*Texto original de Laura Mills

Na 5ª edição da coluna História Queer, nós entramos na nossa primeira discussão sobre um evento, e não sobre uma pessoa. Nós discutiremos a Segunda Guerra Mundial e o papel da comunidade queer nos eventos de antes, durante e depois da guerra. Este artigo focará especificamente em indivíduos e eventos pré-guerra, e não será o último artigo do gênero.

Começamos na Itália, em 1938. Adolf Hitler está em ascensão, assim como outro homem de grande infâmia: Benito Mussolini. Entre muitas outras coisas, uma das visões de Mussolini para o futuro de seu país era apresenta-lo como repleto de homens “perfeitos”. E ele havia criado uma imagem clara para esse tipo: marido, soldado e o mais tradicionalmente masculino possível. Em sua opinião, homens gays não se encaixavam nesse ideal.

Mussolini acreditava que ser gay era o mesmo que ser feminino e, provavelmente, também reduzia todas as identidades queer ao rótulo de gay. Por isso, entre muitas outras atrocidades, ele planejou erradicar os homens gays da Itália, como era de praxe nos regimes ditatoriais da época. O que tornou essa tática ligeiramente complicada foi que ele quis executa-la sem admitir a existência de tais homens.

Às vésperas da 2ª Guerra Mundial, Mussolini exilou homossexuais na Ilha de San Domino para purificar a imagem viril da Itália (Foto: Reprodução)
Às vésperas da 2ª Guerra Mundial, Mussolini exilou homossexuais na Ilha de San Domino para purificar a imagem viril da Itália (Foto: Reprodução)

Ele queria que o mundo, e seus cidadãos, acreditassem que a Itália já estava alcançando sua ideia de perfeição. Por causa disso, ele foi incapaz de instaurar qualquer lei oficial contra a homossexualidade, já que para tal ele precisaria assumir a existência dos mesmos (lembra alguém?). Apesar do obstáculo, Mussolini ainda assim agiu para que a comunidade queer fosse punida. Ele forçou muitos indivíduos suspeitos de serem queer ao que era chamado de “exílio interno”.

Ilhas como as de Ustica e Lampedusa possuíam assentamentos de pessoas queer e oponentes políticos. San Domino foi outra destas ilhas, mas com uma importante diferença. San Domino, em vez de exercer seu original propósito de prisão, se tornou a primeira comunidade exclusivamente queer da história oficial italiana.

Calma. Antes, permita-nos esclarecer que isso não significa que tal lugar era perfeito. Indivíduos queer chegavam algemados e viviam em assentamentos sem água corrente ou eletricidade. Esses indivíduos eram vigiados por guardas e obrigados a seguir um toque de recolher às 20h. Eles eram levados de suas famílias e amigos e ouviam que seu país estava envergonhado de suas existências. Porém, se há algo que já foi evidenciado inúmeras vezes na história é que a comunidade queer sabe aproveitar o bom das situações mais medonhas às quais a sociedade lhe submete.

Usada como exílio de homens gays por Mussolini, a Ilha de San Domino fica no arquipélago de Tremiti, no Mar Adriático (Foto: Reprodução)
Usada como exílio de homens gays por Mussolini, a Ilha de San Domino fica no arquipélago de Tremiti, no Mar Adriático (Foto: Reprodução)

Devido à mentalidade conservadora e hiper-religiosa da Itália, muitos prisioneiros enxergavam San Domino como um escape, ao contrário de uma prisão. Estes indivíduos eram colocados em companhia de outros como eles e autorizados, pela primeira vez, a abraçarem suas identidades e desejos abertamente.

Relacionamentos começavam, performances teatrais afirmativas de suas identidades eram encenadas e uma comunidade forte de indivíduos foi formada a partir da adversidade que o governo italiano tentou alimentar. Estas pessoas criaram uma comunidade naquela ilha e fizeram o oposto do que Mussolini quis. Ao invés de se desvanecerem, eles floresceram.

Infelizmente, esse momento de relativa segurança não poderia durar para sempre. Em 1939, quando a Segunda Guerra começou, o exílio interno havia acabado. Os ocupantes de todas as ilhas foram sentenciados à prisão domiciliar, e suas vidas não foram mais registradas. Poucos indivíduos permaneceram abertos sobre suas identidades quando retornaram à sociedade. Essa volta ao sigilo e o número limitado de registros dos assentamentos limitam nosso conhecimento sobre as especificidades do que aconteceu posteriormente.

Na ilha, por outro lado, nós celebrávamos nossos feriados santos ou a chegada de alguém novo. Nós fazíamos teatro e nos vestíamos como mulheres, e ninguém dizia nada
– Giuseppe B., prisioneiro de San Domino

Ainda assim, a comunidade queer não abandonou sua história. Placas foram colocadas em memória dos prisioneiros de San Domino e, em 2005, ativistas pressionaram o governo italiano a reconhecer essas atrocidades contra pessoas queer. Um dos fatos mais notáveis foi que os prisioneiros choraram ao retornarem para casa. Eles encontraram felicidade em um lugar feito para destruí-los. A ideia de voltar ao país que os desprezava e os limitava era devastadora, porque isso significava retornar às limitações de suas vidas prévias

Esta pequena história de San Domino é gigantesca. Da estabilização à destruição desta comunidade, passou-se um ano. Mas é importante, porque representa algo muito maior: a resiliência da comunidade queer e a subversão das intenções dos poderes que a desejam destruída.

Este texto faz parte do projeto Making Queer History cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.