Dias depois de reunir 1,6 milhão de pessoas na Praia de Copacabana em um show histórico para o Rio de Janeiro e para a sua própria carreira, Madonna ainda é assunto inevitável no Brasil. A Rainha do Pop não apenas criou a maior pista de dança do mundo com sua apresentação de duas horas na noite do sábado (4), mas também enfureceu a ala mais conservadora da sociedade com uma celebração da diversidade e da liberdade sexual e moral, da cultura LGBTQIA+ e da arte política, todas bandeiras que levanta há 40 anos.

Como já mencionado aqui na Híbrida, a turnê que Madonna decidiu terminar de forma triunfal nas areias de Copacabana é uma grande celebração de seu ativismo em prol dos direitos humanos (especialmente da comunidade LGBTQIA+) e da sua própria trajetória pessoal, duas frentes que, à medida em que o show avança, se mostram indissociáveis.

“Vou contar a história da minha vida. Não é um filme. É a porra da vida real, ok? Minha vida é uma loucura”, ela anunciou logo no início do espetáculo.

Passeando pelo seu início na cena underground de Nova York, a primeira amostra dessa “loucura” vem na sequência de “Holiday” e “Live To Tell”, quando a primeira música vai diminuindo lentamente enquanto os dançarinos caem um por um ao seu redor. No telão, ela exibe fotos dos amigos que perdeu para a Aids, algo ainda mais impactante no Brasil, que recebeu imagens adicionais de ícones como Cazuza, Renato Russo, Betinho, Sandra Bréa, Wagner Bello e Caio Fernando Abreu.

Esse é talvez o ponto principal para entender quem Madonna é como artista e como pessoa. Ela foi uma das primeiras figuras públicas a defender de forma passional os direitos de quem vivia com HIV, principalmente porque viu de perto o preconceito e sofrimento que a doença trouxe aos seus amigos da comunidade LGBTQIA+.

“A nação queer sempre me apoiou. Eu agradeço vocês”, disse Madonna em rede nacional. “Agradeço todos os artistas e todas as pessoas que se arriscam. Eu agradeço todas as pessoas que lutam pelo direito de ser livre, de amar quem quiser amar.”

Os convidados de Madonna

A maior amostra desse amor veio quando ela chamou Pabllo Vittar ao palco para fugir da setlist seguida em outros países e apresentar uma versão samba de “Music”. Juntas, elas pularam, rebolaram, dançaram, se abraçaram e literalmente esfregaram a bunda na cara do Brasil, enquanto usavam camisetas com o nosso verde-e-amarelo e acenavam a nossa bandeira. De novo nossa, finalmente.

O simbolismo de ver Pabllo levantando Madonna no colo enquanto crianças da periferia carioca tocam samba ao fundo e imagens de Erika Hilton, Gilberto Gil e outras personalidades aparecem ao fundo é gigante. Juntas, a Rainha do Pop e a drag queen mais perseguida do Brasil curaram tudo o que o país sofreu vendo as cores da bandeira serem raptadas pela extrema-direita nos últimos cinco ou mais anos.


“Música faz com que as pessoas se unam. Música mistura a burguesia e os rebeldes”, cantou a Rainha do Pop. É como se ela olhasse para o país inteiro e dissesse: esse é o Brasil que eu amo e enxergo, essa é o Brasil que merece e deve ser celebrado.

Em outros momentos, Madonna beija uma dançarina transexual na boca enquanto traja apenas uma camisola. Quando a Rainha do Pop recebe Anitta no palco é como se desse o selo de aprovação a uma brasileira que, como ela, sempre foi criticada pela forma como expõe sua sexualidade sem culpas. Juntas, elas se divertem com o show erótico dos dançarinos, enquanto um deles traja apenas uma calcinha fio dental com as cores do Brasil.

Todas as provocações e “transgressões” que Madonna apresentou no Brasil são velhas conhecidas tanto dos seus fãs quanto dos seus algozes. Lá nos anos 1980 e 1990, ela já simulava masturbação no palco, algo que hoje faz em um número emocionante no qual usa uma dançarina vestida como ela mesma para se tocar ao som do instrumental de “Papa Don’t Preach”.


Desde a última vez que um show de Madonna recebeu tamanha exposição midiática no Brasil, quando ela trouxe a turnê The Girlie Show, em 1993, o país mudou radicalmente. De muitas formas, as regras morais do conservadorismo aumentaram e o espaço para a liberdade sexual diminuiu. Mas com três dos seis filhos no palco, a Rainha do Pop mostrou que seu lado provocador não anula o familiar, que as pessoas podem conter multidões e, com isso, nos deu novamente a permissão para ser e fazer o mesmo, sem culpas.

Semanas antes do 4 de maio, a presença de Madonna já era sentida no Rio com uma expectativa palpável na cidade e no país. E, ouso dizer, continuará sendo pelos próximos anos ou décadas.

A reação de fãs emocionados no front do palco ou as imagens aéreas com um milhão e seiscentas mil pessoas gritando a plenos pulmões os refrões de “Nothing Really Matters”, “Like a Virgin” e “Like a Prayer” não ficarão presas apenas no agora. Elas devem reverberar por anos, principalmente nas gerações mais jovens que viram no show uma chance para ser livre e sonhar alto, tanto pela figura de Madonna como pela de seus convidados.

Madonna ensinou ao Brasil que ser diferente, de qualquer padrão e por qualquer motivo, não é um defeito. “Sem medo, pessoal! Sem medo!”, disse, antes de completar: “E eu vou lutar por vocês até o dia que eu morrer”. E nós também.

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