19 set 2024

GABI ÁDIE: UM NOVO ROSTO DA ERA DIGITAL ASCENDE NA MODA BRASILEIRA

DO INTERIOR DE MINAS PRO MUNDO, A JOVEM MODELO TRANS CONTA COMO CONCILIA A CARREIRA DE INFLUENCIADORA COM A DE MODELO ATÉ ALCANÇAR AS PRINCIPAIS PASSARELAS DO BRASIL

por MARIA EUGÊNIA GONÇALVES

Aos 21 anos, Gabi Ádie já carrega consigo um currículo invejável como modelo. Em um curto período de tempo, ela já desfilou em quatro temporadas da São Paulo Fashion Week, participou da Semana de Moda de Paris e colaborou com grifes como Carolina Herrera, Paco Rabanne, Yves Saint Laurent e Sephora, dentre outras. Para uma jovem trans que cresceu em uma cidade com menos de 100 mil habitantes, o mundo rapidamente se tornou a sua passarela. 

Natural de Caratinga, município no leste de Minas Gerais, a jovem lutou desde cedo contra o estigma no cotidiano interiorano. Com 1,80m de altura, olhos claros e sobrancelhas marcantes, Gabriela possui uma aparência mesmerizante, mesmo que, no íntimo, tenha uma história semelhante a de muites outres sujeites LGBTQIA+ que cresceram em locais não tão férteis para a construção de suas identidades.

“Passar pela transição é, por si só, muito desafiador. Estando numa cidade pequena, tudo fica mais difícil ainda”, confessa, em entrevista exclusiva à Híbrida.

Gabi Ádie (Foto: Thom Fox)

A presença de modelos trans na moda não é exatamente novidade. No Brasil, Roberta Close fez o seu legado durante os anos 1980 como a primeira mulher transexual a estampar a capa da Playboy e a conseguir espaço na mídia. Uma década depois, a “sex symbol” chegou a desfilar para estilistas renomados, como Thierry Mugler e Jean Paul Gaultier, consolidando seu status de ícone.

Décadas depois, a representatividade trans na moda aumentou significativamente. Leandra Medeiros Cerezo, a Lea T, emergiu como uma sensação global no século XXI. A mineira não apenas brilhou desfilando em incontáveis desfiles de alta-costura, mas também apareceu em capas de revistas e se tornou a primeira modelo trans a ser embaixadora global de uma marca de cosméticos, a Redken, do Grupo L’Oréal.

Seguindo seus passos, Valentina Sampaio também alcançou sucesso notável como expoente de uma nova geração. A cearense foi pioneira em uma série de conquistas nos anos 2010: primeira mulher trans a aparecer na capa da Vogue Brasil, em um ensaio da revista Sports Illustrated Swimsuit e a desfilar como uma das icônicas “angels” no tradicional espetáculo da Victoria’s Secret.

Embora o Brasil seja, como descreve Gabi, uma “grande fábrica de boas modelos”, a revolução, felizmente, não se limita ao território nacional. De Tracey Norman, a Andreja Pejić e, mais recentemente, Hunter Schafer, o mundo também acompanhou o crescimento da diversidade nas passarelas. Para se ter ideia, ao longo de quatro semanas nas principais semanas de moda do mundo de 2018, 83 mulheres transexuais foram escaladas para mais de 50 desfiles. Um recorde notável e também impensável até pouco tempo atrás.

Gabi Ádie (Foto: Thom Fox)

Gabi Ádie, no entanto, representa mais do que uma mera estatística. Ela é a cara de uma nova geração, que nasceu e cresceu após a revolução digital, acompanhando a fusão irreversível entre as carreiras de modelo e influencer.

Seu início na moda, inclusive, deve-se a isso. Descoberta em 2020 através das redes sociais, Gabi ganhou visibilidade no Instagram ao publicar vídeos exibindo suas habilidades como maquiadora. Dois anos após ser notada por uma agência, ela se mudou para São Paulo, onde a trajetória como modelo realmente decolou.

Atualmente, a jovem conta com mais de um milhão de seguidores no TikTok e confessa que não pretende abandonar a carreira como produtora de conteúdo tão cedo. Muito pelo contrário: ela enxerga na interseção entre moda e redes sociais uma ponte do que está por vir na indústria fashion. 

“Acho que o futuro será – na verdade, o presente já é – uma junção das duas carreiras”, comenta.

Na entrevista abaixo, Gabi conta sua trajetória, comenta a presença de modelos trans na moda, explica sua relação com as redes sociais e revela os principais sonhos para a carreira, que mal começou e já promete.

HÍBRIDA: Como foi começar seu processo de transição em uma cidade do interior? Houve rede de apoio ou alguma dificuldade específica?

GABI ÁDIE: Passar pela transição é por si só muito desafiador, estando numa cidade pequena tudo fica mais difícil ainda. Acho que minha maior rede de apoio sempre foram minhas amigas, nas quais eu me inspirava muito, e também as minhas primas. Uma dificuldade específica de ser uma pessoa trans no interior é em relação aos relacionamentos. Não digo só da parte romântica. Mas é difícil, de forma geral, fazer conexões quando a maioria das pessoas te enxerga com preconceito.

O que mais me impulsionou a correr atrás da carreira foi o desejo de viver minha realidade sem tanto julgamento

H: Como foi perseguir a carreira de modelo vindo desse contexto? O que ou quem te impulsionou a ir atrás de uma agência e correr atrás desse sonho?

GA: Vinda do contexto de uma cidade pequena e longe de grandes polos da moda, a experiência de começar como modelo é uma grande incerteza. A gente não sabe se vai dar certo ao ir para uma capital. O medo de tudo dar errado é enorme. O que mais me impulsionou a correr atrás da carreira de modelo foi o desejo de viver minha realidade sem tanto julgamento, porque era praticamente insustentável, falando de saúde mental, continuar onde eu estava.

H: Seu trabalho como maquiadora ajudou nessa autodescoberta como modelo? Como aconteceu essa mudança de área?

GA: Meu trabalho como maquiadora me ajudou muito, em vários sentidos. Costumo dizer que a maquiagem me fez perceber que eu realmente queria transicionar de gênero. Assim como foi por conta dos vídeos de maquiagem na internet que tive os primeiros contatos com agências de moda e com outras modelos. Pra ser sincera, não sinto que houve de fato uma mudança na área. Eu mudei muito a forma de fazer maquiagem, mas ela sempre esteve presente na minha vida profissional e até hoje é uma paixão.

H: Sente que o mercado de moda nacional é receptivo para modelos trans? Como tem sido a sua experiência?

GA: O mercado está aprendendo a trabalhar com pessoas trans, mas ainda há muito para progredir. Faltam oportunidades e sinto também que falta conhecimento nas pessoas sobre coisas básicas, como o que não deve ser perguntado ou falado para uma pessoa trans. De forma geral, a minha experiência é tranquila, mas poderia ser ainda melhor. Sou grata, porque sei que o que vivo não representa a realidade da maioria. Meu desejo é que toda pessoa trans recebesse o acolhimento necessário para trabalhar.

Gabi Ádie (Foto: Thom Fox)

H: Tendo começado a carreira como influenciadora de beleza, como vê a relação entre as modelos de hoje e as redes sociais? Acha que a personalidade online influencia na hora de ser chamada para os trabalhos?

GA: As redes sociais são fundamentais para uma modelo, mesmo que ela não deseje trabalhar como influenciadora. Os clientes veem muito nosso histórico online para entender melhor quem a gente é. Então, com toda certeza, as redes influenciam muito.

H: O que acha que tem de especial nas modelos brasileiras para termos tantos exemplos de sucesso nas passarelas?

GA: As modelos brasileiras têm uma certa presença, o que é muito especial. Acho que nossa energia chega ocupando todo o ambiente, com algo muito solar e característico da nossa cultura. A maioria de nós conversa sorrindo, se alegra facilmente e se mantém muito positiva. Do meu ponto de vista, são esses detalhes que fazem o Brasil uma grande fábrica de boas modelos.

H: Como você vê o futuro da moda, especificamente da carreira de modelo, considerando o mercado de influenciadores?

GA: Acho que o futuro será (na verdade, até o presente já é) uma junção das duas carreiras para as modelos. Este é um fenômeno que já acontece em muitas outras profissões. As pessoas querem saber o que suas personalidades favoritas estão fazendo, então naturalmente acabam buscando e seguindo (nas redes sociais).

H: Já teve algum sonho realizado como modelo? E qual ainda pretende realizar?

GA: Sempre brinco que sonho mesmo não se revela (risos). Mas, se posso dizer uma meta, é fazer com que minha carreira dure, mesmo que algum dia eu escolha um caminho diferente. Visualizo algo muito concreto e bem construído para mim, porque trabalho com muita paixão no que faço.

MARIA EUGÊNIA GONÇALVES

Bacharel em Ciências Humanas pela UFJF. Fã de cultura pop desde criança, encantada pelo cinema desde a adolescência e apaixonada por História e Estudos de Gênero na idade adulta.

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