Com mais de seis anos desde a sua primeira música oficial, Mia Badgyal sentiu que estava finalmente pronta para lançar agora seu disco de estreia. Assim, EMERGÊNCIA chegou ao streaming no último mês e, em pouco tempo, conquistou os fãs da artista através da versatilidade apresentada ao longo de 16 faixas. O trabalho, entretanto, desempenhou uma função vital para ela, como um “vazio precisando ser preenchido”, segundo conta à Híbrida.

Além de EMERGÊNCIA, cuja produção executiva é do duo Cyberkills e traz nomes como Frimes, Boombeat, CHAMELEO e Jup do Bairro entre as parcerias, a pandemia também trouxe uma transformação pessoal na vida de Mia. “Comecei a transacionar em 2021, mas antes desse processo eu já me enxergava como uma pessoa não-binária”, conta a artista e drag queen, que afirma também: “Amo ser travesti.

Balancear sua transição de gênero com a plataforma pública que criou enquanto artista drag, ela conta, continua sendo um desafio: “As pessoas me conheceram como uma pessoa queer, uma drag queen, então é um desafio me definir como travesti nesse retorno. Mas acho que estou sendo super bem recebida e quem me conhece desde o início não se espantou.”

Parte dessa jornada, Mia decidiu dividir com o público em EMERGÊNCIA, que transita por uma variedade de gêneros musicais tão colorida como a bandeira do arco-íris, alternando entre batidas de funk, brega, trap e muito mais, da mesma forma eclética com que construiu as colaborações. Seguindo uma narrativa única, ela se vê como o fogo, que é o personagem principal do disco, “iniciando a emergência que leva ao desespero, mas, também consumindo tudo e levando a um renascer, em uma jornada inspirada pela realidade da vida como travesti”.

Para Mia, o disco não é só uma oportunidade de ser vista finalmente como travesti, mas acima de tudo uma artista humana. “Quero que as pessoas realmente me levem a sério. Quero ser uma cantora, não quero ser cantora-travesti. Quando as pessoas consomem outros artistas cis, não levam isso em consideração”, explica. “É ser vista como uma pessoa normal e não à parte.”

Em entrevista à Híbrida, Mia Badgyal fala sobre como a vida enquanto drag queen fez com que ela se entendesse trans, a espontaneidade com que costurou todas as colaborações em EMERGÊNCIA e como conseguiu resgatar seu amor próprio em um dos períodos mais difíceis do último século.

Capa de "EMERGÊNCIA", primeiro álbum de Mia Badgyal
Capa de “EMERGÊNCIA”, primeiro álbum de Mia Badgyal

HÍBRIDA: Você tem uma carreira como cantora já há bastante tempo. O que te levou a lançar seu primeiro álbum agora?

MIA BADGYAL: Realmente, fiz o disco porque já havia uma necessidade. Tenho cinco anos de carreira e, no meio disso tudo, rolou a pandemia. Ficou aquele vazio precisando ser preenchido, pela falta do meu trabalho. Vi no disco uma alternativa de mostrar tudo o que andei produzindo nesse tempo – não fiquei sem fazer nada. E também porque é importante o artista ter um disco lançado, muda muito a perspectiva das pessoas sobre tudo.

H: Sobre a forma que faz arte, você diz?

MB: Acho que as pessoas te levam mais a sério quando você apresenta um disco, ainda mais um disco bem costuradinho assim. Quando você vai contando a história, acho que é um material que a galera gosta muito de consumir. Por isso acho legal lançar agora. Se fosse antes, não teria tanto sentido pra mim. Realmente, tive que viver pra fazer isso.

H: E que parte dessas vivências está no disco?

MB: Ah, um pouquinho de tudo! O disco tem músicas inspiradas durante a minha transição, sobre amor e conquistas amorosas, decepção… Quando digo que esse disco veio para me humanizar, é para mostrar que sou uma travesti, que eu amo, me divirto, sofro por amor… Sou humana.

H: O disco, inclusive, transita por muitos gêneros musicais. Como foi essa curadoria de ritmos?

MB: Foi o meu próprio gosto musical. Tentei produzir as coisas que eu gosto de ouvir. Como artista, sou plural, consigo passear por muitos ritmos. Mostrei que tem um pouquinho de Mia para quem quiser, sabe?

H: Como foi lidar com o processo da transição de gênero sabendo que é uma pessoa pública, com fãs e seguidores, tendo que apresentar uma nova versão de você?

MB: Ainda estou lidando, né? As pessoas me conheceram como uma pessoa queer, uma drag queen, então é um desafio me definir como travesti nesse retorno. Mas acho que estou sendo super bem recebida e quem me conhece desde o início não se espantou. A forma como eu sempre me expressei foi muito natural pra mim, tanto transicionar como estar vivendo como a Mia, em full time.

H: Acha que ter começado como drag queen e criado inicialmente a “personagem” Mia te ajudou a chegar nessa conclusão de transição e te deixar mais à vontade como uma figura feminina?

MB: Ah, com certeza. Foi durante esse processo que eu me entendi e comecei a me questionar comigo mesma. “Poxa, me sinto mais realizada estando de tal maneira do que vivendo como menino.” E isso era algo que já me pegava muito, porque nunca me sentia entendida nas minhas relações. Não conseguia gostar de mim mesma. Então, a transição foi uma virada de chave pra eu me descobrir e voltar a me amar assim. É fundamental gostarmos de nós mesmas, né?

H: Como já dizia RuPaul, “se você não se amar, como vai amar outra pessoa”.

MB: E isso reflete muito, né? Quando você está bem consigo mesma, resolvida… Lembro que era uma pessoa muito insegura. Não que hoje eu seja tão confiante, mas até a forma como eu me apresentava tinha muito a ver com isso de eu não externalizar o que eu já era por dentro. A transição veio como um desabrochar. A lagarta virou uma borboleta.

H: É ótima essa metáfora porque dá pra ver na cara da pessoa como ela se sente diferente.

MB: É, resplandece. E é foda viver isso. A gente sabe que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Mas eu falo que amo ser travesti. Tirando o preconceito, eu amo ser eu, porque me sinto muito realizada. É muito bom quando você se olha no espelho e se identifica. Comecei a transacionar em 2021, mas antes desse processo eu já me enxergava como uma pessoa não-binária. Até que veio a virada de chave e me fez ser mais feliz comigo mesma e ser mais confiante.

H: O disco tem várias parcerias com Jup do Bairro, Frimes, Boombeat etc. Como foi convidar essas pessoas e por que você resolveu escolhê-las?

MB: Por eu me identificar com todos os artistas ali e já termos uma relação de bastidores. A gente já se relacionava e sempre teve essa vontade de colaborar. Quando comecei a produzir o disco com o Cyberkills, fizemos uma lista das pessoas que eu gostaria de incluir, já tinha afinidade e conversaria com a mensagem do que eu quero trazer para o álbum.

A Frimes, por exemplo, é uma querida, a gente é super amiga. Falávamos dessa parceria quando ela saiu com a primeira música. A Jup também, o Camille também… A Boombeat, eu ouvia o disco dela e ficava “gente, esse é o futuro do rap”.

O PUTOCHINOMARICÓN mora na Espanha, a gente se conheceu pela internet. Ele tava na China, produzimos a música à meia-noite daqui e ao meio-dia de lá. Todas as minhas collabs foram muito espontâneas, falo que trouxe meus amigos para esse disco. Sozinha, a gente não vai a lugar nenhum.

H: Sua mãe também é LGBTQIA+ e apareceu no clipe de “Você vai pagar”. Como é a relação entre vocês duas?

MB: Na real, isso é bem legal. A virada de chave da minha mãe veio bem depois. Ela foi casada duas vezes (com homens) e aí virou a chave pra ela. Eu senti que pude acolhê-la, porque é um tabu a ser quebrado, ainda mais quando você vem de um casamento. Hoje, a relação que tenho com ela é de cumplicidade. Ela é minha melhor amiga e gosto muito de sentir que tenho esse apoio. Muito do que eu sou e consigo transmitir vem por eu ter esse alicerce, que é minha mãe, e ela sendo LGBTQIA+ entende muito mais. Houve um momento em que ela não entendeu, mas tentou entender e é isso que importa. Foi no tempo dela e hoje vejo que ela tá mais feliz do que eu já vi.

H: Você já disse sobre esse disco ser uma chance de te humanizar. O que quer que as pessoas tirem da Mia Badgyal com esse disco?

MB: Quero que as pessoas realmente me levem a sério. Quando falo humanizar, é pra sair na mesma linha de ficarem segregando a gente sempre como artistas LGBTQIA+ e acharem que a gente só tem que levantar essa bandeira, sempre. Quero ser uma cantora, não quero ser cantora-travesti. Quando as pessoas consomem outros artistas cis, não levam isso em consideração. É ser vista como uma pessoa normal e não à parte. Eu sou a Mia.