O documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, teve ótima estreia no Festival de Cinema de Cannes 2023. Em meio à chuva fina, com dezenas de pessoas sem ingresso na fila de “última hora” e com esperança de adentrar o cinema, o diretor brasileiro exibiu um longa-metragem em três atos que mergulha na produção de O Som ao Redor (2012), na casa onde morou, na cidade de Recife e na queda coletiva dos cinema de rua, fazendo do tempo um personagem central no filme.

O realizador brasileiro é constante em Cannes. Essa já é sua quarta produção exibida no festival francês. Na Croisette, ele já exibiu O Som ao Redor, Aquarius (2016) com Sônia Braga, e Bacurau (2019), que arrematou o Grande Prêmio do Júri. Já em 2021, ele próprio foi um dos jurados na Riviera francesa.

“A anormalidade ficou para trás”, disse Mendonça na abertura de seu filme, com a casa cheia e na presença da secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura, Joelma Gonzaga. “Pensamos que deveríamos passar essa informação porque isso é bom e o normal é ter alguém do governo nos apoiando. A gente não teve isso por sete anos. Então, muito obrigado!”

O longa foi exibido em sessão especial e ovacionado na sequência. Logo depois, a Híbrida conversou com o diretor pernambucano e também coordenador de Cinema no Instituto Moreira Salles (IMS) sobre o seu mais novo trabalho, Retratos Fantasmas, e os rumos do audiovisual brasileiro.

HÍBRIDA: Qual é a pergunta que mais te fazem, Kleber?

KLEBER MENDONÇA FILHO: Bom, a cada momento da vida tem uma pergunta. Depois de um filme, tem perguntas específicas, mas penso que é ‘o que você está tramando?’. Você acabou de terminar um filme, mas tem sempre um desejo das pessoas de ter mais um filme novo. Por exemplo, eu acabei de terminar Retratos Fantasmas, (fiquei) anos fazendo esse filme e os últimos dois meses foram de bastante trabalho, estou bastante feliz. Aí, vem a pergunta: ‘qual é o próximo filme?’. Poxa! Deixa eu ter o meu momento com esse filme. Mas eu não fico com raiva, não. Eu acho bonito.

H: Você esteve quatro vezes em Cannes com seus filmes e já participou do júri. Ainda dá frio na barriga ou síndrome de impostor?

KMF: Não, não tenho, para ser sincero. Fiquei pensando um pouquinho ‘ai, ai, esse filme’, mas depois já fiquei animado de novo. E estou bem feliz com o filme. Sabe, você fica esperando aqueles carros pretos do festival no hotel e na frente tem um adesivo escrito Retratos Fantasmas, aí você tem a sensação de estar entrando numa montanha russa, mas não tem crise. É ótimo… (risos), mas não tenho síndrome de impostor, não.

H: No filme, você comenta que as pessoas te perguntam se a locação de O Som ao Redor tem direção de arte e às vezes você responde que sim, outras vezes você diz que não. Por quê?

KMF: (Risos) Às vezes, é tão complicado explicar que o Brasil é absurdo daquele jeito… (Mais risos) Talvez, eu tenha exagerado um pouco. Perguntam se ‘as paredes são assim mesmo?’. E sim, são assim mesmo. ‘Com ferro?’. Sim, com ferro. ‘As portas também têm grade?’. Sim, têm grade. É meio cansativo explicar, mas não é direção de arte. Tudo que está ali é a vizinha. É assim.

H: O tempo assume quase a função de um personagem no seu filme. Penso que você tem material desde a década de 1990…

KMF: Sim, o meu material tem desde o final da década de 1980 até agora. São 34 anos de material.

H: Como foi preparar isso? Hoje em dia, com a digitalização, em alguns anos as pessoas não têm mais material algum. Claro que você é diretor, trabalha com cinema…

KMF: Sim, esse é um problema, né? O VHS é muito robusto. Já o HI8 não é. Tem várias fitas que, fazendo esse filme, descobri que perdi. São fitas de 1995, 1996 e 1997, mas os VHS estão todos em perfeito estado e, em 2002, transcrevi para Mini DV, já pensando em preservação. Então, já tinha muita coisa guardada para o futuro mais próximo.

Eu tive o prazer de fazer todas as digitalizações para o filme e isso me aproximou do material. Eu anotava e já separava os que poderia usar. Foi melhor eu mesmo fazer do que ter um assistente, por duas questões: ele ou ela vai acessar esse material e reportar para mim o que foi acessado, e isso é ruim para porque ele ou ela não iria viajar em materiais que eu viajaria; outra questão é de ter muito material pessoal. Eu não queria uma pessoa esbarrando nesse material que nem sei o que tinha. Poderia ter, sei lá, festas estranhas… (risos)

H: Segredos de família…

KMF: É. E foi muito bom rever esse material. A mesma coisa com as fotografias. Manusear esse material foi muito importante.

H: De onde vem o nome Retratos Fantasmas?

KMF: Veio de brainstorm com amigos e acabou o sendo Thiago Gallego, que trabalha comigo no IMS, quem sugeriu. Meu filho de nove anos sugeriu “Filmes de Fantasmas”. Achei interessante e fiquei pensando nisso e foi evoluindo. Antes, foi “Cinemas do Centro do Recife”. Também tivemos “O filme começa na calçada”. Foram uma série de tentativas que não deram certo. Estou bem feliz com Retratos fantasmas, e em inglês e francês gosto muito também.

H: Quando você começou a pensar nesse filme?

KMF: A resposta correta seria quando eu estava na faculdade, porque fiz dois documentários no meu projeto de final de curso. Eu fiz Um homem de projeção, sobre o seu Alexandre (que está em Retratos Fantasmas); e Casa de Imagens, sobre os cinemas que já tinham fechado ou que estavam fechando, já as ruínas. Sempre pensei em um dia usar esse material. Principalmente o do (cinema) Arte Palácio. Eu tive um acesso incrível ao Arte Palácio e sempre achei que poderia reutilizar o material de alguma maneira, mas só há 10 anos que comecei a realmente esquentar a ideia.

Teve um tempo de erros e acertos e perceber o que estava ruim e o que estava bom. Quando nos preparamos para sair de onde morávamos, da casa da minha família e irmos para outra, senti o peso da despedida e comecei a entender que aquele lugar foi muito registrado. Foi aí que ele se tornou a primeira parte do filme, porque o sentimento da minha casa era o mesmo sentimento das salas de cinema. Eu não morava nas salas de cinema, mas morava nas salas de cinema. Me despedi de uma por uma. Bacurau aconteceu, a pandemia aconteceu, surgiu o Agentes Secretos, que influenciou esse filme e é o próximo.

H: Já que você falou de “próximo filme”, gostaria de fazer um exercício de “futurologia”. De 2015 até 2019, tínhamos um média de 40 filmes em festivais de cinema só no primeiro trimestre do ano. Esse número caiu drasticamente devido ao declínio das produções em 2016, seguido do sucateamento da Ancine e a extinção do Ministério da Cultura em 2019. Para onde estamos indo agora?

KMF: Eu penso que, com o novo governo, o Brasil está retomando uma visão democrática sobre a sociedade e parte disso é a cultura ser tratada como uma área de interesse nacional. Vejo que as questões da cultura no Brasil estão sendo reconstruídas. Não, não reconstruídas, mas reconectadas ao lugar que elas jamais deveriam ter saído. Existe essa percepção de que o (Michel) Temer e o (Jair) Bolsonaro destruíram a cultura. Eu penso que eles desligaram a cultura. É claro que destruíram uma noção de civilidade do país, o que é muito grave. Mas eles não conseguiram passar nada no Congresso e nem tem uma lei proibindo. Não, eles não fizeram isso. Eles sabotaram a cultura e isso já é muito grave. É um crime.

Agora, ela está sendo reconectada. Ela volta a funcionar, o que é muito bom. Daqui pra frente, eu quero ver um audiovisual cada vez mais diverso, cada vez mais vindo de lugares que eu não tinha visto antes, filmes lindos e bons sendo feitos. E a gente estava começando a ver isso em 2019, quando a produção foi interrompida. Eu acho que o cinema brasileiro precisa ser mais diverso em tudo. Em perfil social, em raça, em tema, maluquices, experimento, gêneros, ficção científica, horror, realismo e documentário, porque tem espaço para todo mundo e a tecnologia está muito presente para todos nós fazermos coisas. Esse filme foi com todo tipo de tecnologia disponível nos últimos 100 anos. Para mim, isso é muito instigante. A gente pode ser capaz de fazer filmes grandes e filmes pequenos e não temos que compará-los porque são distintos.

Cartaz do documentário "Retratos Fantasmas", do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, em exibição no Festival de Cannes (Foto: Divulgação)
Cartaz do documentário “Retratos Fantasmas”, do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, em exibição no Festival de Cannes (Foto: Divulgação)

H: Como a gente atinge esses lugares? A gente precisa de cotas?

KMF: Cotas são importantes, claro. Eu fiz O Som ao redor por causa de cota. Todo mundo sabia que o Sudeste pegava todo o dinheiro de produção de longa-metragem. E, no segundo governo, Lula instituiu que teria uma cota regional e O Som ao Redor ganhou porque teria que dar o prêmio para dois projetos do Nordeste. Cotas são muito importantes, mas, como tudo, precisa ser pesquisado e é delicado. Tenho visto cada vez mais filmes de pessoas que não teriam oportunidade muitos anos atrás por causa de cotas e por causa do acesso natural à tecnologia. É uma tendência natural de isso se multiplicar. O que não garante que nós teremos bons filmes. Isso aumenta a possibilidade de termos bons filmes porque o bom filme, a obra artística não pode ser criada em laboratório. Bom, você pode tentar, né? Mas não acho que obrigatoriamente vai dar um bom resultado.

O bom filme vem de dores, neuroses, preocupações, raiva e ardor. Daí vem uma boa obra: um texto, uma música, um filme ou uma peça de teatro. E se a gente der cada vez mais oportunidade a quem não tem tido, aumentamos as chances de encontrarmos bons filmes. Mas, de fato, é complexo. Eu faço a programação de uma sala e estou sempre à procura de produções novas. E às vezes, eu acho. E abro espaço para coisas que são novas ou que interpreto como novas, mas precisamos ter um apoio constante para novas obras. Essa política é muito inteligente, mas é difícil escolher novos nomes de homens e mulheres e escolher os projetos. É um trabalho de muita responsabilidade.

H: Kleber, seus filmes têm sido sucesso nos festivais de cinema ao redor do mundo. Você é um diretor que tem medo do streaming?

KMF: Não, de maneira alguma (risos). Eu gosto de acrescentar coisas. O problema é quando você começa a subtrair. O capitalismo prega muito a subtração: para uma coisa nova entrar, tem que tirar algo que já existia. Mas o streaming é mais um espaço que a gente tem. Eu acho ótimo que O Som ao Redor ou Aquarius podem ser vistos na Netflix num domingo à tarde, por exemplo. Mas esses filmes tiveram uma vida completa na sala de cinema, em Blu-Ray, DVD, no Canal Brasil, no Telecine, passaram na Suíça, no Canadá, na Inglaterra e agora estão na Netflix. Eu não sei se eu queria que meu filme fosse direto para a Netflix. Não sei, talvez. Não aconteceu ainda.