23 abr 2024

aretuza lovi hibrida

por JOÃO KER

Aos quase 10 anos de carreira, Aretuza Lovi alcançou um posto de destaque que poucas drag queens no Brasil já chegaram, tornando-se a terceira artista do gênero mais ouvida no país. Agora, ela está pronta para se reinventar e abrir um novo capítulo na própria história, não sem antes revisitar o lugar onde tudo começou. E conta tudo para a edição #5 da Revista Híbrida, “INFLUÊNCIA”.

Johnny Hooker

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.




Em 2012, o artista Bruno Nascimento estava na casa de umas amigas, em Brasília, quando decidiu se montar de drag queen pela primeira vez, como parte de uma brincadeira. No dia seguinte, ele resolveu ir de salto e peruca para uma balada em Brasília e, ao chegar lá, a apresentadora da noite havia faltado. Ao olhar para ele, o organizador do evento propôs logo de cara: você vai apresentar o show de hoje. Sem tempo para pensar ou se preparar, ele subiu ao palco e, sem saber, deu início à carreira de Aretuza Lovi, que mudaria sua vida pelos anos seguintes.

“Sempre me acharam muito engraçada, então eu apostei nisso quando me vi em cima do palco sem nenhum roteiro nem nada para seguir”, lembra.

Aretuza gravou sua primeira música, “Strip Tease”, no ano seguinte. Apesar de estar no começo do que seria uma longa carreira como drag queen, seu primeiro sonho foi a música, desde que saiu de Cristalina, no interior de Goiás, para trabalhar como camareiro nos bastidores do forró, migrando do Pará para Pernambuco e para a Bahia, até voltar para a capital federal.

Antes de subir ao palco como Aretuza, entretanto, o adolescente Bruno já havia largado a asa da mãe e se mudado para Belém. Na capital paraense, ele teve seu primeiro contato profissional com o mundo artístico e fez amigos que, mais tarde, iriam ajudá-lo na construção da própria carreira. Seu primeiro EP, “PopStar”, nasceria sairia ainda em 2013.

“Quando me vi em cima do palco, sem roteiro nem nada pra seguir, apostei no meu humor”

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Com sete faixas, entre elas uma parceria com o grupo Sapabonde e uma releitura de “Right Now (Na Na Na)” do Akon, o trabalho era amplamente influenciado pelos samples e sintetizadores que moldavam o technobrega no Pará. Dois anos antes, Gaby Amarantos havia apresentado o gênero ao Brasil no palco do “Domingão do Faustão” e a Banda Uó começava a introduzi-lo na cena queer.

Não que a drag queens não tivessem cruzado a linha do lip synch e soltado a voz nas pistas de dança da cena underground. Ainda na década de 1970, as “transformistas” brasileiras já tinham ganhado a noite ao apostarem no teatro de revista em casas da Cinelândia, no Rio, ou na K-7 e, posteriormente, no Medieval, em São Paulo. Apostando em gogó, glamour e um palco cheio de bailarinas, nomes como Miss Biá e a Divinas Divas cantavam desde Edith Piaf a paródias escrachadas.

O problema é que, até aquele momento, as músicas autorais de drag queens no início da década de 2010 eram focadas no humor das performers. Com gírias conhecidas apenas na comunidade LGBTQ, produção dançante inspirada no house e tocadas quase exclusivamente em baladas gays, a nova geração vinha encabeçada por nomes como Silvetty Montilla, Las Bibas From Vizcaya e Léo Aquilla.

E se cantar montada já era difícil, fazer isso com ritmos nordestinos trazia consigo seus próprios desafios. O brega que estourava no Pará não encontrava muito espaço entre os sertanejos das rádios e o pop brasileiro também estava longe de ser esse grande arco-íris de nomes e possibilidades que a era do streaming permite. No Sudeste, grupos como Cansei de Ser Sexy, Montage, Bonde do Rolê e Banda Uó apontavam pra um caminho da nova geração na música queer, mas não encontravam grande expressão no mainstream nacional.




aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Foi nesse contexto que Aretuza começou a produzir “Popstar”. As músicas eram gravadas no fundo do quintal de amigos em Belém, com microfones improvisados e sem estruturas básicas, como um isolamento acústico adequado. Com o dinheiro que juntou do trabalho de apresentadora e hostess na noite brasiliense, ela pagou pela própria produção e ia para lan houses “queimar” os CDs com suas demos.

“Foi tanta gente dizendo que eu não ia conseguir… Mas eu até entendo, elas não conheciam ninguém que tivesse feito isso antes, não havia referência. Hoje, eu consigo gravar com alguns dos melhores produtores do País”, relembra.

Ainda em 2013, Aretuza fez sua estreia em rede nacional durante uma entrevista com a jornalista Marília Gabriela, no programa “Gabi quase proibida”, do SBT. Apresentada ao lado de Daniel Peixoto como representante da “nova onda de artistas LGBT na MPB”, ela e o colega foram questionados sobre “cura gay”, as delícias e os desafios de ser parte da “sopa de letrinhas” da comunidade no Brasil.

Três anos e um disco mais tarde, Arê experimentaria o seu primeiro hit e transbordaria as paredes da Victoria Haus para ganhar o país com “Catuaba” (hoje já com mais de 20 milhões de plays nas plataformas online), parceria com Gloria Groove, que já vinha chamando atenção online com “Dona” e “Império”. Na mesma época, ela participou do elenco de “Amor & Sexo”, na TV Globo, e com a mistura de experiência, profissionalismo e trabalho duro começou a cavar seu espaço no inconsciente coletivo do público.

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Em 2017, Aretuza Lovi se tornou a segunda drag queen a assinar contrato com o escritório brasileiro da Sony Music, atrás apenas de Pabllo Vittar. No ano seguinte, seu primeiro álbum com a gravadora, “Mercadinho”, trouxe 12 faixas com um time de participações que a catapultaram ainda mais para o público comercial. Os clipes de “Arrependida”, com Solange Almeida, e “Movimento”, com Iza, já somam juntos mais de 12,5 milhões de visualizações, apenas no Youtube.

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Ao mesmo tempo em que foi emplacando sucessos para as pistas, rádios e festas de carnaval, Aretuza solidificou ainda mais seu nome entre o público LGBTQ. “Joga Bunda”, um megazord drag com participações espetaculares de Gloria e Pabllo foi lançada bem a tempo de se tornar onipresente no carnaval de 2018. A megaprodução audiovisual que acompanhou a faixa provou ainda que o Brasil já tem qualidade técnicas e criativas para ir frente a frente com o que acontece no mercado pop internacional.

“Eu olho para a cena que nós temos hoje no pop brasileiro e fico muito feliz de ver como ela é diversa e repleta de artistas talentosos. A própria Pabllo, por exemplo, é uma pessoa que sempre reconhece as que vieram antes e ajuda a comunidade”, avalia Aretuza.

O medo de andar montada na rua, a incerteza dos trabalhos e o preconceito que a arte drag enfrentava então, ela conta, nem se compara à liberdade e pluralidade da qual a cena dispõe hoje. “No começo, eu já ouvi de produtores de festa no Rio de Janeiro dizendo que não havia mercado para esse tipo de show. Hoje, em qualquer farmácia que você entra já é possível comprar maquiagem pra se montar. Naquela época era difícil até de achar peruca, lace nem existia”, recorda.

A visibilidade, entretanto, não é sempre um mar de rosas e retweets. Com a mesma proporção que traz seguidores, o reconhecimento também expõe a críticas que em menos de 280 caracteres conseguem ultrapassar a avaliação artística e configurarem crime de ódio. Não raramente, esses ataques vêm da própria comunidade LGBTQ.

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.




Em 30 de abril, Aretuza, Pabllo, Urias, Pepita e Mateus Carrilho participaram de uma live musical patrocinada para arrecadarem doações a instituições que prestam apoio a LGBTQs em situação de vulnerabilidade, agravada pela pandemia do novo coronavírus. O “Festival do Orgulho Live” foi o primeiro inteiramente dedicado à comunidade, quase dois meses após a Covid-19 ter desembarcado no Brasil e levado consigo a renda, o lar e a vida de milhares.

Apesar do objetivo e horas de duração do evento, o que dominou grande parte dos comentários, memes e comentários de infuencers no dia seguinte foi um trecho da apresentação de Aretuza com a música “Pisa Menos”. Escrita e produzida por Pablo Bispo, Ruxell e Sergio Santos, do trio Dogz, a faixa foi lançada originalmente no disco “Mercadinho” e usa a gíria do título para passar uma mensagem de empoderamento. “Essa é para os haters”, já anuncia o primeiro verso.

“As pessoas te atacam sem pensar nas consequências disso. A própria comunidade que deveria te apoiar e é tão cruel com você. Eu tava lá lutando pelas próprias pessoas que me criticavam”, desabafa Aretuza. Ela conta que “se sentiu muito mal” com a repercussão que o vídeo da performance teve, ao ponto de que precisou abandonar as redes sociais para respirar por um tempo.

Ela explica que a letra de “Pisa Menos”, na verdade, foi inspirada por situações que ela mesma viveu no início da carreira, quando era gongada por sonhar alto, e levou para o estúdio no dia da gravação. “Sabe quando uma pessoa fica o tempo todo te colocando pra baixo e tentando te desmerecer? Então, nessas situações a gente fala ‘mana, para, pisa menos’.”

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Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

“O que as pessoas não entenderam é que, para mim, o retorno estava normal, mas houve um problema na transmissão que atrasou o áudio”, explica, ao mesmo tempo em que prefere não apontar dedos pela falha técnica. Apesar de tudo, o ditado “falem bem ou falem mal, mas falem de mim” acabou por se provar verdade e, mesmo que de maneira involuntária, “Pisa Menos” grudou seu refrão assombrosamente chiclete na cabeça das pessoas, ao mesmo tempo em que deu nova vida a um bordão já prestes a cair em desuso.

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

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Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Foi seu filho de seis anos, Noah, quem fez Aretuza sacudir a poeira e retomar o pique após a enxurrada de críticas negativas, que chegaram ao ápice de sugerir que a queen deveria se matar ou abandonar a carreira de cantora.

“Ele me viu meio pra baixo e falou: ‘Papai, eu te amo exatamente do jeitinho que você é’. Eu não tinha nem como explicar pra ele o que estava acontecendo, mas aquilo foi tão espontâneo que me emocionou. Pensei que, se sou bom para a pessoa mais importante da minha vida, nada mais importava.”

A paternidade era um desejo antigo de Bruno, desde que ele levou Aretuza ao programa de Marília Gabriela, em 2013, e admitiu a vontade de adotar. Noah, filho biológico de uma de suas melhores amigas, chegou na vida do artista para ressignificar as suas próprias memórias sobre vida e exemplos paternos.

Bruno com o filho de seis anos, Noah (Foto: Reprodução Instagram)
Bruno com o filho de seis anos, Noah (Foto: Reprodução Instagram)

Um vídeo que vira e mexe é ressuscitado nas redes sociais com potencial quase ad infinitum de viralização é um depoimento de Aretuza sobre a relação com o próprio pai, com quem cortou relações há anos. “Não sinto mais nada, nem raiva e nem carinho”, conta. Na entrevista, ela relata os abusos físicos e psicológicos que sofria constantemente na infância, as vezes que apanhou por ser diferente do que o pai esperava.

“Eu era uma criança triste. Me dei conta disso depois, mas quando vejo minhas fotos antigas eu nunca estou sorrindo”, observa. É Noah, ela conta, que, norteia todas as decisões da sua vida profissional e pessoal. “Ser pai muda toda a sua perspectiva. Hoje, eu posso dizer que vivo pelo meu filho. Quero que ele cresça aprendendo a respeitar todas as diferenças.”

aretuza lovi

aretuza lovi

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Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Sem nenhuma pretensão de diminuir o ritmo, Aretuza conta que tem novos planos para a carreira. Ela tem usado o alcance de suas redes para fazer entrevistas com outras pessoas LGBTQ e retomar essa veia artística que remonta aos seus primeiros dias de drag queen. Musicalmente, ela também pretende voltar ao início do que a trouxe até aqui.

Seu próximo single, “Dodói”, com a participação de Thiaguinho MT e lançamento marcado para 19 de junho, é um retorno às influência do brega e do forró. “Quero resgatar minhas raízes daqui pra frente. É uma música mais íntima e tranquila pra essa época de quarentena”, afirma.

Desde o início, Aretuza encontrou, enfrentou e superou críticas e dificuldades que fariam muitos terem parado pelo caminho. Mas nenhuma falta de dinheiro, referências ou apoio em casa, na rua ou na internet, conseguiu fazer com que ela desistisse de sonhar – e, porque não, de continuar pisando onde e como quiser.

aretuza lovi

Foto: Nicolas Gondim; Design: Bernardo Remus; Produção: João Ker.

Assista abaixo ao clipe de “Dodói”:

Fotos: Nicolas Gondim
Produção: João Ker
Design: Bernardo Remus

NICOLAS GONDIM

Fotógrafo profissional há mais de 20 anos, sempre envolvido em âmbitos diversos das imagens, tem foco especial nos segmentos da Publicidade e Moda, área em que também é graduado pela Universidade Federal do Ceará.

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JOÃO KER

Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou por empresas como Canal Futura, Jornal do Brasil, Sony, Yahoo e The Intercept, antes de lançar a Híbrida. É também repórter do jornal O Estado de S. Paulo.

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BERNARDO REMUS

Recifense com espírito de artista, formou-se em Publicidade pela UFRJ e, em parceria com João Ker, ajudou a trazer a Híbrida à vida. Trabalha também como Ilustrador, Designer Gráfico e Editor Audiovisual.

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