09 maio 2024

por JOÃO KER

Quando a drag queen carioca Organzza venceu em novembro do ano passado a primeira edição brasileira de RuPaul’s Drag Race, o reality show de competição mais premiado na história da TV ocidental, ela automaticamente entrou para a história, quer você queira ou não. Criada na Zona Norte do Rio de Janeiro e há tempos considerada referência na cena queer da capital fluminense, a artista de 31 anos finalmente colheu os louros de um trabalho iniciado há décadas, mesmo que ela não soubesse ainda. O que não previa, entretanto, era a onda desumana e cruel de ódio e racismo que recebeu antes mesmo de ser coroada Rainha também de um público que tentou e tentou, mas não conseguiu derrubar sua coroa.

Foto: Veve Milk. Beleza: Gui Mauad. Produção: João Ker e Lívia Muniz. Styling: Organzza. Agradecimentos: Camarote Folia Tropical




“Não parece que é real, porque tem uma semana só, mas já aconteceu tanta coisa”, diz Organzza durante uma chamada de vídeo com a Híbrida, ainda em novembro do ano passado, poucos dias depois de sua vitória no programa. Na ocasião, ela estava em Salvador, onde escolheu ter sua “comemoração pessoal” no festival Afropunk, que reúne alguns dos maiores artistas pretos de todo o mundo. 

O descanso era merecido e veio depois de uma rotina intensa e exaustiva que começou com a gravação na Colômbia e culminou nas semanas finais da disputa, quando Organzza foi do Rio a São Paulo para acompanhar a final e descobrir que seria coroada. “Eu não tinha certeza de nada, porque o programa é muito imprevisível. A gente já viu, várias vezes, a pessoa que tem o maior número de vitórias não levar a coroa. Então, isso não quer dizer nada”, admite sobre o nervosismo dos momentos finais.

Ao longo de sua trajetória no programa, Organzza acumulou mais vitórias do que qualquer outra participante, vencendo três dos dez desafios principais propostos, incluindo os dois primeiros e o último antes da final. “Isso, em nenhum momento, me deu certeza de que a coroa seria minha”, diz. “Eu tinha certeza do meu propósito, do que eu fiz, do que viram que eu fiz e do que talvez não caiba em uma hora de episódio. Mas eu tenho certeza do que entreguei nessa competição. Essa era a minha única certeza.”

Produzido pela World of Wonder, RuPaul’ Drag Race Brasil começou a ser exibida em agosto do ano passado, pouco mais de um ano após o anúncio oficial de que a nossa edição existiria de fato. As 12 participantes escaladas para a disputa vieram de todos os cantos do Brasil, com níveis variados de experiência e reconhecimento entre suas colegas e o público. Mas apesar de ser um pedido antigo do público, a resposta que o programa teve foi maior e, em algumas partes, pior do que a maioria poderia prever. 

Foto: Veve Milk. Beleza: Gui Mauad. Produção: João Ker e Lívia Muniz. Styling: Organzza. Agradecimentos: Camarote Folia Tropical

TIRO AO ALVO E TORCIDA ORGANIZADA

Exibido pela primeira vez em 2009, RuPaul’s Drag Race se tornou um fenômeno tão impactante e tão rentável que nos 25 anos que se seguiram fica até difícil saber quantas temporadas, spinoffs e edições internacionais já rendeu até aqui (a lista cresce praticamente todos os meses). Aos 63 anos, RuPaul Charles, a drag queen pioneira e grande mente por trás do formato, se tornou nesse meio tempo a apresentadora de reality show mais premiada da TV americana. 

Mas troféus, cifras, público e versões não chegam a dar a dimensão do impacto cultural que o programa teve sobre a comunidade LGBTQIA+ não só dos Estados Unidos, mas do mundo. Gerações inteiras de drag queens creditam RPDR como a inspiração inicial e principal que tiveram para se aventurar pela arte secular, ao mesmo tempo em que a carreira de grande maioria das participantes sofreu uma alavancada que lhes rende contratos, convites e visibilidade anos após disputarem a coroa e mesmo que não tenham sequer chegado a final. 

Por isso, não é incomum ver quem compare RPDR a uma espécie de “futebol dos LGBTs”, que lota bares durante as transmissões, divide o público entre favoritos de uma ou outra participante e tem resultados que geram discussões acaloradas na internet e fora dela. Mas todo o fervor dessa paixão acabou extrapolando os níveis da sensatez quando o programa chegou ao Brasil e muitos dos fãs decidiram que Organzza seria o alvo preferido das críticas e campanhas de ódio online. 

“Desde sempre foi essa coisa. Os ataques começaram antes sequer de eu começar a gravar. Nunca falei sobre isso porque eu não queria que isso fosse pautado como minha experiência no programa. Mas quando saiu o primeiro rumor sobre minha participação, eu estava em casa me arrumando para viajar e comentavam ‘eu não quero uma pessoa como ela’”, lembra Organzza. “O que significa isso, ‘como ela’?”

Foto: Veve Milk. Beleza: Gui Mauad. Produção: João Ker e Lívia Muniz. Styling: Organzza. Agradecimentos: Camarote Folia Tropical




A artista se refere a um teor nada subliminar de ofensas racistas e classistas que sofreu de parte do público porque, em suas palavras, “Não sou o Rio de Janeiro que as pessoas querem ver”. Preta e periférica, Organzza fez questão de, em todos os desafios do programa, exaltar suas origens e cultura popular, fosse na costura dos seus looks ou na forma como se portava e falava da própria história, com referências a favelas, escolas de samba, funk etc.  

“A gente precisa deixar marcado aqui que existem outras pessoas levantando pautas raciais no programa. Mas existe um ponto de eu ser uma pessoa preta fazendo uma drag preta que fala que é preta. Além disso, sou favelada, suburbana, falando sobre isso, tendo orgulho disso e vestindo isso. E não é isso que o Brasil quer ver”, diz. 

Os ataques saíram da esfera online e chegaram à vida real durante uma transmissão do programa no Rio, onde Organzza foi hostilizada por fãs de outra participante. A situação saiu tanto de controle que chegou a atingir até seu círculos de amigas próximas e sua própria mãe. 

“Um dia ela me ligou chorando e perguntando se eu estava bem, porque ela estava preocupada comigo”, lembra a artista, emocionada. “Minha família acompanha tudo o que eu faço, desde antes de eu fazer drag. Pra eles, já existe uma certa naturalidade de estar acompanhando o meu trabalho, mas de fato foi uma loucura esse programa, porque obviamente teve uma proporção maior do que qualquer outra coisa que eu já tinha feito. E também tem um alívio por ter acabado, porque foram momentos de muita ansiedade e preocupação.”

Uma das principais críticas contra Organzza era sobre a forma com que ela comunicava diretamente sua opinião, por vezes criticando diretamente o desempenho das outras participantes, algo que na linguagem televisiva dos reality shows é mais que suficiente para posicionar uma pessoa como “a vilã”. “Muitas pessoas me chamaram de arrogante e que eu não sou humilde. Eu fui lá, sim, competir e com uma vontade enorme de ganhar essa coroa. Como todas as pessoas que estavam ali e todas as pessoas que já participaram de outras franquias. E isso eu não escondi. Mas, na verdade, o que querem de mim é a subserviência – e isso eu não vou dar.”

“‘Como assim ela ousa ter voz? Ela ousa falar, ela questiona? Como assim ela diz que está quebrando as regras do jogo? Ela não pode fazer isso, mas eu posso passar uma temporada inteira falando de outras pessoas’”, diz Organzza, ecoando as críticas que ouviu. “Isso está na raiz do problema. Não é a primeira vez que uma queen preta passa por isso. Não é uma narrativa minha, porque infelizmente já foi feita por muitas outras. Isso é um sintoma do nosso país, do nosso planeta, da nossa história enquanto sociedade.” 

Foto: Veve Milk. Beleza: Gui Mauad. Produção: João Ker e Lívia Muniz. Styling: Organzza. Agradecimentos: Camarote Folia Tropical

RAINHA DA MODA, DA NOITE E DO CARNAVAL

Apesar de terem pesado sua saúde mental e feito parte de sua trajetória, os ataques não definem a história de Organzza durante, antes ou depois do programa, principalmente porque a artista não é nem era nenhuma estranha a competições. No Rio, ela participou dos principais concursos de drag queens que ainda existem na cidade, do TV Bar ao Teatro Rival, vencendo a grande maioria deles. 

“Acredito que a forma como eu penso narrativamente minhas performances é um diferencial. A ideia de presença e força cênica me destaca quando estou em drag, disse à Híbrida ainda em 2020, quando ganhou o The Queen, no Teatro Rival.

Nesse sentido, Organzza chegou ao “work room” do reality com os dois pés na porta e uma vantagem dificilmente equiparável. Quando entrou, seu nome já era reconhecido na cena LGBTQIA+ carioca, tanto pelos concursos que tinha ganhado como pelas performances constantes em festas como a V de Viadão, onde se tornou uma espécie de atração fixa desde 2018 – época em que começou a se montar.

Organzza iniciou seu primeiro contato com a arte ainda na infância, quando o pequeno Vinícius Andrade estudou e se dedicou ao teatro e à dança, habilidades que lhe ajudaram a se desenvolver nos palcos do Rio e, mais tarde, nas trincheiras do RPDR. Outro talento que veio a calhar foi  a experiência na confecção de roupas, paixão que herdou desde cedo da avó, uma costureira de mão cheia que lhe ensinou o poder transformador das roupas.

“Tenho certeza que essa relação com performance, público e as competições que eu participei, além da minha relação com o teatro e a dança, tudo isso me preparou e me deu bagagem para a competição”, diz a artista.  

Mas é o carnaval carioca que Organzza credita como a sua maior referência estética. A entrevista e as fotos que você lê e vê (ou melhor, admira) nesta página são frutos de uma negociação que durou de quase quatro meses. Em partes, pela dificuldade de produção para uma publicação independente; mas também porque a sua agenda lotou depois que ela foi coroada e se tornou uma das artistas mais disputadas na cena drag do Brasil. 

Mesmo atarefada e “com demanda”, a artista faz questão de manter o controle criativo da sua imagem. Os três looks usados neste ensaio foram pensados, desenhados e construídos por ela, após a equipe ter decidido que as imagens iriam explorar exatamente essa relação com o carnaval e os cliques seriam feitos no Sambódromo, o maior símbolo dessa festa e reconhecido em todo o mundo. 

O fato de Organzza ter posado em frente à Apoteose, que celebra seus 40 anos de história em 2024, é exatamente pelo resgate que o local significa para sua própria história, como ela mesma explica: “A primeira vez que comecei a entender minha paixão, não exatamente pela moda, mas para uma ideia de vestimenta, é porque sempre tive muita relação com o carnaval – o ato de se fantasiar sempre foi algo forte na minha família”.

“O primeiro carnaval de que tenho memória foi quando minha mãe fez um bate-bola com uma cortina. A gente não tinha dinheiro, então trabalhávamos com o que hoje é chamado de upcycle – algo muito bonito e lindo no mundo da moda, mas que não era tão bem aceito assim na época”, lembra, detalhando também a relação com a avó, que morreu quando a artista tinha apenas 9 anos. “Ela costurava pra fora, então ela fazia muitas coisas de retalho. Daí que vem o meu trabalho com os retalhos de organza, é uma inspiração do que minha avó fazia.” 

 

“Não sou militante. Eu vivo isso”

Quando Organzza saiu vitoriosa da primeira temporada de RuPaul’s Drag Race Brasil, o resultado ficou longe de ter uma aceitação unânime entre o público mais fervoroso do programa, o que a essa altura já é até uma tradição. Mas ao longo dos meses de exibição, a situação escalou na metade da temporada e atingiu seu ápice nas semanas finais, quando os ataques foram discretamente validados por outra participante. Entre indiretas, textões, threads, vídeos e mais ataques, a carioca foi acusada de ser sorofóbica. De repente, Organzza se viu obrigada a “assumir” que também é soropositiva, algo que nem sua mãe sabia até então. 

“Como pessoa preta, pobre, LGBT+… Eu já tinha muita coisa pra dar conta. Não quis falar sobre isso no programa, porque seria mais uma questão. Também não queria ter falado da maneira como falei, nas redes sociais – acho que deveria ter sido de outra maneira”, conta Organzza. “Mas aquele foi um momento de saturação, que eu não aguentava mais. Foi uma maneira de desabafo também. Mas hoje, isso repercutiu pro bem, porque recebi muitas mensagens de pessoas que se sentiram mais seguras e confortáveis em falar sobre isso; mas também vieram coisas ruins, como pessoas dizendo que eu inventei isso pra ter uma pauta a mais pra me inserir.”

No primeiro dia do Dezembro Vermelho, mês em que a conscientização sobre o HIV, a Aids e outras ISTs é reforçada, Organzza publicou um depoimento em suas redes sociais, no qual falou abertamente sobre o tema. À Híbrida, ela explica que não pretende se tornar uma figura modelo da luta contra o vírus. 

“Não penso em ser um militante das pessoas que vivem com HIV, da mesma forma que não sou militante da causa negra”, afirma. “Eu sou uma pessoa preta, saio de casa assim e volto assim. Não estou falando, estou vivendo. É a mesma coisa com HIV – eu não falo, vivo.”

Foto: Veve Milk. Beleza: Gui Mauad. Produção: João Ker e Lívia Muniz. Styling: Organzza. Agradecimentos: Camarote Folia Tropical

REINADO E LEGADO

Nos últimos meses, Organzza tem postado sobre a alegria e a surpresa positiva de finalmente conseguir tirar férias, curtindo um tempo livre consigo mesma e aproveitando o prêmio de R$ 150 mil. Os ataques, deboches e críticas online continuam, assim como a sua determinação em não se deixar abalar por eles e em pregar categoricamente a valorização da cena drag brasileira e de suas irmãs, dentro e fora do programa. 

No centro dos seus desejos para o futuro, está obviamente o trabalho na moda, algo que também se tornou sua marca registrada ao longo da competição. “Nos meus looks, quis muito trazer a minha ancestralidade e a minha raiz. O meu favorito, que talvez não seja o melhor ou mais impactante, é o das minhas raízes, porque ele diz muito sobre o que eu acredito enquanto moda. É um upcycling, é um trabalho artesanal, é uma peça pintada a mão… Aquelas peças que estou usando são únicas, ninguém vai ter igual”, explica. “E as pessoas não dão o devido valor e acham que é pobre ou simples – mas, com certeza, não é simples.” 

Em 2020, quando falou com a Híbrida pela primeira vez, Organzza confessou o sonho de um dia ter sua própria marca de roupas. “Eu tenho vontade de, em algum tempo, que as pessoas estejam usando uma marca minha”, diz novamente. “Mas não é o que eu estou fazendo hoje, depois do programa. Hoje, estou focado em voltar para uma relação com o palco, espetáculos teatrais e esse lugar que a drag foi colocada no nosso país de shows à noite, em boate…”, conta. 

“É isso, também ocupamos esse lugar da noite, mas não podemos esquecer do nosso viés artístico. A gente faz arte drag, então existem outros espaços que podemos e devemos ocupar – e é isso que pretendo fazer agora.” 




JOÃO KER_editor e produtor

Mineiro de nascença e carioca de alma, João é formado em jornalismo pela UFRJ e já passou por empresas como Canal Futura, Jornal do Brasil, Sony, Yahoo e The Intercept, antes de lançar a Híbrida. É também repórter do jornal O Estado de S. Paulo.

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LÍVIA MUNIZ

LÍVIA MUNIZ_produtora

Niteroiense apaixonada pelo Vasco, Livia é formada em Jornalismo pela UFRJ. Trabalhou como repórter e colunista na Goal Brasil durante quatro anos. É nerd, feminista e sonha ser uma ranger rosa.

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Nathan Ferreira / Antarctica Latão

NATHAN FERREIRA_designer

Aquariano, descobriu sua paixão nas artes visuais pelo trabalho como Social Media, atuando também como pesquisador de conteúdo visual e sonoro.

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VEVE MILK_fotógrafa

Com uma visão além das tendências comerciais, desafio constantemente normas estabelecidas, focando em manifestações artísticas que refletem a diversidade cultural e social do meu cotidiano. Minhas obras destacam-se pela fusão de técnicas variadas, como fotografia, colagem, inteligência artificial, e a mescla de analógico com digital, estabelecendo um diálogo provocativo entre formas tradicionais e contemporâneas de arte. Minha identidade visual é fortemente influenciada pela riqueza da minha herança local e vivências ao longo dos meus 28 anos.

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GUI MAUAD_maquiador

Gui Mauad é performer drag queen, maquiador e designer de fugurino. Confeccionando todos os figurinos, objetos de cena e sua beleza; a arte com Gui começa bem antes de subir no palco. Trabalhando com referências que vão desde sua inspiração pela natureza até complexas histórias mitológicas e por vezes inventadas por ele, cada performance tece um processo completamente diferente dos anteriores. Desenvolvendo um trabalho que tem como objetivo trazer a visualidade que faz a ponte entre a música e o público. Transportando quem a assiste para seu próprio mundo.

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