08 maio 2024

A SUPERAÇÃO DA LEI COLONIAL QUE IMPULSIONOU DIREITOS LGBTIs NA ANGOLA

COMO O PAÍS AFRICANO SE LIVROU DO DOMINÍIO IDEOLÓGICO DE PORTUGAL PARA ALCANÇAR SUA INDEPENDÊNCIA NOS DIREITOS HUMANOS

Em 11 de novembro, a Angola comemorou os 45 anos desde que conquistou sua independência da colonização portuguesa. Ainda no ano passado, o país também aprovou seu novo Código Penal, que após mais de um século retira uma proibição legislativa à existência de LGBTIs e que, apesar de não funcionar na prática, inviabilizou políticas públicas direcionadas especificamente à comunidade. Nessa edição, iniciamos uma parceria inédita com nossas irmãs e irmãos LGBTs de Luanda através da Conexão Angola, um espaço dedicado à troca e fortalecimento da nossa comunidade.

Apesar da distância física, Brasil e Angola são ligados pela herança genética e por muitas outras interseções culturais e sociais, sendo uma das mais importantes o idioma português. Ambos são membros da Comunidade de Países da Língua Portuguesa, organização formada por nove nações espalhadas por Europa, América, África e Ásia e que, juntos, ocupam uma área maior que a União Europeia.

Além do idioma, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste também dividem traços comuns após séculos de trocas comerciais. Como é impossível falar do presente sem entender um pouco do passado, vamos entender como se deu o processo violento de produção e comércio chamado colonização, que uniu os nossos destinos para sempre.

O COLONIALISMO PORTUGUÊS

Durante séculos, países europeus invadiram e tomaram territórios ao redor do mundo, subjugando e algumas vezes até dizimando populações nativas quando estas não assimilavam voluntariamente as práticas de comércio e administração impostas. Essa mudança no domínio dos meios de produção em uma determinada sociedade se reproduzia na cultura, língua e religião exercidas pelos recém-chegados colonizadores.

O processo de assimilação forçada se iniciava através de trocas comerciais com os primeiros povos habitantes encontrados na terra e evoluía para a construção de empresas e entrepostos fiscais e militares que mais tarde se transformariam na administração pública colonial. Esse aparato administrativo do colonizador servia para dar segurança aos interesses comerciais da metrópole (no nosso caso, Lisboa) frente os contra-ataques e resistência dos povos invadidos.

Portugal foi o primeiro país a desenvolver técnicas modernas de colonização, navegação e comunicação, o que lhes deu a capacidade de ocupar e administrar porções de território descontínuas em quatro continentes diferentes. Toda essa tecnologia foi desenvolvida à medida que rotas e parceiros comerciais se expandiam, criando demanda e alimentando novos investimentos para alcançar mais fornecedores e mais compradores. Impulsionados pelos ganhos comerciais e pela vitória militar, os portugueses começaram a explorar a costa da África e, em 1482, chegam ao Império do Congo, conhecida hoje como Zaire. A expedição era comandada por um português de nome Diogo Cão, durante o reinado de Dom João II.

Ilustração da chegada de Diogo Cão ao território de Namíbia no século XV (Foto: Reprodução)
Ilustração da chegada de Diogo Cão ao território de Namíbia no século XV (Foto: Reprodução)

O Império do Congo era formado por vários reinos aliados e rivais, espalhados pelo sudoeste da África. Os portugueses aproveitam-se dessa característica e começaram a explorar as rivalidades entre os povos nativos, principalmente de Ndongo e Matamba. A partir dos conflitos gerados na região, eles conseguem se estabelecer definitivamente em 1576, fundando o entreposto militar-comercial e a vila de São Paulo da Assumpção de Luanda.

HISTÓRIA BRASIL-ANGOLA

As histórias do Brasil e de Angola deveriam ser estudadas em conjunto, de maneira indissociável, pelo fato de ambas as regiões geográficas terem se constituído como peças de uma engrenagem maior: a empresa colonial lusitana.

Com rotas comerciais já estabelecidas entre a Ásia e os consumidores europeus, Portugal começou a investir em atividades produtivas para atender a crescente demanda por artigos importados e também assegurar seu domínio político e econômico nos territórios recém-conquistados. De 1576 até meados de 1822, a ocupação portuguesa na África se deu quase exclusivamente no litoral, através de fortificações e entrepostos comerciais para o sequestro, captura e tráfico de pessoas escravizadas que viriam de todas as partes do continente.

Foi através dessa divisão do trabalho social que se desenvolveu a instituição de comércio mais cruel da História Moderna, e que deixaria um legado de violência e perseguição por séculos, sentido na sociedade até os dias de hoje: a escravidão.

A região que hoje conhecemos como Angola pode ser considerada um dos berços da população e da civilização brasileira, pois é a localidade onde viviam boa parte dos povos de Língua Banto, descendentes diretos da maior parte dos brasileiros de origem africana. A emigração forçada de milhões dos seus habitantes por traficantes portugueses e brasileiros, que faziam a travessia do Atlântico Sul em condições abjetas e altos índices de mortalidade, foi a força motriz de toda a economia colonial e da povoação do Brasil.

A tortura e lavagem cerebral imposta pela língua, pela religião e pelos costumes faziam parte do projeto de limpeza étnica que visava enfraquecer quaisquer tentativas de resistência. Mas essas práticas não foram exatamente bem-sucedidas. Do sincretismo religioso ao desenvolvimento da capoeira, passando pela culinária e pelos quilombos, os povos da África formaram sua própria resistência e foram os verdadeiros construtores da cultura brasileira, ainda que esta estivesse sob a influência dos europeus.

Retrato daa rainha Nzinga Mbandi reproduzido por litografia (Foto: Reprodução)
Retrato daa rainha Nzinga Mbandi reproduzido por litografia (Foto: Reprodução)

Enquanto isso, o continente africano também lutava para resistir à colonização, e uma das figuras mais emblemáticas dessa história ficou conhecida por aqui como rainha Ginga. N’zinga Mbande foi rainha dos reinos de N’dongo e Matamba de 1624 até sua morte em 1666. Brilhante diplomata e estrategista militar, ela foi capaz de organizar vários ataques aos invasores portugueses e de negociar tratados de paz, que trouxeram estabilidade ao seu reino pelas décadas em que esteve viva e depois.

DESCOLONIZAÇÃO E GUERRA CIVIL

A descolonização dos países africanos foi quase tão violenta e destrutiva quanto o processo de colonização. Em 1960, o então Congo Belga deu o pontapé inicial no continente e declarou sua independência da metrópole, replicando o movimento por toda a África. Nesse mesmo período, começam a surgir os exércitos para libertação de Angola, como o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA).

O governo de Portugal se recusou a dialogar com esses movimentos e defendeu seu Império até o limite, desencadeando uma luta armada contra seu colonizador, que respondeu reprimindo as manifestações. Em meio à Guerra Fria, a descolonização se tornou palco de disputas das potências internacionais.

Na Angola, os movimentos populares se alinharam aos interesses de potências estrangeiras em troca de apoio político, financeiro e bélico para expulsar Portugal e restabelecer o país como uma liderança política autônoma. Assim, o MPLA se alinhou à União Soviética e a Cuba, enquanto a FNLA e a UNITA se aliaram aos países europeus, aos EUA, à China e à África do Sul.

Em 1975, o governo de Portugal entra em negociações com os três movimentos para a realização de eleições democráticas no território angolano. Mas o clima de guerra já assolava o país e, em 11 de novembro de 1975, a independência é declarada por Agostinho Neto, primeiro presidente nativo e líder revolucionário do MPLA.

Agostinho Neto, líder do MPLA (Foto: Reprodução)
Agostinho Neto, líder do MPLA (Foto: Reprodução)

O Brasil, à época sob o governo ditatorial de Ernesto Geisel, foi o primeiro país a reconhecer a independência da Angola, em 6 de novembro daquele ano, antes mesmo da data de independência oficial ou de qualquer outra nação do bloco comunista. A ONU só reconheceria o MPLA como governo legítimo em 1976, o que não foi seguido nem pelos EUA nem pela África do Sul até então.

A guerra civil matou milhões de angolanos, destruiu a infraestrutura do país e desalojou populações inteiras que se deslocaram para a capital Luanda, a qual começou a ter sérios problemas pelo influxo gigantesco de refugiados. Nas eleições de 1992, o MPLA ganha o pleito com mais de metade dos votos e sob acusações de fraudes a UNITA, que não aceita o resultado e retoma os conflitos armados, estendendo a guerra por mais alguns anos. Esse embate só terminaria em 2002, com a morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi.

RECONSTRUÇÃO CIVIL E SURGIMENTO DE MOVIMENTOS LGBT

Após 400 anos de colonização e 27 de guerra, a Angola finalmente consegue sua independência e a paz. Essa estabilidade política atraiu investimentos estrangeiros de várias partes do mundo. Com esse crescimento econômico veio também o aumento do acesso a bens e serviços, uma prosperidade que permitiu à sociedade ter acesso a mais informação e assim abrir espaço para novas discussões, como gênero e sexualidade.

Promulgado em 1886, o Código Penal português também valia para a Angola, considerada mais uma província do reino. Sob o regime, era proibida qualquer relação entre pessoas do mesmo sexo no país, sob pena de prisão aos que fossem pegos descumprindo a lei.

De acordo com Carlos Fernandes, fundador da Associação Íris, primeira associação LGBT oficialmente reconhecida no país, “ninguém nunca foi preso por tal dita lei, então ela não funcionava na prática”. “Mas, de certa forma, também era uma barreira para dialogar com os ministérios do governo”, avalia, em entrevista à Híbrida. “Isso significa que, apesar de a lei não necessariamente ser usada para punir indivíduos LGBTI+, ela impedia que o Estado promovesse políticas públicas voltadas para essa população.”

Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris Angola (Foto: Arquivo Pessoal)
Carlos Fernandes, um dos fundadores da Associação Íris Angola (Foto: Arquivo Pessoal)

Sob influência da indústria cultural brasileira, que desde a década de 1970 estava massivamente presente no país através das telenovelas e publicações, a sociedade angolana começa a desenvolver uma cena própria de produção cultural e diversidade que ganha espaço pelo mundo. Um dos maiores exemplos desse movimento é o surgimento do Kuduro, estilo musical que catapultou artistas angolanos e impulsionou a produção no país. Por aqui, um dos exemplos mais conhecidos foi a abertura de “Avenida Brasil”.

Esse cenário de mudança ganha ainda mais reforço quando o filho do segundo presidente angolano José Eduardo dos Santos, Córeon Dú, se assume gay. Em 2012, ele produz “Windeck”, novela que traz entre os personagens um casal de mulheres lésbicas. A partir desse momento, a sociedade angolana começa a conviver mais abertamente com a diversidade através das produções locais.

Ainda assim, três anos depois a novela “Jikulumessu – Abre o Olho” trouxe em seu elenco um casal gay, exibindo o primeiro beijo entre dois homens na televisão angolana. A repercussão da cena foi negativa e a produção chegou a ser retirada do ar por uma semana, causando protestos das entidades de direitos humanos que operam no país.

Beijo gay na novela "Jikulumessu" fez folhetim ser suspenso por uma semana na TV angolana (Foto: reprodução)
Beijo gay na novela "Jikulumessu" fez folhetim ser suspenso por uma semana na TV angolana (Foto: reprodução)

Ao mesmo tempo, a comunidade LGBTI+ da Angola começa a florescer principalmente em Luanda. Como nos contou Fernandes, o movimento passa a organizar encontros e festas, conhecendo-se em toda sua diversidade. Homens e mulheres cis e trans, gays, lésbicas e representantes da sigla começaram a constituir uma verdadeira comunidade. Cantoras como Titica e Hady Lima despontam internacionalmente e a criação desse ambiente impulsiona tomada de uma ação mais efetiva.

ASSOCIAÇÃO ÍRIS E NOVO CÓDIGO PENAL

Como contamos aqui, a Associação Íris Angola é oficialmente registrada em 2018, em um momento que marca a ampliação das perspectivas. Todo o trabalho que já vinha sendo realizado nos anos anteriores poderia agora ser ampliado. Com sua legalização, a ONG passou a ter permissão para receber fundos, participar de concorrências e se tornar um ente jurídico com personalidade plena.

A partir desse momento, a Íris expande sua atuação e deixa de estar restrita aos espaços da saúde. Além dos programas de prevenção e tratamento de HIV, ela começa a participar da elaboração de políticas educacionais, em parceria com a UNICEF e o Ministério da Educação. “Conseguimos incluir no manual questões sobre orientação sexual, identidade de gênero, bullying, violência doméstica etc.”, explica Fernandes. O manual foi distribuído pelo sistema de Educação Básica da Angola, com o objetivo de orientar profissionais e alunos a lidar com situações de discriminação no ambiente escolar.

Em conjunto com o Ministério da Justiça e a Anistia Internacional, a associação ajudou também a desenvolver um livro de bolso chamado “Carrega aí os seus Direitos”, com explicações sobre cidadania para a população geral. Contudo, isso esbarrava no Código Penal português de 1886, ainda vigente na Angola e com suas punições para a homossexualidade. Ali estava um entrave para o Estado, que era impedido de criar e desenvolver políticas públicas para a população LGBTI+.

Comunidade LGBTI+ da Angola em marcha organizada pela Associação Íris (Foto: Arquivo Pessoal)
Comunidade LGBTI+ da Angola em marcha organizada pela Associação Íris (Foto: Arquivo Pessoal)

Essa não é uma questão simples de se resolver, já que a elaboração e aprovação de um novo Código Penal depende de um Poder Legislativo legítimo, que não esteja em estado de guerra civil e possa levar adiante o processo. Até os acordos de paz de 2002, era impossível concretizar qualquer iniciativa nesse sentido.

Com a estabilidade política, foi possível iniciar um processo de negociação e deliberação de inúmeros agentes sociais e políticos, culminando na possibilidade de se construir um consenso sobre a necessidade de mudanças na legislação angolana. Em janeiro deste ano, a Assembleia Nacional finalmente aprova o texto do Novo Código Penal, uma medida que refletiu não só nos direitos LGBTI+.

Trata-se de um ato de soberania do Estado angolano que, depois de 134 anos a ser regido nos domínios penal e criminal, com um Código que vem desde 1886, da administração colonial, tem agora o Código Penal totalmente inspirado na realidade política, jurídica, cultural e social angolana””, afirmou o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, ao jornal AngoNotícias.

Essa mudança foi uma vitória para vários movimentos sociais e de ativismo por direitos em Angola. “Muitas pessoas do nosso país quando sentiram uma evolução”, avalia Fernandes. “Em Direitos Humanos, tivemos não só a conquista da descriminalização no Código Penal, mas também somos um dos poucos países na África onde as populações-chave se reconhecem como LGBT, não como homens que fazem sexo com homens (HSH). Nos outros países, é muito difícil usar a sigla porque os outros gêneros são invisibilizados. O homem esconde muito o que realmente é a nossa comunidade.”

UNI-VOS E MULTIPLICAI-VOS

Como consequência da construção de todo esse processo de diversidade social, outros atores começaram a aparecer em cena, incentivados pelas conquistas dos primeiros. O movimento de ativismo por direitos LGBT+ que começou com a Associação Íris de Angola se multiplicou por todas as letras da sigla e cores do arco-íris.

Carlos Fernandes conta que nesse período de florescimento foi criada a Associação de Arquivo de Identidade Angolano (AAIA), um movimento de lésbicas que fundou uma casa de abrigo e oferece alimentação diária, lavanderia e outros tipos de acolhimento para a comunidade. Mulheres trans também organizaram grupos de ativismo, como o Eu sou Trans Angola, coordenado por Imanni Silva, uma modelo premiada internacionalmente. Ao mesmo tempo, homens trans fundaram o Movimento T, grupo de acolhimento e ativismo que se soma na luta por direitos para a comunidade.

Esses exemplos que começam a ganhar impulso na luta contra a LGBTfobia na Angola são, sem dúvidas, claros o suficiente para nos mostrar que existe uma força imensa em todas as conquistas alcançadas pelos nossos irmãos e irmãs do outro lado do Atlântico. Constatar que existe um movimento plural e diverso em um país tão culturalmente próximo ao Brasil nos mostra o quão é importante que os movimentos daqui também tenham possibilidade de se aproximar ainda mais, e colaborar entre si com recursos e experiência.

Pioneirismo da Associação Íris Angola impulsionou busca de LGBTIs por direitos na Angola (Foto: Arquivo Pessoal)
Pioneirismo da Associação Íris Angola impulsionou busca de LGBTIs por direitos na Angola (Foto: Arquivo Pessoal)

Quanto ao futuro, Carlos e a Associação Íris têm vários planos de consolidar e ampliar o trabalho que já existe, e avançar ainda mais nas conquistas. “Nossa principal ideia no futuro era conseguir criar o que chamamos de ‘drop center’, em que pudéssemos juntar no mesmo sítio questões de saúde, alojamento e alimentação diária. E também conseguir profissionais que possam ajudar nossa comunidade a criar micronegócios ou coisas do gênero.”

LUIZ GUILHERME OSÓRIO

LUIZ GUILHERME OSÓRIO

Formado em Internacional Business pela UCLA e Comunicação Social pela UFRJ. Passou um período pela faculdade de Direito da UFJF, trabalhou na Revista Seleções e hoje trabalha como especialista em Direitos Autorais e Propriedade Intelectual na internet em uma empresa de tecnologia em Los Angeles. É gay, casado e feliz, e tenta fazer tudo ao seu alcance para contribuir para o benefício de todos os seres sencientes do universo.

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