Em 2017, Tifanny Abreu tornou-se a primeira brasileira mulher transgênero na Superliga feminina de vôlei, ganhando aval da Federação Internacional de Voleibol (FIBV) e da comissão média da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) para competir em quadra. Neste ano, a oposta do Bauru deve solidificar ainda mais sua presença no cenário esportivo, se levarmos em conta suas recentes pontuações. Ainda assim, ela é avessa a estrelismos e considera-se apenas uma peça a mais do quebra-cabeças: “Eu sou somente mais uma delas. Somos muito unidas e amigas, fazemos muita coisa juntas. Em nenhum momento elas me veem como diferente, eu sou só mais uma jogadora”, afirma sobre a sua relação com as colegas de time, em entrevista exclusiva à Híbrida.

Tifanny recebeu a revista no lobby do hotel em que esteve hospedada com o time, no bairro carioca da Glória. O Bauru havia acabado de ser derrotado pelo Fluminense por 3 sets a 2 e, como ela comentou acima, seu desempenho foi similar ao de suas colegas: marcou alguns pontos e perdeu outros. “Eu não sou imbatível – acerto e erro como todas ali. Nosso time está numa crescente”, esclarece. Já em janeiro, ela recebeu o Troféu Viva Vôlei pelos 25 pontos marcados contra o BRB/Brasília. Na partida seguinte, conseguiu outros 21 contra o Sesi, a segunda maior pontuação do time, atrás apenas da ponteira Palácio, com 22.

Aos 33 anos, Tifanny está no Brasil desde fevereiro, quando encerrou uma temporada de jogo na Europa e veio visitar a família no interior de Goiás. Por lá, ela já havia jogado em times masculinos antes de fazer sua transição de gênero. Quando seu contrato na Itália chegou ao fim, foi a hora de cogitar um retorno à sua terra natal. “Meu empresário entrou em contato com o Bauru e eles também já estavam interessados em mim, mas queriam ver como eu iria me sair. Acabei ficando aqui [no Brasil]. Fui muito bem recebida por todos, pelo nosso diretor Reinaldo [Mandaliti], pelas meninas…”, conta animada sobre o novo time.

Tifanny durante partida do Bauru contra o Fluminense, no Rio de Janeiro (Foto: Thaís Vieira)
Tifanny sobre seu desempenho em quadra: “Eu não sou imbatível – acerto e erro como todas ali” (Foto: Thaís Vieira | Revista Híbrida)

Para ela, há uma diferença primordial entre disputar com os times masculinos e femininos: “Os rapazes são muito fortes, então você precisa ser forte também para jogar com eles. Quando eu me transformei na Tifanny, não tive mais essa força. Quando ela [Tifanny] estava escondida, eu tinha mais hormônios masculinos, mas depois da transição não deu mais”.

Jogadoras trans nos esportes: biologia ou preconceito?

Tifanny lembra que, em determinado momento da vida, precisou escolher entre o vôlei e ela mesma. Continuar vivendo como um homem não funcionava mais e, após um período com depressão, ela decidiu que “faria a Tifanny nascer”, mesmo que precisasse se afastar das quadras para isso. Quando começou no esporte, ela já havia enxergado ali a sua primeira oportunidade para concretizar esse sonho.

“A decisão [de jogar vôlei] veio quando recebi propostas de outros países. Eu pensava em fazer o meu melhor [no esporte] e conseguir um suporte para que a Tifanny nascesse de verdade. Eu não aguentei mais prendê-la e então decidi largar meu time e o vôlei para viver a Tifanny completamente”, comenta.

Jogando profissionalmente desde os 17 anos, ela começou seu processo de transição em 2012, quando ainda disputava em países como a Holanda e a Bélgica. Após a primeira cirurgia, em 2014, ela continuou jogando entre os homens, até que precisou pausar as carreira para a sua segunda cirugia. A essa altura, ela estava jogando na Itália, mas foi até a Argentina para fazer a operação e, de lá, desembarcou no Bauru.

Mas nem toda a comunidade esportiva tem mostrado a mesma aceitação com a entrada de Tifanny na Superliga feminina. Após receber o aval da FIBV e CBV, a legitimidade de sua participação tem sido colocada à prova. Partida após partida, as reclamações começam a surgir de colegas que foram derrotadas em quadra e outras jogadoras que mantiveram-se no anonimado.

Algumas das críticas mais barulhentas têm vindo da ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel. Morando nos Estados Unidos, onde já declarou ter votado em Donald Trump nas últimas eleições, Ana tem conseguido se manter na mídia graças às suas visões conservadoras, que a fizeram pedir votos para Aécio Neves (PSDB) na disputa eleitoral de 2014.

Ana Paula Henkel durante protesto contra a corrupção em São Paulo. Na época, ela fazia campanha eleitoral para Aécio Neves (Foto: Reprodução)
Ana Paula Henkel durante protesto contra a corrupção em São Paulo. Na época, ela fazia campanha eleitoral para Aécio Neves (Foto: Reprodução)

Dentre os argumentos defendidos pela ex-jogadora estão o de que Tifanny teria uma vantagem desleal com suas oponentes por ter construído o corpo à base de hormônios masculinos. Em um artigo de opinião publicado pelo Estadão, Ana, que insiste em chamar Tifanny pelo seu nome antigo e frisar a ideia de que ela é “um homem que se identifica como mulher”, ainda solta: “Em quanto tempo teremos uma seleção feminina composta basicamente por transexuais?”, antes de dizer que esse poderia ser o fim das categorias femininas no esporte.

Não vamos tocar no fato de que Ana Paula parece ter uma certa dificuldade em aceitar que Tifanny é sim uma mulher e no quão transfóbico é o tom do texto. Ao dizer que Tifanny construiu seus 1,94 m com músculos masculinos, Ana parece esquecer que na própria Seleção Brasileira de Vôlei podemos encontrar uma jogadora mais alta, como é o caso de Thaísa Menezes (1,96m). Isso sem falar que atribuir a excelência no voleibol única e exclusivamente à força e à altura de uma atleta é de uma ignorância esportiva que não compete à ex-jogadora.

Outros argumentos defendidos por Ana são os de que Tifanny teria estrutura óssea e densidade muscular superiores às das jogadoras cis (que se identificam com o sexo atribuído no nascimento). Mas Ana parece ter deixado passar outro fato importante do estudo que ela própria cita em seu artigo e que, convenientemente, foi suprimido no texto.

De acordo com ela, a Dra. Joanna Harper, fisicista do Providence Portland Medical Centerteria dito que um ano de tratamento hormonal não seria o suficiente para permitir jogadoras transexuais de participarem na modalidade feminina. Mas além de essa fala não ser encontrada em nenhuma das entrevistas concedidas pela Dra. Harper, o que ela afirma na verdade, com base em seu estudo, é exatamente o contrário: após a terapia hormonal, as atletas que fizeram a transição de gênero perderam massa muscular e atingiram níveis de testosterona inferiores ao de uma mulher cisgênero.

Dra. Joanna Harper, fisicista que tem estudado os efeitos da transição de gênero em atletas trans (Foto: Reprodução)

A Dra. Harper ainda faz uma analogia entre o corpo das mulheres transexuais e um carro grande com o motor pequeno: “O carro pequeno com um motor pequeno [mulheres cis] pode, de várias formas, superar o carro grande com motor pequeno”, afirma, frisando ainda que altura não é necessariamente um fator decisivo na performance de um atleta.

Há ainda quem abordando o ponto de vista hormonal, defendendo que isso também crie vantagens desleais. O próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) define que o nível do testosterona em uma jogadora não pode chegar aos 10 ng por litro de sangue. O de Tifanny é 0,2 ng, enquanto a média de uma mulher cis gira em torno dos 3 ng.

“Quem me critica deveria fazer uma transição para ver se é exatamente isso que eles pensam. Eu sei o que passo. Se eu tivesse a mesma força de antes [da transição], eu não teria coragem de estar jogando ali, entende? Porque seria sim uma injustiça. Mas eu faço tudo direitinho para estar dentro da lei e sobra apenas o meu talento. Até porque, se eu passar do limite, sou pega no doping e tomo uma punição de dois anos”, esclarece a jogadora.

 

Se eu tivesse a mesma força de antes [da transição], eu não teria coragem de estar jogando ali, entende? Porque seria sim uma injustiça.

 

Tifanny ainda afirma que há um fator fundamental para entender como transfobia aqueles que se opõem ao seu direito de jogar. “É preconceito sim. Sabe por quê? Porque quem não tem preconceito, respeita a lei. Você pode até não concordar, mas respeita. Agora, quem é preconceituoso vai tentar justificar. Não só comigo, mas com qualquer pessoa”, explica, completando que não guarda rancor de Ana Paula. “Eu não fico chateada com ela, é a opinião que ela tem. Na minha vida, isso não está alterando nada. Vou fazer de tudo para continuar jogando dentro da lei e das regras”, deixa claro.

O importante para Tifanny é focar nas vozes poderosas e positivas que estão ao seu lado durante essa jornada: “Eu tenho muito carinho por algumas meninas da Seleção, como a Thaísa [Menezes], a Denise [Souza] e a própria Paula Pequeno, do meu time. São meninas que sempre me apoiam e estão do meu lado. Elas entendem que lei é lei e me respeitam, então eu sempre estou ao lado das pessoas boas”.

Tifanny e o sonho do vôlei olímpico

Hoje, Tifanny celebra o resultado de tanto esforço e de tanta espera: “A gente sempre busca a perfeição. Mas graças a Deus, hoje me sinto plena”, comemora. O nome, ela conta, foi um presente dado ainda na adolescência, quando sua persona feminina já era sentida pelos amigos que a batizaram. “Nem fui eu que escolhi, fui escolhida”, ri. “Eu era bem jovem e meus amigos disseram que eu tinha cara de Tifanny. Desde então isso colou e fiquei assim”, lembra.

Tifanny durante disputa entre o Bauru e o Fluminense, no Rio de Janeiro (Foto: Thaís Vieira | Revista Híbrida)

Em entrevistas anteriores, a jogadora tem precisado afirmar repetidamente que não gosta de ser chamada pelo seu nome anterior e que sempre se sentiu assim: Tifanny. Talvez mais por descuido que por má fé, é impossível encontrar um artigo sobre ela que não cite o tal nome – o qual você não vai encontrar aqui na Híbrida, em respeito à sua vontade. Mas até durante o jogo assistido pela Híbrida, torcedores do outro time faziam questão de gritar para ela: “Saca, fulano!”, “Ei fulano, vai errar!” e “Joga a bola no fulano que ele não aguenta!’.

Com serenidade e bom humor, ela explica que não se deixa irritar por isso: “A torcida sempre vai tentar desconcentrar as atacantes. Para mim, é algo normal, entra num ouvido e sai no outro. A partir do momento que isso não acontece depois do jogo – que aí sim, é falta de respeito -, não me afeta. É algo que vai acontecer sempre, não adianta. A parte boa é que depois da partida eu realmente sinto esse carinho: eles vêm pedir foto, conversar…”, conta.

Com os anos de experiência e o bom desempenho nas quadras brasileiras, ela diz que a única diferença entre jogar na Europa e no Brasil é que aqui ela entende os gritos da torcida. Por sinal, o burburinho sobre sua possível participação nas próximas Olimpíadas de Tóquio, em 2020, tem chances reais de se tornar uma realidade. Tanto que o próprio técnico da seleção, José Roberto Guimarães, já afirmou que ela estaria apta a participar, dependendo apenas de seu desempenho até lá.

Questionada sobre a possibilidade de fazer história mundial com a possível contratação, Tifanny comenta: “Quem não queria, né? Todas nós imaginamos e queremos. Mas isso vai depender muito do meu trabalho. Eu não posso chegar nas Olimpíadas sem nome. Quero ir para somar, então vou fazer o meu melhor agora para ver se tenho oportunidade até 2020”.

Se há uma semelhança entre os discursos de quem apoia e o de quem critica a participação de Tifanny na Superliga é que 1) seria injusto proibi-la de jogar; e 2) ainda não existem estudos e pesquisas suficientes para concluir se jogadoras trans têm ou não vantagens sobre suas adversárias. Por enquanto, Tifanny está entrando em uma quadra desconhecida,  enquanto ouve metade da arquibancada torcendo e outra metade vaiando. Mas seu foco é claro: respeitar a decisão do árbitro em comando. E não é assim que funcionam todas as partidas de vôlei?