19 abr 2024

O LEGADO IMORTAL DE “PARIS IS BURNING

LANÇADO COMERCIALMENTE NOS EUA HÁ 30 ANOS, DOCUMENTÁRIO PIONEIRO SOBRE A CENA BALLROOM AINDA REVERBERA NAS PRODUÇÕES E NO IMAGINÁRIO DE HOJE

“Eles se apresentam como As Crianças (The Children). São negros e latinos, parte da população menos favorecida de Nova York, e homossexuais. Marginalizados para o mainstream, muitos também sofrem rejeição de suas próprias famílias. Estas Crianças pertencem às Houses – por exemplo, House of Chanel, House of Saint Laurent, House of Ninja – grupos unidos por afinidade que oferecem a elas apoio emocional, criativo e financeiro. Mas o foco de suas vidas são os bailes. Os Bailes Drag do Harlem são desfiles de membros destas casas que competem por troféus e prêmios em dinheiro. Um cruzamento de teatro e performance, estas competições são cativantes (para quem as assiste). Ao mesmo tempo, levantam questões sobre a natureza daquelas identidades e o estilo de vida assumido pelos performers na pista (as categorias dos desfiles)”. – Trecho do catálogo do Sundance Festival explicando “Paris is Burning”, em 1991




Odocumentário “Paris is Burning, de Jennie Livingston, trouxe ao cinema e à cena o circuito de bailes de Nova York. Vencedor do Teddy Award do Festival de Berlim e do prêmio de Júri no Sundance Festival, o filme mostra uma realidade até então apagada da sociedade e invisibilizada na sétima arte – a da comunidade trans e drag negra e latina do Harlem, em uma competição-festa (também um espaço seguro) que premiava sua passabilidade, ou sua capacidade de mimetização, reunida em Houses (casas de afeto e afinidades estéticas).

Os balls focados ali eram “fantasias temporárias”, como explicou Marcel Princess Christian, figura proeminente daquela cena e responsável pelos “Idle Sheets”, livretos explicativos que, com muito shade, documentavam aquele universo até então inatingível para o grande público. A equipe de gravação de “Paris is Burning” aparece exatamente na 9ª edição deste “livro da noite”.

A visão de Livingston – a fotógrafa que virou cineasta depois de ver jovens dançando vogue em uma praça de Nova York – se torna o veículo para o longa-metragem explicativo sobre a ballroom scene. Parte dos encontros com mothers e lendas como Pepper LaBeija, da House of LaBeija, ou Dorian Corey, estão também nos outtakes em DVD, que trazem questões existenciais – como a forma que a política no modelo “família tradicional” de Ronald Reagan, então presidente dos Estados Unidos, afetava aqueles corpos e amores.

Apesar de a versão oficial do filme que estreou nos cinemas dos Estados Unidos há exatos 30, em 13 de março de 1991, explorar o glamour, extravagância, fúria e solidariedade do ballroom, esse material extra mostra o que rolava quando as cortinas se fechavam. No bônus, as protagonistas falam do seu cotidiano de exclusão assolado pela epidemia de HIV/AIDS, a doença proibida, então conhecida como “o câncer gay”.




“A sociedade dita ‘Você faz isso, você faz aquilo’. Mas os gays fazem do seu jeito, sem aprovação. E a sociedade não gosta de ninguém que vai contra as normas. Nos Estados Unidos, supõe-se que somos livres. Mas isso não é verdade, somos até certo grau. Vivemos em um tempo-limite”, profetiza Pepper. 

O legado deste cinema é o da inclusão. Jennie e seu time gravaram a maratona de drag balls nova-iorquina em 1987. A partir do filme e do fenômeno que imprimiu, estas vozes tomam seu espaço de poder e criam um ambiente de alegria como uma resposta ao preconceito que lhes é infligido. As protagonistas do Paris is Burning Ball se transformam em modelos de representação e representatividade coletiva – na ordem “Se você não pode ver, não pode ser”. Falam de corpos (modificados ou não), fluidez identitária, relacionamentos livres. 

O ballroom circuit filmado torna-se um importante documento de afirmação para aquelas queens – e as que vieram depois delas – e também para o Voguing, a batalha de dança retirada da ginástica e das poses das revistas de moda, que elevou esta manifestação ao status de cult. 

Este universo dá vida ainda a um ciclo eterno de apropriação e ressignificação, através de canções como “Vogue”, gravada por Madonna, e “Deep in Vogue’, de Malcolm McLaren, que transformaram estas lutas em versos; do reality “RuPaul’s Drag Race”, uma versão televisiva das disputas que aconteciam nos clubs; de “Pose”, a antologia fictícia de Ryan Murphy, Steven Canals, Janet Mock e Brad Falchuk que faz alusão direta a “Paris is Burning”; ou “Legendary”, reality show de competição que transforma as passarelas em um desfile nas telas da HBO Max. 

No baile, você pode ser o que quiser e viver a vida que deveria viver fora dali. 

“Aqueles que não me aceitam – é porque eles se recusam a me ver. Eles não me entendem”, diz Venux Xtravaganza, Legendary Children da House of Xtravaganza assassinada durante as filmagens.

ADEMIR CORREA_colaborador

Ademir Correa é autor do livro “Cinema Queerité” (Paco Editorial), uma análise sobre o fenômeno ballroom e seus diálogos com o New Queer Cinema e a Teoria Queer.

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