Um jovem de cabelo rosa está de olhos fechados, deitado no colo de outro homem, enquanto sente que pelo menos quatro mãos apalpam o seu corpo. Esse é Gabeu, alguém que parece entregue às preliminares de uma transa a três, na sugestiva capa do single “Lance Aberto”, disponível desde fevereiro nas plataformas de streaming.

À primeira vista, você pode esperar mais um grito do cantor sertanejo à liberdade sexual, algo tão presente no seu primeiro sucesso, “Amor Rural”, e no álbum de estreia Agropoc, precursor do movimento queernejo e indicado ao Grammy Latino em 2022. Mas, ao desembrulhar a nova canção, o que se encontra é uma letra inteiramente dedicada ao ressentimento da descoberta de uma relação extraconjugal, dentro de um relacionamento monogâmico.

Uma introdução de festa embala longos versos sobre a decepção de uma “traição”, e a ideia de relacionamento aberto fica distante. Aparece apenas no coro: “Se o nosso lance era aberto/Você esqueceu de me avisar/Até toparia um lance aberto”.

Essa poderia ser uma descrição crítica, no sentido negativo, partindo da hipótese de que Gabeu perdeu a oportunidade de abordar um namoro homoafetivo e aberto dentro de um gênero musical tão hetenormativo como o sertanejo. Mas, neste caso, a subversão está exatamente na novidade que é ver um homem gay ocupar o dramalhão da sofrência. E é uma delícia a ideia de que, sim, relacionamentos LGBTQIA+ também merecem ser contados em músicas e têm sofrimentos que podem ser ouvidos no meio da balada.

Em “Lance Aberto”, a singularidade reside nessa pequena novela dentro de um relacionamento gay, com um bônus: o melodrama monogâmico não impede que o clipe imagine um ménage. Em suma: a obra entrega o melhor dos dois mundos.

Filho de Solimões, da célebre dupla Rionegro e Solimões, Gabeu é natural do município de Franca, no interior de São Paulo, mas hoje mora na capital. Em entrevista à Híbrida, o cantor de 25 anos diz que só percebeu recentemente o quão embaraçosa foi a experiência de crescer no sertanejo sem ter referências LGBTQIA+ no meio.

A sua referência identitária, digamos assim, vem do pop. Autodeclarado little monster, Gabeu parece mesmo ser um irmão espiritual de Lady Gaga em seus trajes espalhafatosos e tecidos esvoaçantes, enquanto dança no meio de um apartamento de chão de taco. É um pouco difícil evitar a recordação da estética que vimos na era Joanne, mas é bom salientar que Gabeu traz ainda mais atrevimento.

Nesta semana, Gabeu lança sua segunda canção do ano, “Fim do mundo”, uma parceria com o cantor Garélio. A obra, um pouco mais distante do sertanejo, comprova que está viva a sua admiração pelo caipira e pelo urbano, pelo retrô e pelo moderno. É essa a mistura que lhe faz um grande artista. Duvida? Pois leia a entrevista abaixo.

HÍBRIDA: “Lance Aberto” sugere referência a um relacionamento aberto, mas a letra descreve um relacionamento monogâmico em que um dos lados se sentE traído. Em certo momento, o namorado traído diz que toparia um lance aberto, desde que conversado. Você acha comum a atitude do personagem que traiu? Por que isso ocorre, em sua opinião?

GABEU: Acredito que o diálogo é a base de qualquer relacionamento. Digo isso, porque aprendi na prática que uma boa comunicação fortalece a relação. Acho que, num geral, ainda vivemos muito a ideia de posse nos relacionamentos, ignorando que podemos sentir atração por outras pessoas. Talvez reprimir esses desejos tenha a ver também com a ideia de que sentir coisas por outras pessoas é errado. Ficar com outra pessoa se torna a pior coisa que poderia acontecer dentro de uma relação.

Mas a verdade é que é muito difícil pra mim falar por todos os relacionamentos. Obviamente, existem diferentes configurações e combinados. Desde que as pessoas envolvidas estejam de acordo, acho que não há tantas regras.

H: A discussão sobre ter ou não um relacionamento aberto é ascendente entre os jovens, sobretudo nas redes sociais. Como você avalia pessoalmente o tema?

G: Acho uma discussão super válida, afinal ninguém está obrigando ninguém a ter ou não um relacionamento aberto. Muitas pessoas acham o relacionamento não-monogâmico um absurdo, mas a questão me parece muito simples: não quer, não tenha. O mundo é tão plural, certamente vamos encontrar pessoas que queiram se relacionar da mesma maneira que a gente.

Gabeu: "No geral, ainda vivemos a ideia de posse nos relacionamentos" (Foto: Divulgação)
Gabeu: “No geral, ainda vivemos a ideia de posse nos relacionamentos” (Foto: Divulgação)

H: Você foi indicado ao Grammy Latino com o Agropoc. Depois disso, há algum desafio especial em criar uma obra que esteja à altura desse disco? Como lida com o processo criativo após já ter chegado tão longe?

G: É conflituoso, não vou mentir. A indicação ao Grammy foi a maior coisa que já me aconteceu e de fato, se eu pensar muito nisso, vou acabar colocando uma pressão em cima de mim mesmo na hora de criar outras músicas que não vai me ajudar em nada. Às vezes, inevitavelmente essa pressão surge. Sinto medo, fico ansioso, preciso de um tempo… Mas nada que uma boa terapia em dia não ajude.

É o que venho buscando atualmente – tentar cuidar um pouco do meu psicológico, do meu emocional, para que eu consiga continuar fazendo aquilo que amo, que é música. Se futuramente serei indicado novamente ou conquistarei coisas tão grandiosas quanto essa indicação ao Grammy, eu não sei. Mas vou continuar vivendo a minha música.

Existia um vácuo dentro de mim – aquela criança sertaneja gritava pra sair

H: Foi muito conflituoso para você crescer no meio da música sertaneja sem ter referências LGBT+ entre os artistas de destaque? Como descrever o percurso até o momento em que você percebeu que poderia ser um deles?

G: Foi um conflito que eu só fui entender de fato como conflito recentemente. Musicalmente, eu amava estar em meio ao sertanejo. Identitariamente, não. Mesmo com a minha maior referência sendo o meu pai, ainda assim, a performance de masculinidade sertaneja nunca me contemplou.

Por isso que, de forma inconsciente, acabei buscando outras referências em outros universos e, como muitos, acabei caindo no mundo pop. Como uma típica criança viada que cresceu nos anos 2000, eu era obcecado por Rouge, RBD, mais tarde pelas divas pop – a Gaga especialmente.

Através desse contexto, tive contato com pessoas mais parecidas comigo, que também eram fãs desses nomes. Vivi intensamente a minha adolescência pop, fui um little monster insuportável (talvez eu ainda seja). Mas foram artistas queer brasileiros que realmente me fizeram perceber que eu precisava, por mim e pela criança que amava estar no meio da musicalidade caipira, dar alguns passos pra trás e resgatar minhas raízes.

Quando mudei pra São Paulo e fui estudar cinema, conheci diferentes artistas e cenas musicais, formadas por pessoas LGBTQIAP+ da periferia que estavam explorando o hip-hop, nordestinos explorando sua regionalidade…

Foi quando percebi que existia um vácuo dentro de mim. Aquela criança sertaneja gritava pra sair de dentro de mim. Foi a partir do lançamento da minha primeira música, “Amor Rural”, que comecei a encarar a música, sobretudo sertaneja, como possibilidade.

H: Como preservar a identidade sertaneja para um público predominado por fãs de pop?

G: O pop é muito visual. O sertanejo, até pouquíssimo tempo atrás, não era um mercado que se preocupava tanto com videoclipes, com looks extremamente elaborados, maquiagens artísticas, coreografias. Mas, de uns tempos para cá, percebemos como o mercado sertanejo tem usado artifícios do pop pra se projetar ainda mais.

Acho que um bom exemplo atual disso é a Ana Castela, que tem feito uma mistura musical na qual a gente sabe que estamos ouvindo sertanejo, mas ao mesmo tempo é muito pop. O fato de eu ter crescido também com muitas referências do pop, e continuar sendo esse consumidor assíduo de cultura pop, não me deixa tão preocupado. Isso não atrapalha o meu processo criativo. Pelo contrário, são coisas que me dão ainda mais asas pra voar e explorar possibilidades. O Agropoc é muito sobre a junção desses dois universos, sertanejo com pop, caipira com urbano, retrô com moderno, visual com musical.