08 nov 2024

VIVEMOS O FUTURO QUE NOSSOS ANTEPASSADOS LGBT+ SEQUER SONHARAM

NOSSAS EXISTÊNCIAS FORAM DEMONIZADAS, PATOLOGIZADAS E CRIMINALIZADAS, MAS HOJE JÁ VIVEMOS OS SONHOS DE NOSSAS ANCESTRAIS

por BRUNA BENEVIDES (Presidenta da ANTRA)

Quando recebi o convite para escrever sobre o Futuro, me vi envolta em um grande desafio. Sobretudo porque o futuro muitas vezes é algo tão distante, que o agora se torna nosso compromisso, que toma conta de todas as nossas possibilidades ante as urgências do dia a dia. 

Mesmo assim, enquanto uma ativista organizada em movimentos sociais, fiquei refletindo sobre estarmos vivendo no futuro daquelas pessoas que nos trouxeram até aqui. Foram elas que projetaram um futuro vivível e com possibilidade de darmos continuidade ao que lutaram e sonharam, mesmo que em muitos momentos não tivessem plena consciência do desenrolar desse fio ao longo do tempo e do impacto de suas ações para este futuro que vivemos agora.  

No Brasil Colônia, vestir-se com roupas de outro gênero era proibido a ponto de a Inquisição ter perseguido Xica Manicongo, impondo que ela escolhesse entre a morte ou viver “de acordo” com o gênero imposto a ela. Hoje, no milênio seguinte, conquistamos leis que garantem nossa identidade de gênero e decisões do Supremo Tribunal Federal que reconhecem a autodeterminação de gênero como um direito legítimo das pessoas trans, sendo inviolável e parte essencial da dignidade humana.

Ainda na década de 1920, há mais de um século, o Nazismo queimou nossa memória quando destruiu o Institut für Sexualwissenschaft (“Instituto de Sexologia”, em tradução livre) e os estudos que eram feitos lá, em Berlim, perseguindo pessoas trans desde o início das suas movimentações fascistas. Hoje, temos a (re)construção das nossas histórias, memórias e verdades trans, em projetos como o Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo, e o Acervo Bajubá.

Logo depois, durante a Segunda Guerra Mundial, foi Alan Turing, o homem gay responsável por criar aquilo que viria a se tornar o computador como conhecemos hoje, quem teve sua sexualidade criminalizada e passou por processos violentos de isolamento social e castração química. Ele acabou sendo levado ao auto extermínio antes de ver um futuro onde a homossexualidade deixou de ser encarada como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990.

Se Marsha P. Johnson, Sylvia Rivera e Stormé DeLarverie, duas travestis e uma lésbica, foram perseguidas e enfrentaram a repressão policial contra a nossa comunidade no final dos anos 1960, nos Estados Unidos, compondo a linha de frente da Revolta de Stonewall, hoje temos em São Paulo a maior Parada do Orgulho LGBTQIA+ no mundo. 

Há pouco tempo, na década de 1970, as cirurgias de afirmação de gênero ainda eram proibidas e consideradas “mutilação a um corpo saudável”, tendo que ser realizadas de forma clandestina e enfrentando processos de criminalização no mundo inteiro. Hoje, temos uma Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais no Brasil, assim como normas específicas de cuidados para pessoas trans no Sistema Único de Saúde (SUS) – que, apesar das limitações de investimento, ainda nos torna um dos poucos países no mundo a contar com esse tipo de assistência gratuita ofertada pelo Estado. 

Na ditadura militar, éramos caçadas pelas operações policiais em diversas cidades pelo país, impedidas de circular livremente porque havia uma lei usada para que a sociedade não colocasse os olhos nestes centauros urbanos que “ameaçavam a ordem”. Hoje, temos deputadas federais travestis ocupando o Congresso Nacional de forma qualificada, ainda que elas também sofram violências lá dentro.

Há não muito tempo, a mídia tratava pessoas trans como marginais, usando termos inadequados, ignorando nossas identidades de gênero e abusando da transfobia recreativa de forma corriqueira em rede nacional. Hoje, é possível observar uma mudança significativa na forma com que passaram a relatar nossas vivências e experiências, sem falar que já temos pessoas trans no jornalismo, em peças publicitárias, nos filmes, nas novelas, séries e todos os pontos de contato que alimentam o imaginário social sobre quem somos e o que podemos ser. 

A epidemia do HIV dizimou parte de nossa comunidade e, por anos, foi tratada como “peste gay”, enquanto pacientes morriam aos montes pelo mundo por uma doença que era negligenciada e jogada para escanteio. Hoje, o Brasil é um dos países mais avançados no cuidado de pessoas que vivem com o vírus. Temos a oferta de métodos de prevenção combinada como preservativo, PreP, PEP, entre outros, todos distribuídos sem custos pelo SUS.

Mesmo a OMS, que retirou a homossexualidade da sua Classificação Internacional de Doenças e manteve as transgeneridades ali, hoje já despatologizou as nossas identidades trans, ainda que apenas em 2018 (muito recente). Adolescentes e crianças trans têm suas existências reconhecidas  como legítimas e afloram nos espaços mais variados, seja em competições esportivas, como é o caso da patinadora Maria Joaquina, ou nas artes e meios digitais, como Leona Vingativa e Alexia Brito, a Mica e o Gustavinho. Elas vivem e se desenvolvem de forma plena, sendo quem são. 

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Tracei um rápido resgate com essas linhas que se entrelaçam e refletem muito do que vivemos hoje na politica, nas relações sociais e em outros campos, para tentar mostrar que o tempo não parou, que avançamos e conquistamos coisas antes inimagináveis. O futuro sempre segue seu rumo. Às vezes, parece que vai devagar demais; em outros momentos, rápido demais. Com certeza, chegar aqui não foi fácil e ainda há muito a conquistar, corrigir e resgatar em termos de memória da nossa comunidade. Mas seguimos atentas para não cair nas armadilhas daqueles que tentam desviar nossos objetivos.

Em 1992, tivemos nossa primeira travesti eleita para um cargo político e fundamos um movimento potente de pessoas trans. Hoje, vemos as conquistas dos nossos direitos sendo consolidadas e observamos uma presença crescente na participação de pessoas trans na política. 

Ao assumir a presidência da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), não quero criar uma nova instituição, tampouco reviver aquela do passado ou tentar superar aquelas que me antecederam. Hoje, eu sou o futuro projetado pelas travestis que organizaram o movimento nacional de pessoas trans. Se antes elas lutavam como analfabetas, hoje muitas são doutoras. E o meu interesse é em deixar uma marca que reflita e defina este momento na história da luta trans no Brasil.

Nossas existências foram demonizadas, patologizadas e criminalizadas. Nossas histórias foram apagadas, preteridas e nossas contribuições foram omitidas. Hoje, agora, vivemos com orgulho os sonhos de nossas ancestrais. Não pela ancestralidade sanguínea ou religiosa que geralmente são reconhecidas, mas sim pelas potências culturais e sociais, do reconhecimento de si no outro, da resistência e da comunidade, de quem nos orienta e incentiva a seguir em frente. Daquelas pessoas que dedicaram a própria vida para moldar o que hoje chamamos de presente, mas que se fez futuro para elas. 

Nada disso foi possível sem que houvesse violência, esperança, dor e medo. Nem tudo são flores e nossas questões não estão plenamente resolvidas no mundo, mesmo que pareça assim para aqueles que não enxergam nossa história a fundo. Mas sim, eu ainda poderia escrever páginas e páginas dos avanços conquistados no curso desses séculos e milênios que nos trouxeram até aqui. 

O fato é que vivemos o futuro. E ele muitas vezes vai repetir o passado, como já nos alertava Cazuza. Mas, antes, quero finalizar apontando a chance que temos hoje e agora de ir além do que essas pessoas fizeram por nós. Quero convidar cada pessoa que tiver contato com esse texto para que se torne parte da escrita de um futuro menos violento, ainda mais digno e promissor para as futuras gerações. 

Muitas violações de direitos humanos e violências ainda acontecem. Há muita impunidade. Mas há também esperança. Temos ferramentas de luta que vêm sendo forjadas com o passar do anos e que colocam o Brasil como um dos mais avançados na conquista de direitos da comunidade LGBTQIA+ no mundo. 

Cabe a nós, que agora nos constituímos como ancestrais do futuro, travar novas batalhas, levar essa luta além e alcançar aquilo que as pessoas do passado não conseguiram, honrando seu legado com mecanismos de proteção que, hoje, temos a nosso favor. 

Enquanto continuamos nossa jornada, é importante não perdermos de vista o papel que cada um de nós desempenha na construção de um amanhã mais justo. Temos em nossas mãos a oportunidade de transformar o presente, inspirados pela memória daqueles que vieram antes de nós. As histórias de luta e resistência dessas pessoas nos lembram que, mesmo diante de adversidades inimagináveis, é possível criar um futuro onde todas as identidades são respeitadas e celebradas. 

Olhando para o passado, vivendo o presente e lutando por um legado poderoso para as gerações que virão. Nós já somos o futuro.

BRUNA BENEVIDES

Segunda Sargenta da Marinha do Brasil, cearense radicada em Niterói. 1ª mulher trans a receber o prêmio Faz Diferença. Feminista e casada. Recebeu o diploma Mulher Cidadã da ALERJ e o Prêmio Innês Etienne por sua atuação na luta pelos Direitos Humanos. TransAtivista, autora do Dossiê da Violência e dos assassinatos de pessoas Trans no Brasil pela ANTRA. Membra do Sistema de Informações sobre violência contra LGBTI na América Latina e Caribe.

Facebook | Instagram