“Recomeços” é o tema da 6ª edição da Híbrida, que chega ao mundo nesta terça-feira, 8, com 10 entrevistas, ensaios fotográficos e reportagens exclusivas. É a nossa maior edição até hoje, e ao mesmo tempo a mais difícil de concluirmos.
Essa é também a segunda edição que lançamos enquanto o mundo inteiro ainda tenta entender como lidar com o coronavírus e o que vem depois dele. Não posso e não vou romantizar um vírus que destruiu mais de 1,5 milhão de famílias no mundo, mas é inevitável que a reclusão social imposta pelas medidas de distanciamento tenha nos dado mais tempo para pensar e refletir, pelo menos.
Algumas palavras vêm e vão no uso e desuso da língua portuguesa, e acho que nunca antes eu vi tanta ênfase em “resiliência”, o novo mantra para o mínimo de equilíbrio na nossa saúde mental. O Michaelis define o termo como a “capacidade de rápida adaptação ou recuperação”, mas para os fãs de música pop a Kelly Clarkson já havia ensinado há quase uma década que o que não nos mata, nos fortalece.
Mas como nos fortalecer diante de tanta solidão, quando tudo o que conhecemos está de cabeça pra baixo e nem um abraço é recomendado? Foi com essa pergunta em mente que buscamos os temas desta edição.
Priscila Tossan é, como você pode descobrir na matéria de capa da Híbrida, um ótimo exemplo de resiliência e da possibilidade de recomeço(s). Mulher, negra, periférica e LGBTI. As estatísticas brasileiras riem de uma pessoa como ela que ouse sonhar. Mas foi o que ela fez assim mesmo, impulsionada pela certeza de que precisava viver de música e não havia outro caminho possível.
Na cidade partida, Priscila passou no espaço de dois anos a uma das muitas artistas que se apresentavam no metrô para queridinha do programa musical mais assistido na TV brasileira e, depois, a uma artista já completa, que se mostra sem nenhuma timidez no disco de estreia, “Iceberg”.
O Rio de Janeiro paira sobre as músicas do álbum como um personagem à parte, influenciando ritmos, imagens, versos e vozes. É a Cidade Maravilhosa na sua forma mais romântica e cruel, a mesma cidade que está prestes a viver um novo recomeço com velhos conhecidos, depois de ter sucumbido ao conservadorismo do pós-Copa e pós-Olimpíadas.
É dessa mesma cidade que vem uma das histórias de recomeços que, particularmente, mais me emociona. A Casa Nem, um centro de acolhimento para pessoas LGBTI+, ganhou um lar para chamar de seu após cinco anos tendo que ocupar imóveis vazios pela capital fluminense, sempre sob o pulso firme e a energia incansável de Indianare Siqueira. Pokira, uma fotógrafa trans e não-binárie que já passou quase um ano vivendo na Nem, teve a generosidade de nos contar em texto e imagens como foi essa experiência, seu próprio recomeço particular após ter sofrido abuso da família e ido ao Rio em busca de um sonho.
Os ventos que chegam ao Rio do outro lado da Baía de Guanabara também trazem boas novas. Benny Briolly (PSOL) foi a mulher mais votada à Câmara Municipal de Niterói, a primeira travesti negra para o cargo, trazendo consigo uma promessa de políticas pensadas por e para pessoas nunca antes convidadas para sentar à mesa. “O que mais me motiva é estar na luta”, ela nos conta, dias após vencer a eleição.
Outro termo que circulou nos últimos anos é a tal da “representatividade”, uma ferramenta de impulsionamento dos sonhos e possibilidades, capaz de produzir pertencimento em corpos e almas que não se enxergavam antes no que viam em telas, histórias e capas de revista. Confesso, nem sempre essa palavra vem atrelada à importância ou profundidade que merece, mas basta assistir ao filme “Alice Júnior” para ver que ela ainda precisa ser reforçada por muito tempo. Anne Celestino Mota brilha no longa-metragem, criando para as próximas gerações o que ela mesma nunca teve: uma história “normal” de ensino médio, onde a protagonista pode ser trans e sair não apenas viva, mas feliz e amada. Não é o que todos queremos?
Do Ceará, As Travestidas (que estão prestes a se tornarem tema de documentário) também têm usado a arte e a cultura para fazer o público pensar questões de gênero e sexualidade tão intrínsecas nas nossas certezas que podem gerar até certo desconforto na plateia. Mas desde quando mudanças e recomeços são confortáveis?
Do Cristianismo às aldeias indígenas, da população negra de Angola às periferias do Rio de Janeiro, nossa comunidade tem encontrado formar de recomeçar, muitas vezes compulsórias, é verdade, mas nem por isso menos vitoriosas. E não foi sempre assim? Depois da tempestade, vem o arco-íris.
Leia a edição #6, “Recomeços”, clicando na imagem abaixo: