De chapéu, bota, espoleta e montando um cavalo, Beyoncé lançou nesta sexta-feira (29) COWBOY CARTER, seu disco inspirado no country que serve como o segundo ato da trilogia iniciada há quase dois anos com o RENAISSANCE. Ao longo de 27 faixas, a Abelha Rainha transforma um gênero predominantemente masculino e conservador num rodeio onde todos são bem-vindos, intercalando baladas e covers clássicos com rap, pop e até funk.

Segundo a própria, o projeto nasceu depois de uma apresentação que ela fez no CMAs, a principal premiação do country, em 2016. Acompanhada das Dixie Chicks, que já são persona non grata em eventos do tipo desde que criticaram o republicano George W. Bush em 2003, Beyoncé cantou “Daddy Lessons” em frente a uma plateia hostil, para dizer o mínimo.

“(Esse disco) nasceu de uma experiência que tive anos atrás onde não me senti bem-vinda… e ficou muito claro que eu não era”, disse Beyoncé, em uma publicação feita dez dias antes de o projeto ser lançado. “Mas, por causa dessa experiência, eu fiz um mergulho profundo na história da música country e estudei nosso rico acervo musical.”


Para mostrar o resultado dessa pesquisa e provar que também tem um espaço para clamar e chamar de seu no country, a texana Beyoncé mescla ritmos e parcerias com nomes já consolidados e reverenciados com outros na vanguarda do gênero: Dolly Parton, Miley Cyrus, Post Malone, o guitarrista também texano Willie Nelson, os Beatles ( no cover de “BLACKBIRD”) e até o funk brasileiro.

Se RENAISSANCE era uma festa interminável de batidas eletrônicas, autoconfiança, tesão, euforia e liberdade sem remorsos, em COWBOY CARTER Beyoncé se permite ser mais vulnerável, nostálgica, introspectiva e (ainda mais) romântica. Ela divaga sobre o legado que vai deixar para o mundo, o peso de ter começado a carreira ainda criança, a dor que sentiu com a traição do pai, o fardo de sustentar a família e também o racismo que sofreu como artista, inclusive admitindo pela primeira vez o remorso por até hoje não ter vencido o Grammy de Melhor Álbum do Ano.

O rodeio diferente e diverso de Beyoncé em COWBOW CARTER  

COWBOY CARTER mantém a tradição que Beyoncé começou em I am… Sasha Fierce, lançado em 2008, e também é um disco conceitual. A principal intenção por trás do trabalho, considerando o pouco que ela compartilhou por enquanto, parece ser mostrar ao mundo como sua música também pode ser country, se ela assim o desejar. E que, apesar de entender sua raízes, ela dispensa o preciosismo conservador do gênero, preferindo extrapolar suas regras do que se curvar a elas.

Já de cara, Beyoncé abre o trabalho com “AMERICAN REQUIEM”, na qual parece relembrar o episódio do CMAs enquanto aponta que “tem muita conversa” enquanto canta, e diz em tom desafiante: “Vocês me ouvem? Vocês me temem?”. E, depois, conta ter ouvido que “falava country demais” e, depois, que “não era country suficiente”. Esse é um bom ponto de partida para um projeto que, como a própria frisou, não é um “álbum de country”, mas um “álbum da Beyoncé”.

Na prática, isso se materializa na forma como ela alterna gêneros musicais, temas e personalidades ao longo do disco, passeando pela raiva de “AMERICAN REQUIEM”, os traumas de “16 CARRIAGES”, a paixonite deliciosa de “BODYGUARD”, a imponência da ária italiana em “DAUGHTER” e a delicadeza de “MY ROSE” e “PROTECTOR”, esta última uma baladinha em homenagem aos filhos, que inclusive conta com a participação fofa da caçula Rumi, gêmea de Sir.

Mas mão é só entre uma faixa e outra que Beyoncé passeia por gêneros musicais, temas e estados de espírito. Algumas músicas, seja com mais de cinco ou menos de três minutos, são sagas contidas em si mesmas, onde ela cola uma ideia na outra, mudando o ritmo de surpresa.

O interlúdio “SMOKE HOUR”, que simula um programa de rádio apresentado por Nelson, marca a primeira virada “oficial” do disco. Logo depois dela vem “TEXAS HOLD ‘EM”, o carro-chefe de divulgação do álbum, um country de bate-bota guiado por uma Beyoncé despreocupada e divertida, que deixa claro como não há tornado, tempestade ou olhar capaz de segurar sua vontade de dançar coladinho.

Muito antecipada, a regravação de “JOLENE” é um dos pontos altos do disco e surpreende positivamente por subverter o sentido original da música (falei mais sobre isso aqui), ainda que mantenha o mesmo tema: as mulheres que gostam dos casados. Mas onde Dolly Parton suplicava, Beyoncé ameaça sem cerimônia. Se Dolly admitia a beleza de Jolene, Beyoncé se declara uma rainha contra um pássaro entre tantos outros. “Sua paz depende de como você agir, Jolene”, ela alerta, no mesmo tom que já usou em “Ring The Alarm”.

Questionando os limites estabelecidos para um gênero musical através dum sample da fala de Linda Martell, primeira artista negra de sucesso no country, “SPAGHETTI” é outro ponto alto do disco, principalmente para o público brasileiro. Nela, Beyoncé sublima o conceito do projeto quando exibe seu bravado num rap aos moldes de “Bow Down”, mas dessa vez guiado por uma batida nervosa de funk carioca com sample confirmado de “Aquecimento das Danadas”, d’O Mandrake, popularizada na abertura do clássico “Movimento da Sanfoninha”, da Anitta.

As colaborações com Miley Cyrus (“II MOST WANTED”) e Post Malone (“LEVI’s JEANS”) aparecem harmonizadas em duas das faixas mais românticas, dentre as muitas que compõem o álbum. Apesar de estar algums gerações abaixo de Beyoncé, Miley é considerada uma “filha legítima” do country, tanto pelo fato de ter nascido no Tennessee como filha um ídolo do gênero, quanto por ela mesma ter se aventurado por essas águas, mais notoriamente com o disco Younger Now (2017), no qual canta em dueto com Dolly, sua madrinha literal.

Já Post Malone é uma escolha inusitada, mas que reforça ainda mais o recado de Beyoncé. Com uma carreira de ascensão meteórica em um período supreendentemente curto, o artista já é conhecido por mesclar o rap com rock e outras vertentes inusitadas, além de ter anunciado há alguns meses que também faria um disco duplo apenas com músicas country.

Bebendo da mesma fonte de gêneros híbridos, Beyoncé ainda se permite flertar mais uma vez com o rap perto do fim de COWBOY CARTER, em “TYRANT” e na epopeia de “SWEET HONEY BUCKING”, que ainda esconde um traço sutil de PC Music no fundo da produção. O álbum termina em “AMEN”, uma balada épica que, como o próprio nome sugere, beira o gospel.

Muito antes de completar essa saga de 1h18, entretanto, Beyoncé já tinha deixado claro para a plateia do CMAs e para qualquer um que duvidar o quanto ela também tem legitimidade no country e merece respeito no gênero, seja por suas raízes ou pelo som que produz.

Mas como estamos falando de Beyoncé, é claro que só isso não bastava. Por isso ela foi além: mostrou que não só pertence ao country, mas subverteu o gênero em uma mistura de nomes, releituras, samples, líricas, sons e gêneros que, ao invés de apenas reverenciar seu passado, também aponta e lidera o caminho para o seu futuro.