Há pouco mais de dois anos, Letícia Novaes lançava “Letrux em Noite de Climão”, um disco repleto de influências eletrônicas e composições sombrias, feito por crowdfunding em um Brasil pós-impeachment, por uma tijucana vivendo o Rio de Janeiro na ressaca da dobradinha de Copa do Mundo e Olimpíadas. No último sábado (29), ela subiu ao palco apropriadamente vermelho do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, para registrar o DVD do projeto, também o primeiro de sua carreira.

“Pensei ‘É, esse show tem que ser registrado’. Ele tá mudando a minha vida, todo final de semana eu faço esse show, então daqui a 30 anos quero vê-lo. O ‘Climão’ realmente mudou a minha vida e a de todo mundo que está envolvido nesse projeto”, comenta Letícia em entrevista exclusiva à Híbrida, minutos depois de ter encerrado a gravação. A ideia do registro, ela explica, começou a se desenrolar há cerca de um ano (“É o tempo pra se desenvolver uma ideia no Brasil”), após o convite de Tata Pierry, com quem já havia trabalhado no clipe para “Além de Cavalos”.

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Sob o comando de Tata, que também assina seu primeiro DVD como diretora, o palco foi coberto por pequenos jardins de antúrios, enquanto um globo de espelhos gigantesco desceu do teto na hora de dançar “Flerte Revival”. Tudo sempre em sintonia com sua banda, formada por Lourenço Vasconcellos na bateria, Martha V na guitarra e Thiago Rebello no baixo, além de Natália Carrera (guitarra) e Arthur Braganti (teclados/programação), os dois produtores responsáveis por “Climão”.

A gente vai passar, vai morrer, o ser humano vai acabar e quem vai continuar é a natureza

– Letrux

Sempre um dos momentos mais emocionantes e vulneráveis do show, “5 Years Old”  foi apresentada por Letícia sozinha, mas dessa vez com as árvores do Parque Ibirapuera observando ao fundo. “A natureza é minha maior paixão. Sem ela eu fico totalmente deprê. Posso ficar sem muita coisa, mas sem natureza não. E essa é uma música tão introspectiva, eu estou tão sozinha no palco, então por que não deixar a natureza estar comigo? A gente vai passar, vai morrer, o ser humano vai acabar e quem vai continuar é a natureza”, ela afirma.

Natália Carrera, Martha V, Letrux, Lourenço Vasconcellos, Thiago Rebello e Arthur Braganti na gravação do DVD de "Noite de Climão" (Foto: Sillas H.)
Natália Carrera, Martha V, Letrux, Lourenço Vasconcellos, Thiago Rebello e Arthur Braganti na gravação do DVD de “Noite de Climão” (Foto: Sillas H.)

Se lambuzando ocasionalmente com a água de um cálice gigantesco (e vermelho!), Letícia entregou na gravação do show os melhores elementos que o tornaram um sucesso: drama, humor, tragédia, improvisação, poesia, inclusão e, claro, política. Mas dessa vez, sem os recorrentes gritos (dela) de “Fora Bolsonaro” (ou “Ele Não” ou “Fora Temer” ou “Lula Livre”, dependendo da época em que você viu o show). “Esse DVD é só pra eu assistir quando estiver velhinha, com 82 anos. Você acha que eu vou querer registrar esse nome?”, respondeu com bom humor, quando um fã puxou, sob aplausos, o grito da plateia.

A interação é uma de muitas que rolam entre Letícia e a plateia durante a noite. “Já teve muito climão desde que a gente lançou o disco. Cada show tem um climão – uma pessoa que grita alguma coisa, o som que para de funcionar…”, ela lembra no backstage.

Letrux durante a apresentação de "Flerte Revival" na gravação do DVD de "Uma Noite de Climão" (Foto: Sillas H)
Letrux durante a apresentação de “Flerte Revival” na gravação do DVD de “Uma Noite de Climão” (Foto: Sillas H)

Ao invés do “fora”, Letícia começou a apresentação de “Puro Disfarce”, que ainda teve a participação elétrica de Marina Lima, com um grito de “O Estado é laico!”. Sutil, mas certeiro, assim como o convite irresistível que deu início a todas essas noites de climão: entra, mas não fica à vontade que eu não tô. Ninguém estava. Provavelmente, ainda não estamos. Perturbada na madrugada de Copacabana ou dançando em uma noite estranha, Letícia foi acompanhando a montanha-russa do Brasil enquanto se apresentava pelo país, gritando “socorro” sem deixar de dançar. E nós seguimos.

Letícia e Marina Lima ao fim de "Puro Disfarce" (Foto: Sillas H)
Letícia e Marina Lima ao fim de “Puro Disfarce” (Foto: Sillas H)

Tanto, que “Climão” conseguiu a raridade de ser sucesso entre a crítica, entrando na lista dos 10 melhores álbuns de 2017 pela Rolling Stone Brasil e levando Melhor Disco do Ano no Prêmio Multishow, e entre o público. No aniversário de um ano do projeto, a fila para entrar no Circo Voador deu volta pelos Arcos da Lapa, e os ingressos para a gravação do DVD em São Paulo esgotaram em questão de minutos. Mais: a plateia estava salpicada de fãs letruxianes vestidos de vermelho, em homenagem ao figurino da era.

As coisas andam paralelas e você dá a mão. Às vezes, você se apaixona e ainda está sofrendo por alguém

– Letrux

Antes de embarcar nessa última fase da turnê, Letícia avisou em seu Instagram que, a partir de novembro, começaria a se dedicar ao sucessor do “Climão”. Em julho, ela já desdobrou o projeto no “Letrux em Noite de Pistinha”, com remixes do DJ Zé Pedro, Lucas Vasconcellos, seu antigo companheiro de Letuce, João Brasil e O Pala, que transformou os “uh-lalala” e “eita ferro” de “Vai Render” em funk.

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“Eu tenho um histórico tijucano de frequentar baile funk, mas não consigo fazer um funk. E me sentiria até uma pequena fraude tentando”, responde, quando perguntada se isso seria alguma indicação da sonoridade que pretende seguir para o próximo álbum. “Música é pra brincar, imagina, um dia poderia fazer. Mas, por enquanto, não é meu lugar. Talvez até de lugar de fala…”, completa.

Autora, cantora, atriz, poeta, produtora e astróloga, a verdade é que Letícia já tem pensado no que vem após o caldo brutal que foi “Climão” há um tempo – o tempo necessário, como ela mesma coloca, para realizar algo no Brasil. “Minha cabeça não para. Já estou há um ano pensando no próximo [disco]. Mas é que as coisas andam paralelas e você dá a mão. Às vezes, você se apaixona e ainda está sofrendo por alguém. Você tem que dar a mão à paixão e à dor, ao mesmo tempo”, explica. “Sou uma pessoa neurótica, inquieta, então minha cabeça já fica tudududududu.”