Uma agente da Polícia Militar de São Paulo foi acusada de transfobia ao abordar uma mulher transexual em Osasco, no interior do Estado. Como mostra o vídeo que circulou nas redes sociais, a policial afirma que para ela “ser chamada de mulher, tem que trocar o nome na certidão”, referindo-se à mulher trans em questão não ter o nome social incluído ou retificado nos documentos.

“Quer que chame de mulher? Vai trocar o nome na certidão. Tem que ter no RG o nome de mulher. Por enquanto, é homem. Vai, rapa fora daqui”, diz a policial no vídeo. A PMSP disse em nota enviada ao jornal O Globo que um procedimento interno foi instaurado para apurar a conduta da agente, mas o episódio demonstra que o problema é estrutural e sistêmico, longe de ser algo isolado no descaso da Segurança Pública às travestis e transexuais.

Na esteira para embarque do Galeão, sou “escolhida” para participar da revista individual (aliás, todas as vezes que vou embarcar sou escolhida – TODAS!). Neste momento, a atendente chama um homem para me revistar e eu afirmo que não aceito ser revistada por ele. Ela chama o chefe da equipe. Juntos, eles cochicham algo, riem e ela então pede minha identidade. Perguntei o motivo e se este era procedimento padrão. Apesar de ela dizer que sim, vi que outras pessoas revistadas não precisavam apresentar o documento.

Acabei mostrando a identidade retificada e a revista seguiu sem maiores contratempos, agora sim com uma policial mulher. Mas me pergunto o que teria acontecido se eu não tivesse o documento retificado? A que tipo de violência teria sido submetida.

O Aeroporto do Galeão é um velho conhecido quando se trata de violar os direitos de travestis e transexuais. A Candy Mel, cantora e ex-Banda Uó, também foi vítima desse tipo de abuso. Inclusive, colocando os seios à mostra em uma revista pública, vexatória e realizada por homens. Isso é inadmissível!

Assim como aconteceu comigo, há vários relatos de pessoas trans que são humilhadas e têm sua intimidade violada na hora da abordagem policial. Os agentes muitas vezes agem por uma formação deficiente sobre o tratamento a essa população, pelo próprio desconhecimento do assunto ou apenas repulsa mesmo, transfobia. Às vezes, são todos esses fatores somados.

Há um resquício saudoso da ditadura militar por parte de muitos agentes da segurança pública, que veem travestis e transexuais em um único lugar subalterno, marginal e violento — apesar de muitas coisas estarem mudando. Ainda assim, nada me faz esquecer da Operação Tarântula ou mesmo da perseguição que a Polícia Militar de São Paulo fez contra as travestis da República e do Arouche ainda em 2017.

Até hoje, a população LGBTI+ tem medo de procurar a polícia pelo tratamento desumano e degradante a que sempre somos expostas, principalmente travestis e transexuais — basta lembrarmos também do caso Verônica Bolina. Homens trans ainda são ridicularizados pela sua estatura e porte físico, têm seus corpos expostos ao serem obrigados a retirar o binder ou ainda sofrem violência pelo uso do paker (prótese peniana), que pode ser propositalmente confundido com uma arma.

No caso de travestis e mulheres transexuais, ainda há todo um estigma de violência e marginalidade, onde dificilmente vemos o nome social ou a identidade de gênero respeitados. Somos separadas das demais mulheres se estivermos em grupo. Revistam nossas bolsas e corpos de forma grosseira, usam força desproporcional e há sempre um ar sarcástico na abordagem. Isso quando não praticam assédios sexuais, tocando nossos seios ou genitais de forma invasiva e desconfortável.

Há ainda aqueles casos em que policiais se esquivam de fazer a abordagem e jogam a responsabilidade de revistar o “traveco” (sic) de um para o outro. Se for uma travesti, negra, não-passável, prostituta, moradora de favela ou em situação de rua, aí as coisas tendem a ficar bem piores.

O fato é que sempre surge a questão de quem irá fazer a revista – uma policial feminina ou um agente masculino?

Para quem tem proximidade ou teve a possibilidade de ler sobre o assunto, esta nem deveria ser uma questão. Mas na prática, o que vemos são graves violações dos direitos humanos e dos corpos das pessoas trans.

É importante salientar que todos os agentes de segurança são preparados e formados para a proteção, o atendimento e a abordagem de toda a população, sejam pessoas com pênis ou vagina. Em tese, não deve haver distinção de qualquer natureza e garante-se a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos seus direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos do art. 5º da Constituição Federal.

Não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que a alegação de constrangimento de um(a) agente do estado ao negar a abordagem estaria acima do constrangimento que ele(a) próprio(a) poderia impetrar à população trans, quando no exercício de sua função. Pois além de um representante do estado, estaria infringindo princípios da inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem e à dignidade de toda uma população. Admitir que uma travesti ou mulher trans seja revistada por um homem, é ferir o seu direito à autodeterminação de gênero e uma violação da sua humanidade.

Pensando nisso, fui colaboradora da Cartilha de atendimento e abordagem da população LGBTI por agentes de segurança, lançada em 2019 pela Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (RENOSP-LGBTI). O objetivo do documento é difundir boas práticas na segurança pública, pautadas no enfrentamento da violência, respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana.

Tenho participado de diversas ações de formação, cursos, capacitações e palestras em espaços segurança pública, sejam para Policiais Civis ou Militares, Guarda-Municipais, Universidades e cursos de Segurança Pública etc. Sempre vemos a abordagem e atendimento às pessoas trans se transformar em uma polêmica.

Temos trabalhado em parceria com diversas instituições para mudar esta realidade. Mas o cenário atual ainda tem uma barreira contra o avanço que estamos construindo.

NOTA IMPORTANTE: Aqui falo sobre abordagem e busca pessoal em situações que não envolvem delitos ou agravantes que possam ser usados para justificar esse tipo de violência. Proponho também um ponto de partida para discutirmos as várias violações promovidas por agentes de segurança pública contra a população trans.

LEIA TAMBÉM: Existe um protocolo policial construído pela FGV sobre abordagem à população LGBTI+. Acesse aqui.