Primeira e única atriz e personagem transexual nos 28 anos em que Malhação esteve no ar, Gabriela Loran retornou à TV na última semana como a Luana de Cara e Coragem, nova novela da Globo para a faixa das 19h. A personagem foi um convite da diretora de arte Natália Grimberg e marca um ressurgimento criativo pós-pandemia para Gabriela, que também estará na segunda temporada de Arcanjo Renegado, no Globoplay, e finalizou as gravações de Novela, série de comédia produzida pela equipe do Porta dos Fundos para o Amazon Prime.

“Acho que quem se satisfaz, se acomoda. Meu bordão atual é ‘eu quero sempre mais'”, conta Gabriela à Híbrida, durante uma pausa nas gravações de Cara e Coragem. O “mais” pode ser interpretado como você quiser, mas para a atriz significa não só mais papeis, mas a oportunidade de mostrar e ser mais, em papeis mais importantes e mais complexos do que os geralmente destinados às atrizes transexuais e travestis.

Formada pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), um dos principais e mais tradicionais currículos de teatro do Rio de Janeiro, a carioca de São Gonçalo suou a camisa para concluir os estudos, dividindo-se entre o tráfego intenso da capital fluminense e o trabalho como garçonete. Mas o corre, os perrengues e a abdicação valeram a pena: mais do que uma formação acadêmica, a ribalta lhe proporcionou um entendimento até então inédito sobre ela mesma.

“O teatro foi o meu desabrochar, um divisor de águas. Ali, acessei lugares dentro de mim que eu não sabia que existiam, através das aulas de voz, de interpretação, de corpo… Todo semestre eu vinha de uma forma diferente”, conta a atriz.

Gabriela Loran: "Acho que quem se satisfaz, se acomoda. Meu bordão atual é 'eu quero sempre mais'" (Foto: Arquivo pessoal)
Gabriela Loran: “Acho que quem se satisfaz, se acomoda. Meu bordão atual é ‘eu quero sempre mais'” (Foto: Arquivo pessoal)

No último período do curso, Gabriela finalmente se sentiu pronta para ser quem é. Para isso, apresentou um monólogo inspirado em dois discursos da ficção: o de Sophia Burset, personagem vivida e celebrada por Laverne Cox em Orange Is The New Black; e o de Nomi Marks, interpretada por Jamie Clayton em Sense8, outro sucesso da Netflix. Com algumas palavras emprestadas de duas personagens trans pioneiras e um toque pessoal, ela declarou sua identidade de gênero pela primeira vez para a família, que assistia a tudo da plateia.

“Nunca sentei com meus pais pra falar nada da minha vida pessoal. Sempre quis que, se eu precisasse falar, que fosse através da arte”, lembra. “Nunca estive em armário nenhum, odeio isso. Eu só não sabia quem era. A partir do momento que comecei a desabrochar, nasci como Gabriela Loran.”

No dia seguinte ao monólogo, Gabriela recebeu uma ligação da irmã. Emocionada, ouviu que o pai tinha elogiado a primeira performance teatral que viu “da filha”. Assim, de forma natural e através da arte, que ela quer mostrar toda a sua “carga dramática” e “ser referência” para outras pessoas como ela, trans ou não.

“É interessante ser uma atriz trans e isso não ser algo essencial para a personagem. Não que não seja importante contar a transição, a aceitação da família, a questão do banheiro etc.”, pondera Gabriela. “Mas nós somos muito além, né? Quando os roteiristas pensam personagens pra gente, partem de um estereótipo e esquecem que, enquanto ser humano, temos outras problemáticas”, desabafa.

O sonho atual de Gabriela é viver personagens “mais complexas”. “Acho interessante viver uma mulher em um relacionamento abusivo ou uma neurocirurgiã, por exemplo. Quando vejo a Juma (de Pantanal) morrendo, com a maravilhosa Juliana Paes, fico me perguntando se um dia vou poder fazer uma personagem assim também?”, questiona.

Em Cara e Coragem, ela tem a oportunidade para isso. Luana é uma mulher que, em nenhum momento, é apresentada de cara como trans e trabalha como braço direito da protagonista Clarice Gusmão, vivida por Taís Araújo. “Isso me traz um conforto porque, enquanto atriz, quero viver várias personagens. Muita vezes, me sinto limitada, porque é sempre algo pré-estabelecido sobre ser trans.”

Apesar de ainda não ter um arco definido, a atriz já sabe que fica até o fim da novela escrita por Claudia Soto. “Eu já tô feliz com a minha personagem, mas não é só sobre ‘estar lá’. É importante termos protagonismo de história e possibilidades enquanto pessoas ‘fora da curva'”, observa.

Não é só sobre ‘estar lá’. É importante termos protagonismo de história e possibilidades

Além da volta à TV, Gabriela também estará disponível em breve no streaming. Ela entra na segunda temporada de Arcanjo Renegado, que deve entrar ainda este ano no catálogo da Globoplay. Dirigida por Heitor Dhalia e André Godói, a série segue Mikhael (Marcello Melo Jr.), um agente da Polícia Militar que trabalha no BOPE (Batalhão de Operações Especiais) da Polícia Militar do Rio e nem sempre segue a lei, no estilo Tropa de Elite.

Nesse contexto, Gabriela vive Giovana, a chefe de gabinete da deputada Maira (Cris Vianna), presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). “Ela é uma mulher trans, mas essa não é a sua questão principal. É isso que eu fico feliz, porque humaniza a gente mais”, comenta a atriz.

Pergunto como ela se sente enquanto mulher carioca, preta e trans, na pele da assessora de outra mulher preta que lidera o Legislativo estadual, principalmente no contexto da violência política que o Rio exerce sobre figuras assim, vide o assassinato de Marielle Franco e as ameaças sofridas pela vereadora Benny Briolly (PSOL), em Niterói. Gabriela aponta o quanto sente que o papel de Giovana é “revolucionário, acolhedor e transformador”.

“O José Junior [criador de Arcanjo Renegado] vem reconstruindo a imagem de pessoas pretas e minorias, colocando elas em cargos de poder. Quando vivo isso, é para mostrar que temos capacidade de ocupar outros cargos”, diz. “Em contrapartida, temos toda a violência contra elas e é uma oportunidade de retratarmos de forma humana essas histórias.”

Sempre quis ser referência para outras pessoas, para que elas pudessem se enxergar na minha história e no que represento 

Quem acompanha Gabriela nas redes sociais sabe que, além de militar, ela também tem um timing e veia cômicos que lhe renderam mais de 300 mil seguidores no Instagram desde que decidiu investir no formato durante a pandemia. Lá, a atriz compartilha opiniões e encena situações sobre pessoas trans, em esquetes criadas por ela mesma que acabam tendo um papel educador sobre as várias maneiras que a transfobia pode se manifestar, por exemplo.

Ela conta que começou a gravar vídeos no Youtube, em 2014, exatamente porque sentia falta de representatividade e achava importante compartilhar a sua vivência. O trabalho de influencer, entretanto, foi retomado por necessidade, após ela perder todos os trabalhos que tinha agendados por causa da  pandemia.

“Não tinha mais dinheiro nem pra pagar o aluguel. Pensei no que poderia fazer enquanto atriz e usar meu talento na internet, a meu favor”, lembra, contando que sempre escreve partindo dos seus próprios anseios. “Algumas páginas começaram a compartilhar e passei a ter mais visibilidade. Então, comecei a trabalhar e a internet deixou de ser apenas uma ferramenta e virou o meu trabalho, o que me possibilitou muitas coisas, como estar construindo a casa dos meus pais.”


Mais que dinheiro, os vídeos que Gabriela postava e continua postando no IGTV também serviram como uma vitrine da sua versatilidade enquanto atriz e renderam um convite para atuar como Lucrécia em Novela, série de comédia produzida pela mesma equipe do Porta dos Fundos e que traz também Miguel Falabella, Maria Bopp e Luana Xavier no elenco.

“Se não somos vistas em outdoor, na TV e nos comerciais, que a internet seja essa ferramenta de nos mostrar pras marcas, pros diretores e pra tudo mais”, comenta a atriz, que diz não gostar de se limitar a apenas um gênero. “Gosto da comédia porque, quando é inteligente, faz as pessoas refletirem. É isso que eu sempre busquei nas minhas redes sociais também.”

Em sua primeira entrevista à Híbrida, Gabriela Loran ainda estava no ar em Malhação. Hoje, quatro anos depois e com o fim da atração que só teve ela como atriz e personagem trans ao longo dos seus 28 anos de exibição, ela diz que a representatividade tem aumentado na TV com nomes como Glamour Garcia e Linn da Quebrada, mas ainda está longe de ser o ideal.

“A gente tem alcançado cada vez mais espaços, mas acho que é importante que as emissoras se proponham a falar sobre o tema abertamente e fora de estereótipos. A sociedade tá mais receptiva, mas é preciso que a gente fale cada vez mais.”