exposições dos homens, elas precisam lidar com um outro fator preocupante da sociedade brasileira, ainda mais para quem não tem um teto: a violência sexual. Enquanto vivia nas ruas, Ana sofreu nada menos que três tentativas de estupro.
“Um dia, eu estava dormindo aqui embaixo, na Gazeta [edifício onde fica a Fundação Cásper Líbero]. Aí chegou um cara do nada para tentar me estuprar. Ele tirou o pênis e começou a roçar em mim. Eu pus a mão e senti aquela coisa estranha. Quando abri os olhos, ele já ia tapando minha boca com a mão, mas dei uma dentada e ele soltou. Nisso, saí gritando: ‘Ele queria me estuprar! Vamos catar ele!’. E eu catei ele, eu e os moleques. Quebrei ele no meio da Paulista e falei que ele nunca mais encostaria em ninguém”, desabafa.
Depois dessa primeira vez, Ana percebeu que precisaria rejeitar sua vaidade para se proteger e sobreviver nas ruas. Ela, que amava se arrumar, se maquiar e usar roupas que expressavam sua feminilidade, raspou os cabelos e passou a se vestir com roupas masculinas. Uma prevenção que funcionava muito bem, até perceberem que ela era sim uma mulher. Por isso, mesmo depois de sua transformação, ainda sofreu outras duas tentativas de estupro, e em uma delas teve seu maxilar quebrado.
Foto: Arquivo pessoal | Divulgação
“EU SOU UMA PESSOA FELIZ“
Hoje, Ana mantém o cabelo raspado, mas por opção própria. Afinal, ela gosta de mudar e decidiu dar adeus às longas madeixas para transformar a cabeça numa tela em branco. No início do mês, os cabelos estavam pintados em rosa choque. Hoje, já foram novamente descoloridos para receberem os tons de verde e amarelo que ela quer usar em sua próxima prova, em Nova York.
A maratonista ama defender as cores do Brasil e sente orgulho de competir pelo seu país mundo afora. Mesmo com as dificuldades, ela já correu em lugares como EUA, Argentina, Cuba, Chile, Japão, Bolívia, Uruguai, Colômbia, Venezuela, França (nos Gay Games) e Reino Unido, aquele mesmo de “Carruagens de Fogo”, onde viveu um dos momentos mais marcantes de sua carreira ao cumprimentar Príncipe Harry, padrinho de um dos eventos no qual ela competiu.
Apesar de sua participação no evento, Animal afirma que não é lésbica ou bissexual, mas “simpatizante”, nomenclatura comum entre as décadas de 1980 e 1990, usada para caracterizar pessoas heterossexuais que apoiavam a comunidade. Em uma sociedade preconceituosa como a brasileira, foi com os LGBTs que a mulher negra, pobre e ex-moradora de rua se sentiu acolhida.
“Eles me acolheram. Por isso que eu passei a andar com eles. Eu os amo, amo me vestir igual a eles. Toda vez que tem Parada do Orgulho, eu me arrumo e eles falam que eu estou arrasando, que estou um luxo, que eu sou uma diva. Gosto de me vestir toda colorida e eles me amam”, comenta.
Um de seus melhores amigos foi Celso, homem gay que a convidou para morar com ele, na época em que Ana ocupava a esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista. Foram viver em São Bernardo do Campo e Animal cuidou dele até a sua morte, causada por complicações decorrentes do vírus HIV. Depois, ela retornou para as ruas de São Paulo.
Ana é grata por tudo que viveu. Mas também sabe que, se a vida não tivesse lhe levado tão cedo às ruas, tudo seria diferente. Ou, como diz seu técnico Wanderlei, se tivesse sido descoberta aos 14 ou 15 anos, teria sido uma atleta de ponta e até disputado as Olimpíadas. Mas nada disso tira o sorriso de seu rosto: “Eu sou uma pessoa feliz. Todos os lugares aonde vou, as pessoas gostam de mim, sentem minha falta, falam que eu sou engraçada. Cada um carrega sua própria cruz, mas eu sou feliz”.