23 abr 2024

“TODAS AS DRAGS QUE TÃO AÍ JÁ OUVIRAM FALAR NA MÁRCIA PANTERA”

INDISSOCIÁVEL DO MOVIMENTO LGBTI+ BRASILEIRO E DA CULTURA DRAG, O ÍCONE REVISA O LEGADO DOS SEUS 33 ANOS DE CARREIRA E NÃO DÁ SINAIS DE QUE PRETENDE PARAR TÃO CEDO

por JOÃO KER

Quando encontro Carlos Márcio José da Silva às 17h de um domingo, ele está usando um conjunto esportivo com as iniciais da Louis Vuitton estampadas de cima a baixo, sneaker e óculos escuros enquanto mandava um áudio por Whatsapp. Ali, em frente à entrada do restaurante Jacarandá, em Pinheiros, ele trabalha à tarde como door (agora, gerente de atendimento) há cerca de um mês. Às 20h30, entretanto, Márcia Pantera sobe ao palco do bar Raiz, no subsolo, pronta para entreter o público da casa com um show que imortaliza seu nome na cena LGBTI+ do País há 33 anos.

A primeira vez que Márcio se apresentou para si e para o mundo como Márcia foi aos 17 anos, em um concurso na lendária boate Nostro Mondo, em São Paulo, onde foi incentivado a participar pela amiga e musa inspiradora Chayenne Crack Crack. Foi naquela mesma noite que ele também viu dois homens se beijando e entrou para o “mundo GLS” (“Um ambiente que já era meu, mas eu não conhecia e nem imaginava que existia”).

O termo drag queen, até então, sequer era utilizado pelas próprias, que se apresentavam em cartazes e no palco como transformistas. “Naquela época, eu era um homem do esporte chegando nesse mundo. Então, tudo o que eu vi era maravilhoso. Mas você só percebe isso quando os anos vão se passando. Só depois você vai perceber que o nosso meio não é tão fácil como a gente acha e nem tudo é esse vislumbre”, comenta Pantera, com tom de quem sabe bem do que tá falando.

Márcio já se entendia como gay (ou “diferente”) desde os 13 anos, quando ainda morava em Suzano, no interior paulista, e foi beijado por uma menina do colégio. Sua primeira impressão foi soltar um “Ai, você melou toda a minha boca!”.

“Eu me conhecia como ‘diferente’ porque escutava na rua. Mas quando você é jovem não sabe essa pegada toda de ‘viado! bicha! pederasta!’. Do que eu escutava na maldade da boca deles, eu sabia que não era legal. Mas eu não estava preocupado porque, pra mim, eu era o Márcio”, lembra.




Foto: Victor Takayama (@sp.cinzeiro)

“Se eu olhar pra trás e ficar preocupado com toda a maldade que falavam… Primeiro, era viado. Depois, negro viado. ‘Como pode um negão desse ser viado?'”, conta. “Posso te falar? Nada disso me deixou triste.”

Nos anos seguintes, ele começou a brilhar nas quadras de vôlei como um ponta excepcional, disputando com o irmão e “um grupo de bichas” os campeonatos municipais e regionais. “A gente nunca precisou contar um pro outro, já era entendido”, explica. Apesar de ter se deixado engolir pelo esporte e dizer que o vôlei “ajudou muito” a sua vida, sua história ali não foi adiante.

“Dentro do vôlei, não foi nada fácil”, lembra. “Fui fazer testes em equipes maravilhosas, e o que eu escutei dos treinadores era ‘infelizmente, não tem lugar pra você’. E eu não sabia se era pelo tom da minha pele ou pelo fato de eu ser gay.”




Foto: Victor Takayama (@sp.cinzeiro)

Mãe do bate-cabelo

Com a carreira nas quadras interrompida, Márcio se voltou para os palcos, onde cravou seu nome nas estruturas, no som e na criação de uma nova linguagem: o bate-cabelo, movimento inspirado nos metaleiros do rock que ganhou vida própria no imaginário drag e hoje é sinônimo de qualidade, entrega e comprometimento em qualquer performance de lip synch que se preze.

Márcio conta que o movimento foi nascendo aos poucos, com uma aparição aqui e outra ali nos shows que fazia, até que o estilista e amigo pessoal Alexandre Herchcovitch sugeriu que o artista investisse ainda mais no truque. A primeira vez que ela fez, entretanto, foi inspirada por um erro enquanto apresentava uma música de Michael Jackson.

“As pessoas achavam que [o cabelo] ia cair, que era peruca. Daí joguei a trança pra frente e, no momento que eu fazia [esse movimento], estalei um chicote. O [Alexandre] Herchcovitch viu e falou que era maravilhoso, que eu precisava fazer de novo”, lembra.

“Não foi uma criação só minha, tinha muita gente me ajudando. Mas só tinha eu fazendo esse movimento.”

Replicado na época e hoje, dos inferninhos na Lapa aos episódios de RuPaul’s Drag Race, o bate-cabelo se tornou um ramo à parte dentro da arte drag. E apesar de todo os louros, Márcia não gosta de se definir apenas por ele. “Não sou Márcia Pantera só porque eu bato cabelo, mas também porque pulo no público, entro de moto, subo nas estruturas, tomo banho de cerveja, já apareci em revistas, em desfiles…”, cita, elencando apenas alguns dos feitos pioneiros conquistados na Vogue, na Elle ou ao lado de profissionais como o próprio Herchcovitch e Celso Kamura.

Foto: Victor Takayama (@sp.cinzeiro)

Pantera ferida

Desde 2017, Márcio viaja anualmente para temporadas de apresentação na Alemanha. Foi em um aeroporto de Munique, inclusive, que ele já se deu conta de que devia levar o coronavírus a sério. Quando desembarcou no Brasil, em março de 2020, entrou em isolamento e esperou a poeira baixar.

“O que eu mais entendi de tudo isso foi como faltou o apoio que a gente precisava dos governos, de explicarem direito o que estava acontecendo. Infelizmente, nossa vida tá na mão deles. Tive amigas vendendo roupa, coisa de dentro de casa. Mas o que é isso perto da sua saúde?”, questiona.

Márcio tem motivos de sobra para valorizar a saúde e entender que este sim é o bem mais precioso que podemos pedir, especialmente em meio a uma pandemia. No início dos anos 2000, ele se viu descendo por uma espiral de vício em drogas que o emagreceu 30 quilos e o fez vender grande parte do seu acervo de figurinos, maquiagens e perucas até os pratos, talheres e armários de casa. Nem quando perdeu a mãe e a avó, “suas maiores guerreiras”, conseguiu largar o padê.

“Caí, me fodi de verde e amarelo, perdi muita coisa e as pessoas mais importantes da minha vida. Naquele momento, eu tinha uma droga que me aliviava da dor. Elas morreram, eu chorei e no outro dia tava lá cheirando pra me aliviar”, lembra. “Se eu tava triste, tava drogada; se tava feliz, tava drogada. Foi uma das fases mais difíceis da minha vida, mas graças a Deus, dei essa volta por cima.”




Foto: Victor Takayama (@sp.cinzeiro)

Ele percebeu que precisava de ajuda quando saiu de casa carregando uma geladeira nas costas para trocar o eletrodoméstico em dinheiro para a cocaína. Por volta da mesma época, sua irmã, que mora em Portugal, disse que só voltaria ao Brasil para enterrá-lo.

“Esse vício entrou na minha vida porque alguém me trouxe de uma maneira tão gentil que não tinha como eu falar não. Um amigo me ofereceu um copo, uma carreira… ‘Olha bicha, que maravilhoso, uma champanhe, cheira pra ficar linda’. Foi assim que eu caí”, conta, ciente de que seu depoimento e sua experiência podem ajudar outras pessoas passando pela mesma luta.

“Me matei de todos os lados. Mas decidi ser o Márcio guerreiro e colocar a Márcia onde ela sempre teve que estar.”

Renascimento




Com a mesma força que Márcio pariu Márcia Pantera em menos de uma semana, o artista deu a volta por cima e, nos últimos anos, continua mostrando porque seu nome merece estar assinado no topo das páginas da história LGBTI+ brasileira. Tem lotado shows nas noites paulista, carioca e alemã, voltou a estampar as páginas da Vogue e tem visto sua presença online crescer, ao mesmo tempo em que uma nova geração de fãs e de “filhas” entra em contato com seu trabalho.

“Preciso tomar cuidado com as coisas que eu falo, porque não quero machucar ninguém e cada um tem seus sonhos. Não posso decepcionar uma drag novinha que tá lá, se inspirando na Márcia Pantera. Mas vou falar uma coisa simples e claramente: eu tenho um talento gigante para estar no palco e ser influente”, comenta, quando perguntado sobre a nova geração de drags e se vê o impacto que deixou em basicamente todas.

“Hoje, prefiro estar no palco e fazer o que amo. Eu sei que tudo mudou e preciso me adequar à internet. Mas eu não quero ficar fazendo comparação. São décadas, eu não posso olhar pra trás e diminuir alguma menina”, completa, antes de afirmar: “As drags que tão aí, todas elas já escutaram falar em Márcia Pantera. Pode ter certeza disso. Então, se tiverem um pouquinho de amor, gentileza e carinho…”.

Durante uma live patrocinada no último fim de semana do Mês do Orgulho de 2021, Márcia Pantera apareceu batendo cabelo, dando cambalhota, rodando e dominando uma plateia que, mesmo à distância, sentia o impacto de sua força. Antes de sair, declarou: “Quero ser homenageada aqui, agora, em vida.” E ela merece.

Foto: Victor Takayama (@sp.cinzeiro)

JOÃO KER

Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou por empresas como Canal Futura, Jornal do Brasil, Sony, Yahoo e The Intercept, antes de lançar a Híbrida. É também repórter do jornal O Estado de S. Paulo.

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