Se você se enquadra na categoria de pessoas “cronicamente online”, especialmente no Twitter/X, com certeza já deve ter cruzado com o perfil Claudette Gregótica na sua timeline. Influenciando a rede social através de seus insistentes estáticos associados aos mais variados assuntos, desabafos, hot takes e conteúdos sobre cultura pop, Claudette Gregótica tem quase 50 mil seguidores e representa hoje um dos perfis basilares de uma bolha LGBTQIA+ que molda o humor e o senso estético de uma porção considerável dos usuários do site. 

Essa presença constante de Claudette no meu dia a dia, me rendendo sorrisos inesperados e sinceros enquanto checo a timeline, gerou uma curiosidade que pode ser resumida ao seguinte questionamento: quem está por trás da mente mágica de Claudette Gregótica? Para responder essa pergunta, entrevistei João Gabriel, de 22 anos. Durante 1h30, conversamos sobre o perfil, a (falta de) lógica por trás do uso de estáticos, a vivência dentro da bolha brasileira LGBTQIA+ no Twitter, universidade, Pedro Almodóvar, televisão e música. 

HÍBRIDA: Quem é você?

JOÃO GABRIEL: Então, eu sou João Gabriel, tenho 22 anos, sou estudante de Comunicação da UFBA. Na verdade, sou quase formado há um ano e meio. Mas no ensino público, a gente tem uma morosidade nas coisas, um slowstudying, né. O mundo é muito veloz, então a gente tem que dar tempo ao tempo (risos). Eu trampo com redação publicitária, assessoria, comunicação em geral.  

Nasci em Salvador, cresci numa casa de músicos e ouvia de tudo: Alcione, Beth Carvalho, Caetano, Chico, Bethânia, Gal, Zezé Motta, Melodia. Meu pai tinha um ouvido musical muito amplo, então tocava também Forró, Gonzaga, Reggae. Fui crescendo com esse pique. Só que quando criança, eu era muito pirada em música internacional, americana. Comprava Capricho (sempre quebrando padrões de gênero, olha), Todateen e gostava de ler a tradução das músicas.

H: Você tinha internet já nessa época?

JG: A internet chegou lá em casa em 2006. Antes, eu ia na casa da minha madrinha que tinha computador. Jogava Barbie e Polly e via clipe. Lembro que ia muito pra lan house ver clipe. Nessa época, os DVDs pirata tinham muitos vídeos de R&B e Hip Hop, LL Cool J, Ashanti, Jennifer Lopez, 50 Cent, Beyoncé, Jay-Z. Tinha também os de flashback com Air Supply, George Michael, Madonna, Michael Jackson, Human League, Duran Duran.

H: Tu curtia igual a música que tu ouvia em casa e a que tu achava fora?

JG: A de casa tinha aquela questão tipo “ai, quero ser descolado, odeio o Brasil, cuzil, país de merda, quero ser inglesa”. Tinha esse viralatismo, graças a deus abandonado. Mas curtia em off. Eu era criança modelo, não xingava, era educadíssimo, inteligente. Sempre tive relação próxima com internet. Eu era viado, num ia jogar cartola. Ficava lendo Pitchfork e pensava “o que é Trip Hop? O que é Miles Davis?” e procurava. Sempre fui muito curioso. Com 12 anos, ganhei um notebook e falei “vou virar cinéfilo”. Vi muito filme aleatório até que cheguei em (Pedro) Almodóvar.

H: Como foi o seu processo de se entender como homem gay?

JG: Sei desde cedo, muito por conta do endereçamento do Outro. A gente aprende não porque entende o que é, mas porque o olhar do outro endereça. “Ai, é feminino”, “ah, ele munheca”, “ele fala nãnãnã”, e isso não era incômodo pra mim.

Lembro que quando vi A Lei do Desejo (1987), a cabeça ficou triturando. Depois, veio Kika (1993), Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo (1980), Má Educação (2004). Era um mundo em que maternidade, religião, dissidência, performance, arte, política, tudo era uma coisa só. A forma como uma travesti era retratada era muito diferente do que via no Zorra Total. Era um contraponto que dava àquela existência uma humanização, assim como dava à minha. Porque não me olhava como o alívio cômico do núcleo pastelão: eu era uma pessoa, com dramas. Um ser em que a sexualidade era a parte, não a metonímia.  

Ou vou diminuindo e aniquilando quem eu sou, ou encontro formas de ser quem eu sou, que é o confronto, causar incômodo

Lembro que fazia curso de inglês no shopping e precisava atravessar a passarela. Nessa passarela tinha um camelódromo. Comprei um DVD da Madonna, ela com um bustiê vermelho brilhante, cabeça baixa. Era da Girlie Show, que é a turnê do Erotica. Do Erotica, fui pro Sex, o Sex Book (1992), que é uma pira. A mulher mais famosa do mundo: nua. Tem BDSM, suruba, depilação. Vai dessacralizando, tira a nudez desse lugar do “pudor”. Fui crescendo com isso. 

Acho que quando você parte de uma experiência dissidente (adoro essa expressão, dá um bafo, estudos de gênero e sexualidade, adoro Preciado, Butler, eles lacram muito), não se pode ter a ilusão de que o mundo é como a gente entende. Não é. Aí posso sucumbir, uma escolha que não recrimino (não quero que todo mundo tenha a virtuosidade, porque a vida é barril, é máquina de moer sonhos, máquina de moer experiências); ou posso pensar em frestas. Sou muito das frestas, enxergo “qual grade tem aí?”, “qual bequinho pra existir?”. Ou vou diminuindo e aniquilando quem eu sou, ou encontro formas de ser quem eu sou, que é o confronto, causar incômodo. 

H: Você tem uma diva pop?

JG: Diva pop, assim, o chão seria Beyoncé, Caetano e Mano Brown. Se você dissesse, “João, se resuma em cinco pessoas”, seria Beyoncé, Caetano, Mano Brown, Almodóvar e Steven Meisel, que é um fotógrafo de moda. Almodóvar me deu luz, fui parido por Almodóvar. 

H: Como começou o perfil Claudette Gregótica?

JG: Aqui tá dizendo 2016. Eu fiz e não usava. Comecei a usar na faculdade, em 2019. Eu mudava muito de nome, que é uma coisa muito de nicho LGBTQIA+. Em 2020, na pandemia, todo mundo ficou desocupado, meio jobless, a gente vai todo mundo morrer, aí mudei. Primeiro foi Claudette Grega, era Claudette Grega Presente de Troiano.

H: Claudette é uma referência também? Eu não tenho essa referência.

JG: É, sabe aquela apresentadora Claudete Troiano?

H: Não…

JG: Nossa, ela é famosíssima, vou te mostrar. Peraí que é importante.

H: Ela é de qual canal?

JG: SBT, deixa eu apresentar pra você. Nossa, Claudette é ícone. Eu tenho espírito de maricona, né, amo loiras televisivas.  

H: Qual é a separação entre João e Claudette?

JG: Vou dar um exemplo. Você, Karina, está comentando o BBB. Você diz “Eu não gosto do casal Amanda e Sapato“. Vão aparecer 200 mulheres de meia idade te xingando. Quando fica só no Twitter, tá de boa. Só que as fanbases são malucas, vão encher seu Instagram. Eu lembro que na época do BBB, a galera mandava mensagem pra patrão. Tipo, “olha, seu empregado tá falando da Juliette“. Eu tenho simancol, mas as pessoas não. A questão da exposição: tô exposto? Tô. Mas é preciso entender que a internet é desenhada pra ser assim. É uma Esparta, é Coliseu, é embate, é discordância. As paixões mexem com as pessoas, então a galera sai do virtual. Aí a fronteira é desenhada. Eu não quero que minha mãe seja importunada por uma adolescente de 12 anos que ao invés de estudar geometria tá xingando gente no Twitter.  

Tô exposto? Tô. Mas é preciso entender que a internet é desenhada pra ser assim. É uma Esparta, é Coliseu, é embate, é discordância

H: Então é meio que uma forma de se proteger?

JG: É. “Ah João, você se incomoda que as pessoas que você conhece saibam?”. Não, minha chefe me segue, tem professor meu que me segue. É muito os pudores. Falo muito sobre sexo. Mas tem essa fronteira nesse sentido. Se fosse meu rosto e minha foto…

Por exemplo, bolsonaristas. A dinâmica deles de rede é outra. Os mecanismos, os entendimentos, compreensão, automatização. Pra eles pegarem um crime x e colocar na minha cara, é um pulo. Então tem essa salvaguarda. Eu me exponho, tenho noção do que pode virar, mas procuro me blindar até onde posso. Não me autocensurando, mas procurando formas de não deixar muito exposto. O Twitter tem muito essa coisa de “ai, é a sua casa”. Não amor, você tá falando pro mundo.  

H: Ter uma conta aberta no Twitter é muito difícil. Principalmente uma conta muito popular, eu não teria paciência.

JG: É você colocar um cartaz: “me mata”.

H: Você tem um humor muito específico. Te incomoda quando os seus tweets saem da sua bolha e começam a tentar “lacrar” em cima de você? 

JG: Depende muito, porque já escrevo esperando que pode acontecer. Não sou ingênuo, talvez por trampar com isso. Tenho noção de que tudo dito ali pode ser interpretado e levado às avessas. Sou responsável por aquilo que digo. A forma que o outro vai interpretar, codificar, é dele. Ao mesmo tempo que você tem ciência disso, quando toma como forma de autocensura, não coloca nada pro mundo. Às vezes me irrito. Tenho a noção que aquilo é desenhado pro caos.

H: Quando tu hiperfixa num estático ou num vídeo, tem alguma coisa que chama a tua atenção ou é aleatório?

JG: O que é o estático, né? É muito a cara benjaminiana, da reprodução, mas tem alguma coisa do humor. Uma imagem da Gretchen, pra minha mãe, é uma imagem da Gretchen. Pra mim, não. Quando eu vejo uma imagem da Gretchen que eu nunca tinha visto, eu falo, porra, é uma Luzia… [João se refere aqui a Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul]

H: Uma figurinha nova… 

JG: É muito engraçado como as bolhas têm essa semiótica. Às vezes, minhas amigas começam a usar um estático e é uma coisa que faz sentido pra quem tá ali. Às vezes, tô falando “ah, porque o racismo, ah porque o petismo, o bolsonarismo”, uso um estático da Angela Bismarchi, vem alguém e dá um quote, tipo, “o que é que tem a ver?”. Porque é isso, a imagem e o texto são entidades que nessa relação… foda-se. Não é um fio narrativo, é uma coisa de cortar e reproduzir.

Acho que a gente talvez não consiga mensurar isso, mas é um tipo de linguagem, um câmbio de sentidos, uma tradução, codificação, e tá sendo aos poucos introduzida no mainstream. Não precisa fazer sentido. Aquela imagem e a mensagem se confundem. Não é uma construção linear, são frases desconexas que vão recebendo o sentido que cada um atribui. Serve pra coroar esse nonsense. Pense num bolo escatológico: a imagem é a cereja do bolo, brother.

H: Tu tem muita referência de televisão né? Televisão, música… Quais mídias que tu curte e consome muito? O que te inspira?

JG: Sou muito novo, mas TV é uma coisa que sempre foi muito viva comigo. Lembro quando era guri, podia dormir até as 22h. Mas meus pais abriam uma brecha pra que terça-feira eu dormisse às 23h30, porque tinha o Casseta & Planeta. Eu adorava. Não entendia porra nenhuma, tinha 4 anos e me acabava de rir. Eu era louco pela Maria Paula, pelo de La Peña. Sempre gostei muito de humor, de rir e de trashzeira, desde sempre. Adoro Casos de Família, adorava o programa da Márcia, via muito Sônia Abrão, gostava muito de novela. 

H: Quais são suas novelas preferidas?

JG: Sangue Bom, novela das 19h. Gosto de novela das 19h quando se passa em São Paulo, quando tem vila italiana, aquele humor bem escrachado, bem Walcyr Carrasco, aquelas coisas bem cafonérrimas, e quando tem flashbacks na trilha sonora. Lembro que Ti-ti-ti tinha uma versão de “Time After Time”, de Cindy Lauper. Eu adorava, era brega, era cafona, era luta de classes. Adorava Amor de Mãe também, a primeira fase é perfeita. 

Tenho muita preguiça da separação “o que é culto e o que é popular”, que são ideias ultrapassadas, mas estão na academia. Olhar pra tudo que é popular (não no sentido folclórico) com olhar de outsider. “Vou analisar o produto x.” Passei a vida acadêmica inteira lendo “vamos analisar Casos de Família, vamos entender”, o que é basicamente “nossa, como é que esses pobres veem isso?”. A televisão é um reflexo de tudo que a gente tem de massa e de fodido. A gente chegou num estágio do desenvolvimento, de corpos dissidentes, que não dá mais pra ficar aceitando esse endereçamento de colocar uma lupa e “vamos dar voz”. Porque isso é colocar um microfone na boca de quem sempre teve voz, você que não ouvia.  

H: Como foi a tua experiência na UFBA? 

JG: Eu não tenho uma visão muito romântica da universidade. Como parte da sociedade, ela vai reproduzir tudo que a gente tem de bom e de ruim. Vai ser um espaço de estrutura racista, hierarquia de poder, misoginia, síndrome do pequeno poder, mas isso tem no mundo também. A gente não pode enxergar a academia como uma coisa só dela, é um problema do mundo. Numa BigTech da vida vai ter o mesmo tipo de comportamento. É preciso entender também que existe um movimento de mudança.

Não posso dizer que o ensino superior brasileiro de hoje é o mesmo de 2000, porque não é: o corpo discente é outro. Isso faz com que quem tá na academia sinta incômodo. Esse incômodo tem duas vias: ou parte pra escuta ou vai pro lugar do “esse espaço não é pra você”, que é aquele tipo de professor que se vangloria de reprovar.

É como se, ao mesmo tempo que a universidade se abre pra esse novo mundo — que sempre existiu, mas que talvez não fizesse parte dela —, alguns agentes desse espaço buscassem formas de cercear a vida dessas pessoas. Esse espaço não é pra você que vive a 3 horas da faculdade e vem num ônibus lotado, se não leu um texto de 100 páginas que passei há dois dias, a culpa é sua. É muito do equilíbrio de olhar: está mudando? Tá. Tem problema? Tem. Uma coisa não exclui a outra. A universidade é sim um lugar de mudança. É através do ensino superior que a gente consegue desenhar uma nesga de mobilidade social. 

H: A última pergunta é: tu tem vontade de se tornar um influencer, usar esse momento pra vender curso de como virar influencer?

JG: Agora eu vou dar um lacre. Sou muito da ideia de que o uso da rede social tem que ser responsável. Eu me preocupo muito com o que reproduzo, com o que reposto, com o que digo, porque eu sei que muita gente entende que o que eu falo é verdade. Tipo, a Karina é jornalista, a Karina não vai compartilhar uma notícia falsa. Esses contratos de validação, né? 

Ao mesmo tempo, não sei se é um tesão meu virar personalidade pública, porque acho uma nóia muito doida. Ao mesmo tempo que é uma forma de fazer grana, é uma forma de tornar sua vida uma janela pro mundo. É você colocar uma câmera na sua casa e falar “opinem, comentem”. É uma coisa desse estágio do capitalismo em que as fronteiras do que é público e o que é privado são mitigadas. Não porque a gente tá criando uma nova maneira de sociabilidade, mas porque a vida virou uma coisa só, compartimentada. Você sai às 22h de uma sexta-feira pra fazer networking… Brother, não… E não é ah eu sou uma pessoa no trabalho e outra na vida, é que essa coisa da influência mitiga esses limites.                                                 


Karina Moritzen é doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e em Musicologia pela Universität Oldenburg. Sua pesquisa foca em in-game concerts, performance digital e hyperpop, ancorando-se nos game studies e estudos culturais. Seu trabalho encontra-se publicado em periódicos como o Journal of Sound and Music in Games e a Eco-Pós, da UFRJ. É também membra fundadora do coletivo oldengame, dedicado a introduzir os game studies na Universität Oldenburg.