23 abr 2024

“ALICE JÚNIOR” E A JORNADA INÉDITA DE UMA HEROÍNA TRANS E TEEN NO CINEMA NACIONAL

COM FÓRMULA “SESSÃO DA TARDE” E LINGUAGEM DE BLOG, O FILME CHEGA AO STREAMING E APRESENTA A ESTRELA ANNE MOTA AO MUNDO

Quando chegou ao catálogo dos serviços de streaming – como a Netflix, em outubro deste ano -, “Alice Júnior” já havia percorrido uma trajetória invejável para uma produção brasileira. Após levar prêmios em festivais prestigiados, ganhar o carinho da crítica e a aprovação do público, o filme se tornou um dos grandes exemplares do novo cinema LGBTI+ internacional ao demonstrar que é possível contar a história de uma pessoa transgênero de maneira divertida e tocante, evitando o apelo das grandes tragédias que estamos habituados a assistir.

Há algumas décadas, o caminho para que uma produção como esta chegasse ao mainstream e conquistasse seu lugar ao sol não era sequer imaginável. Foi aos poucos, com muitos erros e poucos acertos, que personagens e narrativas queer começaram a abrir espaço dentro de uma indústria que até hoje carrega, no Brasil e no mundo, sua leva de preconceitos.

Em 1930, os grandes estúdios cinematográficos de Hollywood impuseram um conjunto de normas para garantir o que consideravam uma ética “moral” e de “bons costumes” em filmes produzidos e distribuídos nos Estados Unidos. Chamada Código Hays, a cartilha de censura formulada com ajuda de grupos religiosos e conservadores estipulava 36 diretrizes, que dividiam os títulos entre “não pode” e “tome cuidado”. Na primeira lista, entravam os banidos por “insinuação de perversões sexuais”, o que na verdade abarcava qualquer atitude tachada de “inadequada” pela sociedade heteronormativa e cristã da época.

A imposição dessas restrições afetou devidamente a existência de protagonistas LGBTI+ no mainstream, mas não os excluiu por completo. Para contornar o código, cineastas começaram a utilizar comportamentos e identidades queer na idealização de personagens que, em sua maioria, cumpriram papéis de antagonistas e vilões.

Renegar um grupo minoritário ao local de vilania tornou justificável a morte trágica sofrida por seus representantes nas telas, como se já não bastasse a desumanização caricata. Foi aí que o cinema, reflexo da sociedade que é, começou a normalizar a violência contra pessoas LGBTI+ como uma ideia possível e justificada, além de tornar ainda mais difícil que esses sujeitos da vida real se identificassem com o que viam na ficção.

O Código Hays só seria exterminado em 1968, num período de grandes reboliços políticos que envolveram diretamente os grupos mais vulneráveis da sociedade (a própria Revolta de Stonewall viria no ano seguinte). Seu fim, entretanto, não significou uma mudança drástica na forma como Hollywood retratava estereótipos.

De forma semelhante, o cinema brasileiro também enfrentou – e ainda enfrenta – dificuldades de retratar as minúcias e nuances deste universo, com personagens queer usualmente preteridos do protagonismo ou diminuídos a clichês cômicos e/ou maníacos, principalmente em títulos que miravam o público geral e tinham uma clara função comercial.

Com a chegada das décadas de 1980 e 90, no entanto, histórias que exploravam as pluralidades dos grupos marginalizados começaram a ocupar mais espaço nas programações de cinema.

Foi apenas nos últimos anos que obras como “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (Barry Jenkins, 2016) e “Uma Mulher Fantástica” (Sebastián Lelio, 2017) conseguiram ser indicadas e premiadas em uma cerimônia tradicional como o Oscar. Demorou quase um século para que a premiação recebesse uma mulher transexual como Daniela Vega no palco do Dolby Theatre ou considerasse que a vida de um homem gay e negro rendesse uma história tão boa a ponto de ser a melhor obra daquele ano.

Esses e outros títulos como “Carol” (Todd Haynes, 2015), “Me Chame Pelo Seu Nome” (Luca Guadagnino, 2017) e “Fora de Série” (Olivia Wilde, 2019) mostraram que não era só possível contar uma história com protagonistas assumidamente LGBTI+, mas que narrativas como estas iam além dos circuitos independentes e também atraíam o público fora do nicho.

Daniela Vega foi a primeira atriz transexual a apresentar uma categoria do Oscar (Foto: GTRESONLINE)
Daniela Vega foi a primeira atriz transexual a apresentar uma categoria do Oscar (Foto: GTRESONLINE)

A mesma maré também fez ondas pelo cinema brasileiro, onde títulos como “Tatuagem” (Hilton Lacerda, 2013), “Praia do Futuro” (Karim Aïnouz, 2014) e “Corpo Elétrico” (Marcelo Caetano, 2017) conseguiram tratar de sistemas opressivos nos quais suas minorias estão inseridas, sem banalizarem a violência como única abordagem possível para seus protagonistas.

No adorado “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (Daniel Ribeiro, 2014), exemplo marcante da safra nacional, a sensibilidade do romance principal é construída de forma intimista entre dois adolescentes que navegam juntos pelas estranhezas do ensino médio e do primeiro amor. O sucesso do longa – que foi o escolhido daquele ano para representar o Brasil no Oscar e levou o Teddy de Melhor Filme, no Festival de Berlim – abriu a porta de uma dinâmica possível para equilibrar representação e apelo comercial.

A chegada de “Alice Júnior” a essa safra mostra que o cinema produzido num país extremamente desigual pode – e deve – continuar investindo em tramas que naturalizam a experiência de sujeitos queer para todos os públicos. O longa conta a história de Alice, uma adolescente trans que tem o sonho de dar seu primeiro beijo. Quando ela se muda com o pai para uma cidade interiorana no sul do País, a missão se complica com os desafios impostos pelas pessoas com quem convive na nova escola.

"Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" foi um marco da safra nacional de filmes com protagonistas LGBTQI+ (Foto: Reprodução)
"Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" foi um marco da safra nacional de filmes com protagonistas LGBTQI+ (Foto: Reprodução)

Dirigido por Gil Baroni e escrito por Luiz Bertazzo com ajuda de Adriel Nizer, “Alice Júnior” traz sua grande revelação na estrela que a interpreta: Anne Celestino Mota, atriz pernambucana de 22 anos e que exerce uma áurea – para usar a definição do próprio diretor – capaz de elevar a emoção da trama a um novo patamar.

Não apenas pelo frescor da representatividade, sendo uma mulher trans vivendo o papel de uma mulher trans, Anne é também – e acima de tudo – dona de uma presença cativante, que cada gesto e fala transformam Alice numa das grandes heroínas que o cinema brasileiro criou para a Geração Z.

À Híbrida, Bertazzo, Gil e Anne contaram com exclusividade sobre o processo de realização do filme; a importância de uma história leve e tocante com protagonismo trans e as inspirações por trás de uma estrela da qual ouviremos falar ainda por muito tempo.

HÍBRIDA: Como surgiu a ideia por trás de Alice Júnior?

LUIZ BERTAZZO: Em 2011, nós tínhamos aqui no Brasil o Escola Sem Homofobia – um projeto muito importante para capacitar pessoas da rede pública de ensino a lidarem com a comunidade LGBTQ nas escolas. Infelizmente, alguns setores mais conservadores não acharam legal ter algo assim e acabaram chamando-o de “ideologia de gênero”. Fiquei muito triste com isso e, a partir de então, pensei em escrever uma história que se relacionasse com o assunto e que os conservadores não conseguiriam parar.

Daí veio a ideia dessa menina trans que chega num colégio, quer dar seu primeiro beijo e toca em lugares didáticos da aproximação entre a sociedade e uma pessoa transgênero. Como é esse estranhamento inicial e quais são os recursos pra entender que aquele outro corpo é dotado de deveres, direitos e sabedorias como qualquer outro?

GIL BARONI: Quando o Bertazzo estava com o roteiro em mãos, ele me procurou. Após ler, imediatamente falei “Bertazzo, vamos fazer! Quero! Quero fazer essa história e levá-la pro cinema!”. Tinha um edital aberto em Curitiba, a gente se inscreveu com 52 minutos, mais ou menos, e ele acabou passando.

H: O roteiro passou por alterações?

LB: O roteiro teve sete versões. Começou como um piloto de série e foi adaptado para um telefilme, já que assim poderíamos enviar para um edital.

Quando conhecemos a Anne, a história já tinha alguns pontos – o primeiro beijo, algumas situações no colégio, os personagens -, mas sem a vivência da protagonista, porque desde o início queríamos uma atriz trans. A chegada dela foi primordial no processo, porque trouxe o tempero de uma pessoa que realmente tinha essa existência. Muito do que está ali vem desse trabalho conjunto: questões problemáticas, como falar para uma menina que ela é ‘tão bonita que não parece ser trans’, por exemplo. Isso existia no roteiro, mas a propriedade da resposta estava muito básica, então ela veio com um punch a mais.

Costumo dizer que o roteiro já estava escrito, mas faltava uma voz, que foi a Anne quem trouxe. Além disso, outra pessoa muito importante foi o co-roteirista Adriel Nizer, que me ensinou muito sobre estrutura e técnicas de roteiro.

ANNE CELESTINO MOTA: Cheguei no projeto em 2016, com 17 anos, mais ou menos no início da seleção de elenco. Tivemos dois momentos muito essenciais: dois dias super intensos de entrevistas com Gil e a produção; e várias leituras de roteiro, em que eu fazia minhas observações. A partir de então, fui convidada para ser a atriz protagonista e, graças ao Gil, a ser também uma produtora associada do filme. Foi aí que minhas observações passaram a ser acolhidas com muito mais força e pude falar realmente o que achava do roteiro, das vivências da personagem, o que era legal e o que não era. Tanto antes das gravações, quanto durante e no período de pós-produção, sempre chegaram até mim para saber minha opinião.

H: Bertazzo e Gil, o que vocês buscavam na atriz que viveria o papel da Alice? Como a Anne chamou a atenção de vocês?

LB: Primeiro, ter idade mais jovem e ser uma pessoa trans. A Alice entra na história muito empoderada, não com dúvida se é ou não, diferentemente de muitos filmes que abordam o se reconhecer como pessoa trans e lidar com a família. Então, precisávamos de uma menina que contasse com uma proteção familiar, fosse nova e tivesse feito esse entendimento de transição, parecido com a personagem.

A Anne tem muitos pontos em comum com a Alice, mas também muitos outros distantes. Pra gente, era importante que ela tivesse essa energia – debochada em alguns momentos e com uma malícia de ser leve. Ela tinha tudo isso. Costumo dizer que foi a fada madrinha trans que a colocou no nosso caminho, porque ela era perfeita para o papel.

GB: O ativismo dela foi o que mais me pegou. Para além de ser uma adolescente trans, tinha que estar antenada com as questões políticas – não só acerca da transgeneridade, mas também com o que estamos vivendo no Brasil e no mundo. E é óbvio que, enquanto trans num país com estatísticas brutais de violência contra a sua existência, o seu corpo já é político. Mas a Anne chegou com muita assertividade, sabe?! A primeira vez que a vi, percebi que ela tinha uma áurea e falei “é ela”.

H: Anne, enquanto atriz, o que tinha no roteiro do projeto que te fisgou?

ACM: Eu gostei muito da história porque até hoje não sei se há algum filme, série ou qualquer outra produção audiovisual como “Alice Júnior” no mundo. A gente tá falando sobre a transgeneridade de um modo completamente novo, onde o corpo de Alice é humanizado. Geralmente, as histórias sobre este assunto são contadas sempre da mesma maneira: ou é uma pessoa trans se descobrindo enquanto trans e passando por grandes períodos trágicos de violência, podendo até morrer no final; ou é uma pessoa trans que vai ter aquela cena rotineira de se olhar no espelho, se odiar e tudo o mais.

Em “Alice Júnior”, você vê uma vida completamente diferente. Obviamente ela passa por muitas questões que todas as pessoas trans passam: Alice tem suas disforias, inseguranças, sofre transfobia, mas é uma pessoa que ama seu corpo, tem ativismo, passa de cabeça erguida por momentos ruins e sabe dar a volta por cima, encontrando luz no fim do túnel. Então, o que me fisgou foi a história, porque é a história de uma heroína.

H: Algum filme ou história serviu como inspiração para o projeto? Para Anne, há alguém em quem você tenha se inspirado?

LB: Acho que é justamente não ter tido nenhuma história LGBT na Sessão da Tarde enquanto eu era adolescente que me inspirou a escrever uma história LGBT-Sessão-da-Tarde para adolescentes (risos). Os clichês adolescentes vêm desses filmes, mas a ideia geral era justamente por não ter algo como ele. Na atualidade, no entanto, temos o “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, com uma abordagem completamente diferente da que estamos habituados, trazendo esse vigor e leveza de contar uma história LGBT para um público mais jovem. Talvez “Alice Júnior” tenha nascido desta mesma fonte.

ACM: Em 2016, o GIl me mandou uma série de filmes que retratam, de certa maneira, o empoderamento feminino. E a Alice é uma personagem muito empoderada, né. Então, de repente, esses filmes podem ter servido de referência neste aspecto. Mas uma inspiração muito direta, eu acredito que não teve, não. “Alice Júnior” é uma história muito única.

GB: Eu sempre falo aos atores e atrizes: no começo, para naturalizar a personagem, empreste um pouco das suas características para ele ganhar vida e, a partir disso, você compõe como precisa ser. A Anne trouxe muito isso no começo. Na cena do carro, me recordo que ela estava muito concentrada. Quando perguntei no que ela estava pensando, ela me respondeu que se lembrou de uma violência que sofreu no colégio. Nesse momento, ela se conectou com sua vivência e trouxe isso para a personagem.

O fato de ela ser blogueira e estar sempre conectada nos leva a um lugar que permite criar e desenvolver uma linguagem onde o filme é um vlog. Não tinha referência de filme assim. Inventamos a partir das minhas influências e experiências com a internet, pro canal da Kéfera, que produzi durante um tempo, ou das blogueiras que eu já conhecia. Sempre gostei muito de como a internet é democrática, pro bem e pro mal.

A única referência que a gente tinha, eu e o Bertazzo, era fazer um filme Sessão da Tarde, mas não como os do John Hughes (“Clube dos Cinco”, “Curtindo a Vida Adoidado” etc.). Passei para a Anne três recomendações: “Priscila, A Rainha do Deserto”; “Era Uma Vez no Oeste”, do Sérgio Leone, que não tem nada a ver com filme adolescente, mas tinha uma personagem empoderada interpretada pela Claudia Cardinale (Jill); e “Johnny Guitar”, do Nicolas Rhay, que também fala do Velho Oeste e tem a Vienna (Joan Crawford), com nuances de empoderamento muito fortes. Podíamos construir uma Alice com essas referências cinematográficas e não com filmes adolescentes.

Alice é uma heroína, assim como a Vienna de “Johnny Guitar”.

H: Inclusive, no quarto da Alice tem um poster de “Priscila, A Rainha do Deserto”.

GB: Sim, não podia faltar. Apesar de “Priscila” ter sido interpretada por uma atriz cis, a personagem é bem forte dentro da configuração LGBTQ. E eu gosto muito do filme. Mas também tem “Tangerine” (protagonizado por uma atriz trans), que amo de paixão e considero um filme super potente.

Clássico imortal da cultura camp, "Priscila, a Rainha do Deserto" foi uma das referências que inspirou "Alice Júnior" (Foto: Divulgação)
Clássico imortal da cultura camp, "Priscila, a Rainha do Deserto" foi uma das referências que inspirou "Alice Júnior" (Foto: Divulgação)

H: Estamos, infelizmente, acostumados a conferir no audiovisual produções que estereotipam a vivência LGBTQ ou a apresentam de forma trágica. Um dos méritos de “Alice Júnior” é não apenas trazer representatividade, como também tratar diversos assuntos de forma leve, sem banalizar sua importância. Como vocês conseguiram equilibrar tão bem esses aspectos?

LB: Passa por muitas etapas. Primeiro, o roteiro sempre partiu da intenção de não querer que a Alice apanhasse em nenhum momento. A violência maior que ela sofre – que é grande – é a da piscina, mas a gente quis escapar do clichê. Depois, era muito importante que as pessoas no filme fossem aliadas e alinhadas com a causa trans, tanto que a maioria das entrevistas de elenco foram feitas com a Anne – ela fazia perguntas como “O que é transfobia para você?”, por exemplo. Tínhamos uma equipe muito alinhada e apaixonada por essa história. Acho que “Alice” foi um grande playground pra todo mundo e muito leve.

GB: Eu e o Bertazzo, embora homens cisgêneros, fazemos parte da sigla, pois somos gays e ele está sempre antenado com as causas LGBTQs. Nossa preocupação era trazer para as narrativas pessoas que a gente nunca via. Eu queria fazer o possível para que a história chegasse ao cinema, mas houve o desafio: como fazer um coming-of-age que tenha um aspecto original? É uma personagem trans, é heroína, mas é “a mesma história”.

Só que não é, porque tem nuances delicadas nas intenções da Alice, em como ela se comporta, como recebe apoio do pai etc. E tínhamos outro desafio que era construir isso com verossimilhança num país onde as capas de jornal com pessoas trans trazem sempre a violência. Como a gente podia falar sobre a transgeneridade de um jeito importante, num contexto em que ela está empoderada?! Tinha que ser um filme de inspiração e de encorajamento às novas gerações, que levasse as pessoas a questionarem. E é Brasil também.

ACM: Todos os tipos de filme sobre a causa trans – desde que falem sobre a gente de forma correta e representem a nossa identidade – são muito importantes. Assim como filmes que retratam nossa vivência no Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo. É importante mostrar o outro lado da moeda, porque a gente vê diversas comédias românticas por aí feitas com Maísa, Larissa Manoela, “Barraca do Beijo” etc., mas não vemos com pessoas trans. A gente não pode ver um filme Sessão da Tarde com pessoas trans, uma novela infantil com pessoas trans. Eu não acredito nessas coisas, sabe. As pessoas trans deveriam ocupar todos os lugares, inclusive as comédias românticas adolescentes.

H: O filme quebrou e continua quebrando barreiras geracionais. Mesmo que sua protagonista seja Youtuber e familiarizada com o mundo digital, muitas pessoas mais velhas, que não cresceram no mesmo universo da Alice, se apaixonaram pelo filme. Por que vocês acreditam que o público se conectou tanto com a história?

LB: Acho que tem a ver com os temas universais. O primeiro beijo é uma situação que todo mundo já passou ou vai passar, os novos amigos, a relação com a família…. Além disso, falamos de assuntos que são difíceis e necessários de forma mais explicativa – como o uso do banheiro e o nome social -. Isso cativa porque traz uma nova ótica de como lidar com este isso sem ter uma percepção pesada.

ACM: Quando essas experiências são vivenciadas por alguém com um corpo que naturalmente chama atenção, as pessoas ficam curiosas para saber como ele vai agir em determinadas situações e que não vai ser diferente por ser um corpo trans.

GB: A fase da adolescência é uma fase muito íntima, quando começamos a nos descobrir, desenvolvemos o desejo de independência, nossas vocações etc. O beijo representa um pouco essa conquista da liberdade. Tudo isso é muito peculiar e presente nos coming-of-age porque é legal para os adolescentes que estão passando por isso assistirem, assim como os pais que reconhecem seus filhos nesta fase e se conectam com eles.

Este é um grande diferencial – pais como o Jean e a Marisa, que desejam a felicidade dos filhos. Eles sabem o que seus filhos são, respeitam e querem brindar a diversidade.

Outra frase que se conecta o sentimental do público é quando o pai fala pra Anne que ela “existe é pra brilhar”. Olha que lindo o pai falar isso pra filha fora do bullying. Joga ela lá em cima! A gente queria que “Alice Júnior” se conectasse com adolescentes, adultos e celebrasse a diversidade. Por isso o filme termina com um arco-íris bem viado.

Anne Celestino Mota fotografada por Ana Barbosa para a Revista Híbrida
Anne Celestino Mota fotografada por Ana Barbosa para a Revista Híbrida

H: Como tem sido a recepção com as pessoas trans?

ACM: Tiveram dois momentos muito especiais: o primeiro na Mostra de São Paulo, em que as Mães Pela Diversidade de SP levaram crianças e adolescentes LGBTQs para a sessão e uma garota trans de uns 10, 12 anos disse que amou o filme e que me amava. A outra foi a conversa que tive com a Maria Joaquina, patinadora de 12 anos, pelo Instagram. Ela disse que gostou muito da parte em que a Alice sofreu preconceito no colégio, mas que no dia seguinte foi de cabeça erguida e enfrentou o pessoal. Pra ela, que está prestes a começar essa fase de adolescência, deve ter sido muito importante mostrar que caso passe uma situação transfóbica assim, poderá agir como a Alice também.

Além disso, tenho recebido muitas mensagens no Instagram de pessoas que viram o filme e que me tocam o coração.

H: Anne, como foi o seu processo particular de se entender como mulher trans?

ACM: Eu convido os leitores a darem uma passadinha no meu canal, que é o Transtornada, para saberem um pouquinho mais sobre isso – até porque eu gostaria muito desses novos inscritos também (risos). Basicamente, durante a infância eu já notava que alguma coisa estava acontecendo, que não podia seguir com as minhas decisões, jeito de ser, falar etc. Me sentia muito limitada. Aos 12, enquanto vagava pelo Youtube, encontrei o documentário “My Secret Self”, que foi muito representativo e, através dele, pude me reconhecer.

H: Alice e o pai têm uma relação baseada em amor e compreensão. Na sua família, Anne, há alguém que tenha te dado apoio da mesma forma?

ACM: Sim, minha mãe e meu pai. Eu tive esse privilégio, assim como Alice, de uma aceitação de maneira mais fácil e compreensiva. Meu pai teve um pouco de dificuldade, inclusive passamos um tempo afastados, mas hoje em dia isso já é bem mais tranquilo. Já com minha mãe nunca houve uma questão com relação a minha transgeneridade.

H: Como foi a sua juventude como adolescente trans, considerando especificamente a vida em Recife?

ACM: Foi bem difícil, especialmente nos colégios, porque sofri muito preconceito enquanto pessoa LGBTQ. Eu era lida enquanto garoto gay afeminado e passei por agressões físicas e verbais com frequência, minha juventude realmente não foi nada fácil. No intercâmbio, quando transicionei, tive uma fase um pouco mais fácil porque os colégios tinham clubes LGBTQs. Mas quando voltei para Recife, já trans, tive muita dificuldade nos colégios particulares que estudei, tanto que acabei completando meu Ensino Médio por supletivo.

H: Sinto muito que você tenha passado por isso, Anne. Mas quem são essas pessoas na fila do pão hoje em dia, né?!

AM: Pois é! (risos)

Anne Celestino Mota fotografada por Ana Barbosa para a Revista Híbrida
Anne Celestino Mota fotografada por Ana Barbosa para a Revista Híbrida

H: Qual foi a cena mais difícil de gravar/escrever? E a que mais gostaram? Por quê?

LB: A que mais gostei de escrever foi a do por do sol, porque ali tinha um lugar de tranquilidade e contemplação dos personagens, que estão ali numa conversa simples, mas também profunda sobre suas próprias existências. A cena da festa talvez tenha sido um pouco mais difícil de prever como seria, porque tem as músicas que atravessam, muitos personagens, etc., então a escrevi em blocos de encontros. O filme como um todo, na verdade, é um desafio de escrita, mas não teve nenhuma que foi mais difícil que outras.

ACM: A mais difícil foi a da piscina. Eu tive diversas conversas com o Gil e o Berta sobre ela, inclusive sobre a possibilidade de não conseguir fazê-la, porque tenho muita insegurança com meu corpo. Tive muito medo de me expor e dos comentários que poderia receber, mas eles sempre me deixaram muito confortável. Antes de gravá-la, o Gil reduziu a equipe no set, deixando em sua maioria mulheres, enquanto os homens que por lá ficaram eram necessários de estar e isso me deixou bem mais tranquila.

Já as mais divertidas foram 3: as da festa, porque quando a música tava rolando parecia que era festa mesmo; a cena com a Thaís (Viviane) no pedalinho; e a da guerra de travesseiro, porque foram muito engraçadas de gravar.

GB: A da piscina foi a mais difícil por ser muito simbólica e representar a violência sofrida por pessoas trans. Como metaforizar isso ao mesmo tempo que tem a virada da sororidade? São as mulheres que não permitem isso acontecer e pulam na água acolhendo a Alice. É muito difícil transpor isso. A cena foi rodada em apenas um dia, e estava muito frio. Eu fui solidário e o primeiro a pular porque as pessoas precisaram se jogar na piscina várias vezes.

Quando o menino arranca o bojo dela também era importante, porque a deixa vulnerável. Na época, a Anne estava insegura e só acalmou depois que enviei o material já com cortes e disse “se você se sentir desconfortável com os peitos à mostra, tiramos sem problema algum”. Ela foi muito corajosa e generosa de permitir que o cinema pudesse contar desta maneira uma metáfora de agressão, mas também de apoio, acolhimento e união. Eu quis finalizar a cena com um mosaico da sororidade e aquelas mulheres na piscina levitando. A vitória de vencer a intolerância, o desrespeito.

Muito difícil escolher a cena que mais gostei, mas a do porão, na festa, eu gosto porque é muito simbólica e representa a vitória de todos aqueles personagens. Apesar de que eu também me diverti muito com o vlog, que é uma cena muito simples, mas foi super divertido ver como [a Anne] construiu. Também gostei muito da maneira como construímos a cena da briga, pois é legal ver o vilão levando um socão.

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H: Quais os futuros projetos de vocês?

ACM: Eu tô atualizando meu canal semanalmente. Surgiram alguns testes antes da quarentena e agora não sei mais o que vai acontecer, infelizmente, mas queria muito continuar tanto no teatro, quanto no audiovisual. Eu faço faculdade de Teatro aqui no Recife, então trabalhar nessas duas áreas é muito importante pra mim.

GB: Tem um longa que estou procurando financiamento e outros projetos junto com o Bertazzo, dentre eles o “Casa Izabel” – ambientado na época da ditadura militar dos anos 70, numa Casa Grande povoada por homens que vivem experiências com o crossdress. Estamos procurando recursos para finalizá-lo.

Além disso, temos a expectativa de talvez fazer um “Alice Júnior 2”. As pessoas têm falado que querem uma continuação, e seria legal fazermos isso, reencontrando o elenco com os personagens voltando à tela para sabermos o que aconteceu com cada um deles, porque são personagens muitos ricos

LB: “Alice Júnior 2” é um desejo que a gente tem, com certeza. Queremos aprofundar essa história com mais tempo, um projeto maior. Mas necessitamos de financiamento e coisas assim, então não é algo tão agora. Além disso, estou em fase de roteirização de mais dois projetos – um em parceria com a produtora TemDedê e outro com a Beija-Flor Filmes. Como ator, sigo no teatro, com a minha companhia. E tenho a segunda temporada da série Irmandade para ser rodada ano que vem. Tô seguindo o fluxo da vida, fazendo os trabalhos que têm aparecido.

Maria Eugênia Gonçalves

MARIA EUGÊNIA GONÇALVES

Maria Eugênia (Jeane, para os íntimos) já caminhou pelo Design, pelo Direito, pelo Jornalismo e pela Publicidade, mas agora está se graduando nas Ciências Humanas pela UFJF. Fã de cultura pop desde criança, sua grande paixão é a sétima arte e tudo que envolve o mundo audiovisual: da produção até a forma que reflete o mais íntimo de nosso cotidiano.

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Ana Barbosa

ANA BARBOSA

Fotógrafa, apaixonada por contar histórias em imagens. Começou sua jornada estudando artes visuais, se formou em audiovisual pela UFRJ, trabalhou com cinema e TV e hoje usa esse olhar na sua fotografia.

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