Na manhã desta quarta-feira (21), o ministro da Cidadania, Osmar Terra, publicou no Diário Oficial da União uma medida já anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana: o cancelamento de um edital que viabilizava a produção de séries sobre “diversidade de gênero” e “sexualidade” pela Ancine. “Conseguimos abortar essa missão”, disse o chefe do Executivo durante uma live em que criticava o conteúdo selecionado pelo órgão para ser veiculado na TV pública.

A portaria em questão suspende o edital por 180 dias, com abertura para uma nova prorrogação de igual período. O prazo é justificado como o tempo necessário para “recompor os membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual – CGFSA“, responsável pela seleção dos projetos, que ainda abordavam temas como raça, religião e meio ambiente. Em protesto, o secretário de Cultura do Ministério da Cidadania, Henrique Pires, renunciou ao cargo horas depois. “Não vou chancelar a censura”, disse, em entrevista ao G1.

A estratégia de reformular órgãos públicos com base em critérios quase que exclusivamente ideológicos tem sido adotada pelo governo desde a posse, em janeiro. Se investigam Flávio Bolsonaro, muda-se os funcionários da Polícia Federal, da Receita Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) responsáveis pelo caso. Se dados oficiais mostram que a Amazônia nunca sofreu tantas queimadas em tão pouco tempo, descredita-se os órgãos, os acadêmicos e os dados que dão base a essa informação.

Enquanto a Amazônia vira cinza, Bolsonaro se preocupa em vetar série LGBT pela Ancine (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom | Agencia Brasil)
Enquanto a Amazônia vira cinza, Bolsonaro se preocupa em vetar série LGBT pela Ancine (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom | Agencia Brasil)

A essa altura, ninguém esperava mesmo que Bolsonaro desse aval para promover a cultura e as narrativas LGBTs, já que há anos ele deixou claro que não se preocupava com essa comunidade – pelo menos não como um presidente deveria. Desde 2018, sua atenção para essa população está muito mais voltada a disseminar “mitos” como mamadeira de piroca e kit gay nas escolas do que em divulgar dados ou políticas públicas que interrompam a nossa exterminação em massa.

A Ditadura Militar que se instaurou no Brasil em 1964 também tinha como plano de meta nos extinguir do país (ou, no mínimo, nos calar), com um foco particularmente cruel na população transexual, através de ferramentas como a Operação Tarântula, em São Paulo. Mas nem o Coronel Ustra e nem o delegado José Wilson Richetti poderiam imaginar, há mais de 50 anos, que o Brasil não só sobreviveria às suas políticas discriminatórias, mas também observaria uma insurgência cultural de vozes e corpos LGBTs como nunca vista antes em nossa história.

E é isso que Bolsonaro parece não entender: nossas narrativas atravessam o tempo de mandato e os decretos preconceituosos de um Presidente da República. Claro, o estrangulamento de verba pública para o setor cultural é triste – assim como tem sido assistir a apagamentos similares na educação, na saúde e no turismo.

O mais lamentável dessa censura, entretanto, é que Bolsonaro continua a ladrar sua picuinha sem fundamento contra a comunidade LGBT, assistindo imóvel à Amazônia virar cinza por mais de 16 dias seguidos. E, enquanto isso, o gado do agronegócio e das urnas aplaude.