09 maio 2024
Uma diva chamada João Carlos Castanha (Foto: Theo Tajes | Híbrida)

UMA DIVA CHAMADA CASTANHA

AOS 63 ANOS E COM MAIS DE 40 PEÇAS NO CURRÍCULO, JOÃO CARLOS CASTANHA RELEMBRA OS MUITOS DESTAQUES DA SUA CARREIRA, DO TEATRO À CENA NOTURNA DE PORTO ALEGRE

por CLAUDIA TAJES E THEO TAJES

João Carlos Castanha, 63 anos recém completados em janeiro, mora sozinho em Porto Alegre. Depois da morte da mãe, Celina, foi obrigado a doar seus dois cachorros para amigos, eles que não se acostumaram com a casa agora vazia enquanto seu tutor saía para trabalhar. Tem uma irmã que mora na Suíça. Porto-alegrense, ator de teatro e cinema, com mais de 40 peças encenadas e a sua vida contada no premiado documentário Castanha, o Filme, ele se apresenta há 40 anos na mesma boate gay. Lá, no palco ou diante das câmeras, tem um tipo de atuação totalmente única, o palhaço, a diva e a louca ocupando o mesmo corpo.

Em 2019, Castanha teve um enfisema pulmonar que o fez aposentar o cigarro, companheiro de décadas, mas que não diminuiu o seu ritmo. O próximo projeto em parceria com um amigo da vida inteira, o diretor de teatro Zé Adão Barbosa, é uma peça sobre um vampiro de 400 anos que viu o mundo passar diante dos seus olhos. Castanha é culto, cheio de histórias, leve e denso, engraçado e dramático como convém a um grande ator. Ele conversou com a Híbrida em uma tarde quente de feriado em Porto Alegre. Ao final da sessão de fotos, tirou a maquiagem e tomou o rumo da boate. Se fosse necessária apenas uma palavra para defini-lo, só poderia ser uma: divina.

HÍBRIDA: Como você se interessou pela arte?

Castanha: Minha mãe trabalhava em uma distribuidora de filmes, tinha muitas delas em Porto Alegre, United Arts, Art Filmes, todas no centro, na rua Riachuelo. Vinham os rolos de filme do interior, arrebentados, aí minha mãe colocava o rolo em uma máquina, cortava os pedaços estragados e colava com acetona para o filme ir para outra cidade. Eu ia junto com ela e pegava esses pedaços, eu tinha um rolo enorme só de sobras de filmes. Lembrei disso quando vi Cinema Paradiso. Eu tinha uns dez anos e ganhava todos os cartazes de filme. 

H: E você costumava ir ao cinema nessa época?

C: O primeiro filme que eu vi foi Tati, a Garota, do Bruno Barreto. Me apaixonei. Eu pensava, se eu morasse no Rio, estaria nesse filme. Eu morava ao lado de um cinema, mas não podia entrar porque era menor de idade. Ficava desesperado, os filmes eram todos para maiores de 14 anos. Aí minha mãe começou a trabalhar de noite, eu fiquei amigo do pessoal do cinema e passei a entrar mesmo em filme proibido. Eu ficava na cabine do projetista. Vi Toda Nudez Será Castigada aos 11 anos. Na época o Juizado de Menores passava pela rua numa Variant preta tirando menor da rua, era igual a carrocinha de cachorro (risos). Eu via a Variant preta e morria de medo, entrava em casa correndo, parecia um criminoso. Imagina se me pegassem na rua às dez da noite. 

H: Sua mãe sempre te estimulou?

C: Sempre, sempre. Uma vez a Bibi Ferreira veio pra Porto Alegre fazer Gota d’Água e foi no Jornal do Almoço pedir figuração. Eles precisavam de gente com cara de pobre pra ficar subindo e descendo escada. Eu disse, mãe, vamos (risos)! Eu nem fazia teatro ainda. A mãe, coitada, foi, ficou um mês trabalhando com a Bibi Ferreira, subindo e descendo escada, a peça demorava duas horas e pouco e a mãe subindo de mãos dadas com umas crianças, na época podia ter criança em cena, a mãe trabalhou de quarta a domingo. No último dia, terminou no domingo a peça, marcaram pra todo mundo ir lá na terça-feira pra receber. A Bibi Ferreira foi embora um dia antes e não pagou ninguém! Deram um golpe na minha mãe e em todos os figurantes! Depois me falaram que a Bibi e o Procópio Ferreira eram ruins de negócio (risos). No dia em que a Bibi Ferreira morreu, a minha mãe já tinha falecido, eu fiz um post: mãe, olha só quem tá chegando. Cobra ela! (risos)

H: Quando o teatro entrou na sua vida?

C: Em 1979. Eu tinha 18 anos e trabalhava como office boy em uma loja de tecidos na rua Voluntários da Pátria. Meu salário ia em todo em cinema e em discos, eu tinha um amigo que vendia discos usados e separava pra mim as trilhas sonoras e os discos do David Bowie e da Elis Regina. Um dia, vi um anúncio do Oi Nois Aqui Traveiz (NR: mítico grupo de teatro experimental de Porto Alegre) procurando pessoas interessadas em trabalhar em teatro, não precisava ter experiência. Peguei aquele pedaço de jornal e fui. O teatro era ao lado de uma sauna, em um prédio todo pintado com uns camundongos, parecia uma obra de Bosch, aquelas coisas surrealistas. Eu entrei e imaginava que ia encontrar o teatro que eu via nas fotos, um lugar com palco, cadeiras. Veio o Paulo Flores (NR: um dos fundadores do Oi Nois Aqui Traveiz) me receber com aquele cabelo imenso dele – ele era novinho, o cabelo todo encaracolado. Tinha uma gurizada ali, todo mundo de 16, 17 anos. Eu ficava olhando lá para o fundo, tinha uma luz branca, eu pensava, o palco deve ser lá. Que nada, era tudo ali, palco e plateia.

H: E a estreia?

C: Isso foi em uma segunda-feira. Já na quarta tinha uma apresentação na Assembleia Legislativa, uma mostra de teatro no auge da ditadura. Eu já fazendo parte do grupo, a gente foi. Era uma peça do Julio Zanotta Vieira (NR: autor e fundador do Oi Nois Aqui Traveiz), A Divina Proporção e A Felicidade Não Esperneia Patati-Patatá. Os que recém tinham entrado, os novinhos, tipo eu, ficavam se rolando, pelados, pelos corredores da Assembleia (a peça era nos corredores, não era no palco). No palco, ficavam os seguranças, com aquelas caras de DOPs, atrás deles um escrito na parede: “É preciso não dar de comer aos urubus”, uma frase do Torquato Neto. Isso tudo foi às cinco da tarde e os colégios pensaram que era peça infantil, levaram uma criançada de sete, oito anos e a gente lá, pelados, se rolando e gritando pelos corredores. Minha irmã foi assistir, ela estava grávida na época, quase perdeu o filho com aquele monte de cara sacudindo o pinto (risos). A minha mãe não achou o menor problema.

H: Depois disso, você não saiu mais do palco…

C: Aí eu fiquei de vez no Oi Nois. Trabalhei como ator em A Bicicleta do Condenado, do Fernando Arrabal, e ajudei na técnica de outras. O grupo teve que entregar o prédio e o Julio Zanotta criou o Teatro Um. Eu fui com ele e trabalhei na técnica de uma peça, Café, do Oswald de Andrade. Daí o Zanotta ficou com pena de mim, eu tinha largado o serviço e passava o dia inteiro dedicado lá. Ele quis montar uma peça infantil pra mim, pegou um texto horrível e convidou o Julio Saraiva, diretor que já faleceu. O Saraiva se recusou e sugeriu montar Rango, do Edgar Vasques (NR: o mais faminto personagem dos quadrinhos, inicialmente publicado em tiras de jornal e que deu origem a vários livros). Só que virou uma peça adulta e fez um sucesso estrondoso, a gente ficou dois anos viajando pelo Brasil inteiro. Aí eu quis fazer A Mãe, uma peça escrita e dirigida por mim. Imagina a audácia! Eu, com 20 anos, em 1981, e pensei que tinha que fazer alguma coisa pra ficar conhecido, senão ninguém iria. No dia anterior à estreia tinha a entrega do Prêmio Açorianos (NR: prêmio de teatro da prefeitura de POA) e o prefeito, o Guilherme Villela, do Arena, estaria presente. Na época tinha uma campanha de publicidade bem falsa que dizia “Venha morar em Porto Alegre, o melhor lugar do mundo”. Quando chamaram o Melhor Ator, eu fui antes e subi ao palco montado (uma amiga me emprestou as roupas). Eu novinho, linda, com uma dúzia de rosas que custaram todo o meu dinheiro. Eu subi e falei, “Para tudo, o melhor ator é o Prefeito de Porto Alegre”. O Villela sentado na primeira fila, pasmo, mas mesmo assim ele subiu ao palco, educadíssimo, e quando chegou do meu lado eu agarrei e dei um beijo na boca dele (risos). Fiquei conhecido.

H: E aí a carreira deslanchou…

C: Depois eu montei Guernica, do Fernando Arrabal, que eu considero o meu melhor fracasso. A peça era linda e foi um fracasso de público. Depois eu entrei no (grupo) Balaio de Gatos, com a atriz Patsy Cecato, e montei A Rainha do Rádio, do José Safiotti Filho, sobre uma radialista que é demitida depois de 25 anos de trabalho, invade a rádio e bota todos os podres da cidade para fora. Em São Paulo, era a Cleide Yásconis que fazia e lá ela chamou a família dos poderosos da peça de família Maluf.  Em Porto Alegre, não fazia sentido, aí eu usei o nome da família Sirotsky (NR: donos do maior jornal de Porto Alegre, a Zero hora, e da emissora afiliada da Globo no estado, a RBS). Foi um Deus nos acuda, fui banido, fiquei um ano proibido de  aparecer na RBS. Montei O Menino Maluquinho e não saiu uma linha na Zero Hora. Aí eu fui apresentar A Rainha do Rádio em Gramado, na serra gaúcha, e botei o nome da família mais poderosa de lá. Fui expulso da cidade, saí escoltando por uma amiga, a Tânia Carvalho, senão ia ser morto. O mais engraçado é que nada foi planejado,  só foi acontecendo (risos).

H: Você causava muito antes do verbo causar servir para isso…

C: (Risos) Depois eu fiz Aurora da Minha Vida, com a Irene Brietzke (NR: diretora de teatro falecida em 2021), um sucesso, mas larguei pra fazer meu primeiro filme. O diretor, Lauro Escorel, veio pra Porto Alegre e queria todo o elenco de apoio com atores de teatro, ele levou todo o elenco da Aurora. Eu fazia o apoio do Carlos Alberto Ricelli, fiquei três meses filmando, foi maravilhoso. Depois fiz curtas do (diretor) Carlos Gerbase, o longa do (ator e diretor) Werner Schunemann, O Mentiroso. E não parei nunca mais. Montei Até o Fim com o Zé Adão Barbosa, uma peça belíssima sobre um homem doente que só tem uma enfermeira para interagir com ele. Teve muitas outras peças, O Bordel das Irmãs Metralhas, que ficou sete anos em cartaz. Escola de Sereias, em que a gente recriava trechos de filmes famosos, nossa, teve muita coisa.

H: E a sua história na noite?

C: Eu entrei na noite e aprendi a improvisar. A noite é uma escola, tu fala com um público hoje e amanhã é outro público, tem que ser outro show. É tudo inventado na hora, não é stand up, que tu decora um texto e a piada é sempre a mesma. As gays novinhas de hoje em dia são todas filhas da RuPaul, elas acham que antes da RuPaul não existia nada, que a Pablo Vittar é o auge do moderno. Gente, não era só mato antigamente (risos)! Existia a Divine (NR: drag queen norte-americada, falecida em 1988). Eu sempre falo, assistam a um documentário da Netflix, Revelação, que mostra a história das transformistas, das travestis desde a época do cinema mudo. 

H: E os teus personagens?

C: Eu tenho uma personagem, Maria Helena Castanha, que tem um curta. Um diretor de Goiás, o Cristiano Souza, viu meu filme, gostou e a gente começou a conversar. Casualmente eu fui para o Gay Festival, no Rio de Janeiro, ele foi com os curtas dele, levou câmera e em um dia e meio que a gente estava lá, fizemos um curta em Laranjeiras: Maria Helena, A Mulher de Todos. Ganhei Melhor Ator no Festival Mix Brasil com ele. Eu sou assim, têm câmera, vamos fazer. Tem ideia? Vamos fazer. Eu conheci o Davi Pretto, diretor de Castanha, o Filme, na PUC. Os alunos de cinema chamam os atores pra fazer os filmes da graduação, eu conheci os guris e eles quiseram fazer um filme sobre a minha vida, a minha carreira. Outro filme que eu fiz assim, com o pessoal das faculdades de cinema, foi O Viúvo, um filme maravilhoso do Luis Carlos Wolf.

H: Castanha, o Filme te fez viajar para vários festivais, ganhou muitos prêmios e marcou de vez o teu lugar, né?

C: Quando eu comecei a trabalhar na noite, as pessoas me tratavam meio na piada, “ela é bichinha de boate”, esse preconceito que tem. Aí o Davi Pretto, que é hetero, conheceu o meu trabalho, quis saber de mim e disseram a ele que eu era ator de teatro e também me apresentava em boate gay. Aí o Davi ficou com isso na cabeça e dali a um ano me ligou dizendo que queria fazer um filme sobre a minha vida. Eu achei que era brincadeira, mas ele foi lá em casa, conheceu a minha mãe, falou do projeto. Passou mais um ano, ele ganhou um edital e me disse que estava com o roteiro pronto. E foram vinte dias filmando na minha casa. O pessoal do teatro, que me via como piada, começou assim, “ah, o Castanha, o filme do Castanha”. E eu disse, gente, eu não mudei em nada, vocês é que estão diferentes (risos). Fui pra Berlim, que o filme concorreu em Berlim, ganhamos o Festival do Rio, fui o melhor ator em Las Palmas, prêmio em Buenos Aires, um monte de festivais. Aí a casa deles caiu (risos).

CLAUDIA TAJES

Claudia Tajes é escritora, roteirista e colunista. Atualmente trabalha e mora no Rio de Janeiro. Junto com Theo, seu filho, forma uma dupla que faz filmes e entrevistas por aí.

THEO TAJES

THEO TAJES

Theo Tajes é fotógrafo, roteirista e diretor de cena. Além de expôr individualmente, participa de mostras coletivas, a mais recente em Bologna. Tem diversos curtas e clipes realizados.