“Nós, não-indígenas, ensinamos aos índios o preconceito. Trouxemos a homofobia nas caravelas e mantemos isso.” A frase é do antropólogo Estevão Rafael Fernandes, professor da Universidade Federal de Rondônia e autor do livro “Existe Índio Gay? – A colonização das sexualidade indígenas no Brasil”. Após anos de pesquisa, ele explica como a colonização das Américas fez com que o entendimento de povos indígenas sobre suas sexualidades fosse apagado e, mais ainda, hostilizado nas próprias tribos, com base em conceitos ocidentais, coloniais e religiosos.

O primeiro registro detalhado de homofobia contra um indígena brasileiro vem ainda do início do século XVII, na tribo dos Tupinambá, no território que hoje reconhecemos como o estado do Maranhão. O episódio é narrado em uma carta do jesuíta Yves D’Évreux no livro “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”, na qual ele conta a execução de um índio através da “colonização e purificação”, “com requintes de crueldade”, por ele ter praticado “o mais sujo dos pecados”.

Tibira, como eram chamados aqueles que não se adequavam ao papel tradicionalmente entendido como masculino pelos ocidentais, foi executado com seu tronco amarrado na boca de um canhão que explodiu metade de seu corpo para o mar e deixou outra metade em terra. Ele não foi, entretanto, o primeiro. Várias etnias, como guaicurus, xambioás, nambiquaras, bororos e tikunas tinham registros de práticas homossexuais, enquanto relatos da exterminação desses indígenas são encontrados desde meados do século XVI.

(Foto: Reprodução Instagram | @indigenasLGBTQ)
(Foto: Reprodução Instagram | @indigenasLGBTQ)

Estevão observa, entretanto, que há uma diferença em como os povos indígenas das Américas reagiram a esses extermínios dos colonizadores. Registros apontam que, entre o que conhecemos como tradicionalmente masculino e feminino, havia até cinco variações de gêneros. Na América do Norte, o papel dos tradicionais “two-spirit” (dois-espíritos) foi resgatado por índios LGBTQ dos Estados Unidos e do Canadá, após um longo período de apagamento que começou durante a colonização e foi reforçado pelas próprias tribos.

“A acusação de que lá eles teriam ‘se tornado gays porque esqueceram de suas culturas’ era algo, assim como aqui, bem comum. Mas houve um movimento interessante: quem teria feito isso seriam seus acusadores, por terem esquecido o papel sagrado que pessoas dois-espíritos exerciam/exercem em suas culturas e sido coniventes com os processos de colonização. O dois-espíritos se tornou um movimento de resistência ao próprio processo de colonização”, explica o antropólogo.

Casal de indígenas norte-americanos dois-espíritos do povo Navajo (Foto: Reprodução)
Casal de indígenas norte-americanos dois-espíritos do povo Navajo (Foto: Reprodução)

Índios dois-espíritos desempenham um importante papel político e sagrado em suas tribos, por serem considerados capazes de transitar com a mesma facilidade entre os mundos masculino e feminino. Essa denominação, Estevão frisa, vai muito além apenas da orientação sexual, já que as comunidades indígenas na América do Norte enxergam o espectro da sexualidade de forma ampla, fluída e cíclica.

[Eles entendem a sexualidade] como parte de um círculo onde estar masculino ou estar feminino são apenas duas opções, entre várias outras

“Dois-espíritos não se refere a um papel sexual, o que seria diminuir muito sua importância. É uma função religiosa, política e social. A questão sexual é apenas um desses aspectos – ou seja, nem todo indígena LGBT é two-spirit. A forma como eles entendem a sexualidade não é a partir de dois termos opostos (masculino vs. feminino), mas complementares. Não são dois pontos em extremos de uma linha, mas parte de um círculo onde estar masculino ou estar feminino são apenas duas opções, entre várias outras.”

A reivindicação dos papeis two-spirit pelas comunidades indígenas LGBTQ norte-americanas ao longo dos últimos anos tornou-se um movimento político de resistência contra uma colonização que ainda está em curso no continente. Enquanto isso, no Brasil, lideranças indígenas similares têm aparecido pelo país afora, enquanto surge um novo problema a ser enfrentado por essa comunidade: as recentes e crescentes missões de igrejas neopentecostais em tribos, que buscam novamente “evangelizar” os índios e apagar traços fundamentais de suas culturas e religiões originais.

Ricardo Lopes Dias, nomeado para chefiar órgão da Funai (Foto: Reprodução)
Ricardo Lopes Dias, nomeado para chefiar órgão da Funai (Foto: Reprodução)

Em 5 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro nomeou o ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para o comando de um órgão responsável por proteger povos isolados e de recente contato na Fundação Nacional do Índio (Funai). Além da formação como antropólogo, Dias passou uma década, entre 1997 e 2007, evangelizando indígenas por meio do grupo Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), fundado em 1953.

Em sua página oficial, o MNTB se define com “o propósito de levar o Evangelho de Cristo aos povos não alcançados” e, para isso, conta “com uma das maiores estruturas para o treinamento, envio e acompanhamento do missionário da igreja enviadora”. Ainda na última semana, a Justiça Federal proibiu que missionários norte-americanos e representantes do grupo entrassem na Terra Indígena Vale do Javari, local onde há maior concentração de povos isolados do mundo.

Reportagem do jornal O Globo revelou que representantes do MNTB e os religiosos estadunidenses Andrew Tonkin, Josiah Mcintyre e Wilson Kannenberg entraram de helicóptero naquela área, mesmo com posição contrária da Funai. Na decisão assinada pelo juiz Fabiano Verli, da Vara Federal de Tabatinga (AM), ainda foram destacados “indícios claros de tentativa de aculturamento no caso de uma Comunidade, ao que parece, isolada” e o risco de transmissão do coronavírus àqueles povos.

Na entrevista que você lê abaixo, Estevão Fernandes fala sobre como essas novas missões lideradas por religiões neopentecostais têm influenciado o surgimento de uma articulação entre militâncias indígenas e LGBTQ, o risco que elas apresentam e como o Brasil tem reagido a esse movimento.

O antropólogo Estevão Fernandes, autor de "Existe índio gay?" (Foto: Arquivo Pessoal)
O antropólogo Estevão Fernandes, autor de “Existe índio gay?” (Foto: Arquivo Pessoal)

HÍBRIDA: Qual foi o ponto de partida para o seu estudo sobre a sexualidade das tribos indígenas no Brasil?

ESTEVÃO FERNANDES: Eu não venho do gênero, mas da etnologia indígena. Trabalho com indígenas desde o comecinho da graduação, no final da década de 1990. Em 2012, na primeira aula do Doutorado sobre questões referentes a gênero e sexualidade na América Latina, os professores distribuíram a ementa do curso com várias coisas interessantes, mas nada sobre povos indígenas no Brasil.

Eu tive contato com vários e várias indígenas que classificaria, a partir da nossa visão “ocidental” e “moderna”, como LGBTIQA+. Perguntei aos professores por quê não havia nada sobre essa questão. Os dois se entreolharam e disseram que não conheciam literatura a respeito disso no Brasil. Fiz o que qualquer pesquisador de ponta, com um bom treinamento acadêmico e anos de pesquisa faz: joguei no Google [risos].

Encontrei alguma reportagem aqui ou ali, falando do preconceito que indígenas LGBTs sofriam no Brasil. Em contraponto, vi muita coisa interessante sobre como, nos Estados Unidos e Canadá, eles conseguiram enfrentar o preconceito dentro, inclusive, de suas próprias culturas, redescobrindo o papel que os two-spirits tradicionalmente tinham (e têm).

No fim das contas, minha tese começou com uma pergunta simples: por quê, nos Estados Unidos e Canadá, as pessoas two-spirits teriam conseguido se mobilizar dessa forma enquanto que, no Brasil, as pessoas LGBTs indígenas seguem sendo acusadas de “abandonarem suas culturas”?

H: A maioria, se não a totalidade, dos registros que temos hoje sobre esse traço da cultura indígena são contados pela perspectiva dos colonizadores. Isso significa alguma perda substancial no entendimento de como esses povos lidavam com a sexualidade? Se sim, em que aspectos? E é possível resgatar essas memórias?

EF: Sim e não. Quase sempre, esse material passou e passa pelo filtro do colonizador, mesmo quando registro etno-histórico, por exemplo. Mas, entre a gente, acho até bom que não haja tantos registros assim, no Brasil, porque isso pode dar a falsa sensação de que ser LGBTQIA+ em povos indígenas só é algo “legítimo” se houver registros históricos ou na “tradição”.

Por exemplo, se não houver registros de algo como two-spirits em culturas indígenas no Brasil, isso significa o quê, exatamente? Ou que essas memórias foram e são apagadas ao longo do processo de colonização, ou que isso não existia, naquela nação indígena. Tenho muito medo disso. Se a pessoa é gay ou lésbica e é indígena, isso não precisa ter uma repercussão cosmológica que sirva de justificativa para que ela exerça livremente seus afetos e sua sexualidade, qualquer que seja.

Quadro "Two-spirit meet", de Betty Albert (Reprodução)
Quadro “Two-spirit meet”, de Betty Albert (Reprodução)

Por outro lado, história e memória são processos dinâmicos e várias e vários indígenas têm, hoje, redescoberto a importância de recuperar esses percursos em suas nações. Não como forma de “justificarem sua sexualidade”, mas para compreenderem como, historicamente, a colonização lhes impõe determinados papeis. A visão que o colonizador tem sobre como é um indígena não se encaixa no indígena de carne e osso. Imaginamos alguém numa aldeia da Amazônia, isolado do mundo, com um cocar e pintado. O homem viril caçador e a mulher cuidadora da família e artesã.

É justamente pela imposição desses papéis que a diversidade sexual indígena foi e é sufocada: porque o colonizador lhe impõe, historicamente, um simulacro, um dever-ser. E o indígena gay nordestino, que mora em São Paulo e anda de metrô, fala de celular e curte a balada? Ele deixa de ser indígena por causa disso, ou enfrenta mais cargas de preconceito em seu cotidiano por não se enquadrar nas caixinhas que lhes são impostas?

Isso fez com que várias pessoas LGBTIQA+ indígenas viessem a discutir, no Brasil, processos de colonização, racismos, homofobia, religião. Temos aí um pensamento anti-colonial indígena completamente original surgindo sem que haja, diretamente pelo menos, algo como uma identidade two-spirit, mesmo que muitas delas se inspirem nas experiências estadunidense e canadense.

H: Na América do Norte, o movimentos dos “dois-espíritos” voltou a se fortalecer ao longo dos anos e, no passado, algumas tribos chegaram a reconhecer até cinco gêneros distintos. Há algum indício de que essas nuances existiam também na América do Sul ou, mais especificamente, no Brasil?

EF: Ver o two-spirit como uma crítica político-religiosa ao processo de colonização tem uma implicação interessante. Não se trata mais de como um povo entende os papeis sexuais em sua cultura (algo como “que nomes os Lakota dão às lésbicas”, por exemplo). Ao contrário, trata-se de desvelar processos pelos quais TODOS os povos indígenas passaram.

Isso, aliás, é uma das grandes críticas que as pessoas two-spirit fazem aos antropólogos. Como me disseram algumas vezes, elas se identificam mais com um indígena heterossexual brasileiro do que com um gay branco americano, porque um sabe o que é sofrer com o processo de colonização e invisibilidade. Elas criticam, por exemplo, a presença de não-indígenas nos encontros de two-spirit.

Há relatos no Brasil de algo parecido com os two-spirit (sobretudo pajés). Mas eles quase sempre vêm do colonizador, de modo que há tantos filtros e preconceitos, que acho complicado falar deles.

Nossa colonização é heteronormada, virifocada e homofóbica, porque nós somos assim

H: Como essa repressão da homossexualidade indígena pelos colonizadores se reflete hoje na vida dos índios brasileiros?

EF: Ensinamos que quem tem pênis precisa ter nome, trabalho, corte de cabelo e papel social “de homem”. E quem tem vagina precisa ter nome, trabalho, corte de cabelo e papel social “de mulher”. Quem não segue isso é “viado” – vários povos indígenas, inclusive, chamam seus gays pelo nome traduzido do veado, animal, algo que foi ensinado pelos não indígenas.

Ensinamos que isso é pecado e feio, não apenas na atuação de órgãos oficiais e igrejas, mas nos programas de humor, nas piadas de WhatsApp. Nossa colonização é heteronormada, virifocada e homofóbica, porque nós somos assim.

H: O caso específico de Tibira, da tribo tupinambá, é uma prova de que índios homossexuais existiam, ao menos nas tribos do Nordeste. Podemos acreditar que eles também estiveram presentes em outras regiões do Brasil, ou essa abordagem à sexualidade era encarada de acordo com cada tribo?

EF: O nome Tibira não era o nome do indivíduo, mas o nome a partir dos quais os Tupinambá reconheciam indígenas homens que não se encaixavam nos padrões europeus de sexualidade (o que os cronistas chamavam de sodomitas). O caso do Maranhão ocorreu no começo do século XVII, mas temos relatos em várias outras partes do país desde, pelo menos, meados do século XVI.

Boa parte desses relatos surge entre os Tupi da costa, por serem os indígenas com quem os colonizadores mantiveram mais relações. Gradualmente, no entanto, vê-se relatos entre povos indígenas onde, hoje, temos Mato Grosso do Sul, Tocantins, Amazonas etc.

Vivemos um momento em que racismo e homofobia são praticamente transformados em políticas de Estado e discursos de ódio são não apenas normalizados, mas estimulados

H: Como você avalia as recentes missões de igrejas neopentecostais em áreas indígenas? Acredita que elas podem contribuir para uma manutenção ou exacerbação da LGBTfobia em tribos?

EF: Com certeza. E digo isso, sobretudo, a partir dos relatos das próprias lideranças LGBTs indígenas. Aliás, não acho que seja por acaso que tenhamos, hoje, um número cada vez maior dessas lideranças despontando país afora.

Vivemos um momento em que racismo e homofobia são praticamente transformados em políticas de Estado e discursos de ódio são não apenas normalizados, mas estimulados. Nada mais abjeto que o “cidadão de bem” e a imposição desse lugar de fala como o único possível, algo típico de um Estado totalitário. Tudo isso fez com que essas vozes, antes restritas às suas aldeias, se levantassem e se articulassem, interna e externamente.

É aquela velha história de “a opressão causa resistência”. Se o racismo e a homofobia surgem com força, a oposição surge de forma ainda mais intensa, a fim de romper com esse ciclo colonial ainda em curso, não apenas em aldeias distantes na Amazônia, mas em todos os espaços periféricos ao capitalismo: a favela, a beira do rio, a cidadezinha no meio do agreste. Enfim, vemos esses processos ocorrendo entre povos indígenas porque eles ocorrem também fora das aldeias.