09 maio 2024

COMO MAIQUE REIS VENCEU A HOMOFOBIA E CHEGOU À SELEÇÃO MASCULINA DE VÔLEI

AOS 25 ANOS, ATLETA LEMBRA COMO SUPEROU A INFÂNCIA DIFÍCIL NO INTERIOR DE MINAS GERAIS PARA SE TORNAR MEDALHISTA MUNDIAL E REFERÊNCIA LGBTQIA+ NO ESPORTE

por LÍVIA MUNIZ




Com apenas 25 anos, Maique Reis já tem uma trajetória que é quase como um conto de fadas moderno. Nascido na pequena Santo Antônio do Amparo, cidade com pouco mais de 18 mil habitantes e a quase 200 quilômetros de Belo Horizonte, no interior de Minas Gerais, o jogador da Seleção Brasileira de Vôlei escreveu – e reescreveu – sua própria história de sucesso dentro e fora das quadras.  

Quando saiu de casa com apenas 15 anos para seguir seu sonho, Maique não imaginava que se tornaria um dos melhores líberos do país em tão pouco tempo. Hoje, ele já é referência no esporte como um dos poucos atletas masculinos abertamente homossexuais do Brasil.  

“A partir do momento que você se identifica com uma orientação sexual diferente e vê que aquilo foge do padrão, você já sabe que vai ser retalhado pela sociedade. Você tem que bater no peito e realmente enfrentar (o preconceito). Nós da comunidade LGBTQIA+ estamos dia após dia buscando não só espaço, mas respeito”, diz em entrevista exclusiva à Híbrida.  

A jornada de herói vivida por Maique começa em um projeto social na sua cidade natal. Quando descobriu que o vôlei do coletivo só aceitava meninas, ele pediu uma autorização especial para jogar e pôde treinar com o time feminino, enquanto já se imaginava jogando por um grande clube. À época com apenas 12 anos, o mineiro já sustentava sonhos de gente grande.  

“Meus pais sempre me apoiaram muito, principalmente minha mãe. Para eles, era quase impossível. Eu falei que enquanto tivesse forças e oportunidades, eu queria tentar. Para mim não era algo impossível. Era um sonho bem distante da minha realidade, claro, mas não via como algo impossível, ao contrário dos meus pais”, conta. 

ACEITAÇÃO EM CASA

A infância de Maique foi como a de muitas crianças brasileiras. Nunca lhe faltou o básico, mas ao mesmo tempo o jovem sempre viu o esforço que os pais faziam no dia a dia para sustentarem ele e seus irmãos. Em várias férias de verão, ele se juntava à mãe, Dorinha, na lavoura de café; e ao pai, Vicente, como pedreiro. Tudo para ajudar nas despesas da família.  

Ter essa vivência difícil também criou um senso de responsabilidade que Maique leva consigo para o esporte. Hoje, ele é um cara maduro que entende a importância do seu exemplo para outros milhares de outros Maiques espalhados pelo Brasil.  

“A forma como fui criado reflete muito em quem sou hoje, dentro da quadra e fora também. Acho que tudo que me tornei vem muito dos meus pais. Tudo que eles precisam, eu não meço esforços (para fazer). Eles fizeram muito por mim, a gente não tinha nada, construímos tudo do zero.  

Eu gosto de falar isso porque sei que tem outros Maiques por aí. Não é para me fazer de coitadinho, é para usar a referência que sou hoje e mostrar para outras pessoas, outras crianças, que precisam de ajuda e acham que não vão ter oportunidade. Acho que tenho o dever de levar isso, a obrigação de incentivar outras pessoas.”  

A relação familiar sempre foi de muito amor e cumplicidade, principalmente com a mãe. No entanto, como também é comum em tantas famílias brasileiras, esse relacionamento ficou abalado pela revelação de sua orientação sexual.  

Desde pequeno, Maique se comportava de forma diferente daquilo que era visto como o padrão para outros meninos. Não gostava de brincar com brinquedos considerados masculinos e preferia a amizade das meninas. Ainda assim, ele só conseguiu se abrir com Dorinha quando já estava morando fora de casa.  

“Certo dia, minha mãe me ligou e perguntou se eu sentia atração por homens. Ela sempre foi muito maravilhosa, sempre me apoiou muito, sempre me incentivou em tudo”, lembra. “No início, foi um choque, por mais que ela já soubesse, que na infância eu já tivesse dado indícios.”

Foi um processo tranquilo, mas doloroso. Não pelo fato de eu ser gay, mas sobre o que a sociedade poderia fazer

“Ela ficou chateada. Acho que foi o processo de absorver a informação de algo que ela já sabia, mas precisava de uma confirmação”, avalia hoje. “O medo da minha mãe era eu não alcançar meus sonhos, não conseguir entrar num grande time por ser gay.” 

Para se abrir com seu pai, esse processo já foi um pouco mais difícil. Como qualquer homem mais velho e criado no interior, Vicente carregava com ele preconceitos entranhados em uma sociedade estruturalmente homofóbica.  

“Ele me ligou e começou a brigar, dizendo que era uma ‘pouca vergonha’. A gente discutiu por celular e foi bem difícil”, conta Maique, afirmando que “nunca discutia” com os pais. “Disse para ele que não precisava mais me considerar como filho, só queria que ele me respeitasse.”  

Assim como Dorinha, o maior medo de Vicente também era a reação que os outros podiam ter em relação ao filho e “do que a cidade poderia falar”. “Num churrasco, puxei o assunto com os amigos dele. Falei que sentia que ele tinha vergonha de mim por ser gay, do que iam falar. E os amigos dele falaram: ‘Não, para a gente você vai ser sempre o Maique. Olha quem você se tornou, a gente te respeita, todo mundo gosta de você, ama você!’”, lembra. A partir daí, ele conta que a relação com o pai finalmente deu uma virada de chave: “Para ele, foi um choque de realidade: ‘Se meus amigos respeitam o Maique, porque eu vou tratar diferente?’”.  

O tempo foi essencial para a relação de Maique com os pais. Hoje, mais do que nunca, o garoto criado entre as lavouras de café no interior de Minas é o maior orgulho da família, que também é formada pelos irmãos Max e Mayara. “Acho que isso selou os nossos laços, tanto com meu pai quanto com minha mãe. Hoje em dia, eles são meus melhores amigos, meus confidentes. A gente vive em completa harmonia.”  




DA LAVOURA PARA AS QUADRAS

No vôlei feminino, várias figuras lésbicas e bissexuais abriram espaço para a comunidade LGBTQIA+ durante décadas: Jackie Silva, Fabi Alvim, Sheila Castro, Carol Gattaz, Gabi Guimarães… A lista é longa. Mas, no masculino, esses personagens são mais escassos.  

A primeira vez que Maique soube de um jogador profissional abertamente foi por causa da homofobia. Em 2011, ainda adolescente, ele acompanhava a Superliga pela televisão. Em um dos jogos do principal campeonato brasileiro, o central Michael Santos foi alvo de insultos da torcida adversária enquanto atuava pelo time do Vôlei Futuro. A cena marcou Maique para sempre.  

“Aquilo me instigou: ‘Será que também vou passar por isso?’. Querendo ou não, a gente sente a dor do outro, porque você se coloca naquele lugar. Michael foi um expoente no cenário masculino do voleibol, uma figura que deu a cara a tapa. Lutou muito e abriu as portas para que o Douglas aparecesse depois e eu chegasse logo em seguida. Ele foi muito pioneiro”, diz Maique.  

Ele se refere a Douglas Souza, ponteiro que foi campeão olímpico em 2016 e que também é abertamente homossexual. Alguns anos mais velho, Douglas ajudou Maique a pavimentar o caminho para a comunidade LGBTQIA+ no vôlei masculino nos últimos anos.  

“Quando cheguei na Seleção, o Douglas foi 100% uma referência para mim. A gente conseguiu dividir esse fardo, mas antes era só ele”, conta. “Ele chegou lá quebrando esse tabu e abrindo as portas para mim e para que outros venham, que vejam como somos atletas e almejamos sonhos como qualquer hétero cis”, esclarece.  

A carreira de Maique no vôlei por pouco não ficou no “quase”. Quando ele se mudou sozinho para Três Corações, também no interior de Minas, o atleta teve a oportunidade de disputar o Campeonato Mineiro e a segunda divisão da Superliga de Vôlei. Mas, quando o time acabou três anos depois, Maique se viu sem rumo. Como não tinha dinheiro para bancar os testes em outras cidades, decidiu que aquele seria seu fim no voleibol.  

Vi o meu sonho passando pelo meio dos meus dedos como se fosse água

“Parei de jogar. Desisti porque não vi mais oportunidade”, lembra ele, narrando um dos períodos mais difíceis de sua carreira até aqui. “Não tinha condições de pagar para fazer uma peneira em Belo Horizonte ou São Paulo. As condições financeiras ainda eram um pouco difíceis em casa. Liguei para minha mãe chorando. Só que eu precisava seguir minha vida.”  

Mesmo desmotivado pelo aparente fim do seu sonho, Maique decidiu dar um novo rumo à sua história. Foi então que ele partiu para o plano B: prestou vestibular para a Universidade Vale do Rio Verde (UninCor), em Três Corações, e começou a cursar Administração.  

Mas ele não imaginava que o Plano A ainda renderia frutos. Poucos meses depois de deixar as quadras, Maique recebeu o chamado daquele que considera seu anjo da guarda. Era Nery Tambeiro, técnico do Minas, convidando Maique para jogar em um dos clubes mais tradicionais do país. Não só isso, mas o clube dos seus sonhos.  

“Eu fui ao céu! Foi uma explosão de emoção, nem sabia como me expressar. Fiquei em choque”, ri, lembrando de como a própria sorte mudou quando tinha 17 anos. “Não esperava que isso acontecesse tão cedo.”

Maique diz que o técnico e o time “moldaram” quem é hoje, profissionalmente e financeiramente. “Agora consigo dar todo o suporte que meus pais precisam, todo o conforto que eles sempre mereceram.”  

De fato, a história de Maique é fortemente ligada ao Itambé Minas. Durante os nove anos que atuou pelo time mineiro, ele foi eleito três vezes o melhor líbero da Superliga Masculina. Mas o atleta não nega que ainda sente falta da cereja do bolo: o título nacional. Nas últimas três temporadas, eles amargaram três vice-campeonatos seguidos.  

“No Minas, me sinto realizado. Consegui realizar quase todos os meus sonhos. Estamos em busca do título da Superliga. Eu queria sair do time com esse gostinho da vitória, de poder retribuir o clube”, confessa. “Pretendo encerrar minha carreira aqui. Se eu não conseguir nessa temporada, espero trazer depois um título brasileiro para o Minas.”

O SONHO DA SELEÇÃO

Toda essa dedicação se deve ao fato que foi graças ao clube de Belo Horizonte que Maique chegou à Seleção Brasileira de Vôlei. Sua trajetória com a Amarelinha é marcada por conquistas, como os dois títulos Sul-americanos, uma Copa do Mundo, uma Liga das Nações e, mais recentemente, o ouro no Pan-americano. Ele também foi medalhista de prata e bronze em Mundiais.  

“Em 2018, fui convocado para a Seleção B e depois fui integrado à Seleção principal”, conta o atleta, que se tornou medalhista mundial quando tinha apenas 20 anos. “Sempre fui muito dedicado e focado nos meus objetivos. Ter esse reconhecimento é maravilhoso, mas ainda estou em processo de evolução. Tenho muita coisa para construir dentro da Seleção.”

Maique também nutre uma gratidão enorme por Renan Dal Zotto, técnico que comandou a Seleção Brasileira de 2017 até outubro de 2023. Foi ele quem convocou o líbero pela primeira vez e o manteve no plantel nos últimos anos, várias vezes como titular.  

“As oportunidades foram aparecendo e o Renan me deu essas oportunidades. Ele viu que eu poderia ajudar o grupo de alguma forma e acreditou no meu potencial, mesmo que fosse jovem. Foi um cara que me abriu portas na Seleção”, confessa.  

SONHOS FUTUROS E AS OLÍMPIADAS DE PARIS

É claro que as Olimpíadas de Paris não ficariam de fora da conversa. Em todas as disputas olímpicas, é normal que a comissão técnica convoque apenas um jogador para a posição de líbero. Nos últimos anos, Maique vive essa disputa particular pela titularidade com Thales Hoss. Mais velho e experiente, o colega foi escolhido para atuar em Tóquio 2021, mas nunca foi unanimidade e, a poucos meses dos Jogos de 2024, ambos seguem na corrida por um lugar na lista final.  

O que posso fazer é trabalhar e ter paciência, porque tenho certeza que minha hora vai chegar

“Tenho expectativas sim, mas não são muitas para não me frustrar”, admite. “Espero que seja em Paris, mas se não for, estou focado para Los Angeles (sede dos Jogos de 2028)”, afirma, sem esconder que seu maior objetivo é a medalha de ouro olímpica. “Individualmente falando, quero ser o melhor líbero de uma Olimpíada. Seria um sonho realizado, vejo que trabalho e tenho potencial para alcançar esse feito.” 

Além desse sonho, Maique também mantém em seu horizonte planos de jogar fora do país. Itália e Polônia, que têm as ligas mais fortes do mundo, estão no radar do mineiro. “Já recebi propostas nessa temporada da Polônia, mas senti que deveria continuar aqui. Preciso aumentar meu sarrafo, me desafiar mais e não entrar numa zona de conforto”, analisa. “Quero trabalhar fora, com outro técnico, com outra metodologia.”  

Sem o vôlei, o conto de fadas de Maique jamais seria possível. Hoje, com o reconhecimento dentro das quadras, o mineiro pode dar à sua família a estabilidade financeira desejada desde a infância e planeja construir seu próprio ninho com o noivo, Henrique. 

“Pretendo construir uma família, ter filhos. Quero ter pelo menos dois. Quero um meu e, dependendo de como for, adotar uma criança, independente da idade. Depois de me aposentar, quero estudar fisioterapia ou psicologia. Ou quem sabe os dois. Quero aproveitar o leque e continuar trabalhando no cenário esportivo”, diz, com a mesma sede que tinha quando sonhava em jogar vôlei aos 12 anos.




LÍVIA MUNIZ

LÍVIA MUNIZ

Niteroiense apaixonada pelo Vasco, Livia é formada em Jornalismo pela UFRJ. Trabalhou como repórter e colunista na Goal Brasil durante quatro anos. É nerd, feminista e sonha ser uma ranger rosa.

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